30/06/2020

Eu só queria ter estado presente

Tantas coisas que eu deveria ter dado atenção suficiente, momentos únicos em comparação a todos os sete dias da semana e o decorrer de um mês no ano, os instantes passando como poeira estelar na minha mente.

Algumas coisas merecem chegar de surpresa e tão intenso quanto a dor da morte, simplesmente porque você não esteve naquele lugar da forma certa, nem prestou atenção e se aproveitou de cada segundo que não deveria ter passado despercebido.

Toda minha família são de negros, descendentes diretos dos escravos em uma cidade pequena, na qual todos conheciam uns aos outros, pessoas boas de fato, lugar amistoso e não existia nenhum tipo de preconceito. A situação repugnante, no ponto de vista das famílias, são as pessoas que não participavam todos os finais de semana da Igreja Católica em não mais de uma hora com pregações religiosas.

Como qualquer homem, eu queria causar uma boa impressão, todos sabem, não adianta disfarçar, que a maioria apenas aparecem na casa do Senhor e mal prestavam atenção nas palavras do padre. Os únicos momentos fundamentais são quando oram as três rezas, situações importantes: o Pai Nosso, Ave Maria e o Creio em Deus Pai. Isso, toda criança que conhece a palavra do Senhor, não consegue esquecer.

Eu nunca estava presente, apenas ouvindo na multidão cansada e desgastado. Eram todos os finais de semana, as noites mais cotidianas, uma hora parecia durar doze, e eu estava ali com a minha família todos reunidos: rapazes vestidos de forma respeitosa, mulheres cobrindo seus corpos com vestidos, e todos utilizando símbolos sagrados, joelhos no chão, mãos uma encostando na outra e com os olhos fechados. A mente de todos realmente estavam presentes e acreditando...?

Tomé, Zelote, Mateus, entre outros, os 12 apóstolos, deixaram suas escrituras, palavras do Salvador e o que as pessoas precisavam seguirem para que não fossem para o "Inferno". Nunca acreditei que o homem seria perdoado pelo que fiz durante todos os dias, apenas por estar lá e parecer santo. Fiz o que, com certeza, a maioria fizeram: estava apenas participando e não ouvindo mais nada além do meu consciente vazio e automático.

Essa noite foi o momento que eu saberia que deveria ter ouvido as palavras do padre, estar presente diante da pandemia e próximo da minha família, não somente como o corpo desesperado pelo medo... Todas as pessoas acreditaram que 2020 já foi horrível o suficiente. Acharam melhor e julgaram que deveríamos ter esquecido aquele ano presos e as reportagens falando da quantidade aumentando de óbitos. Foram o que todos fizeram e logo, após cinco anos de calmaria e ainda com sequelas das mortes por causa do vírus, fomos surpreendidos por algo ainda pior... Nos sentimos confortados dentro do que a mídia tentou passar, as palavras dos governantes e o prazer de ter escapado, que ficamos ainda mais vulneráveis.

Hackers, com o título "Anonymous", populares no final de 2020 e vazando escândalos do alto escalaram, alertaram sobre a última tentativa de diminuir a população, que estava crescendo demais e recursos acabando de maneira absurda e despercebida pela população manipulada. Foi tarde demais, nas suas últimas tentativas de alertar o novo plano do governo que se tornou incontrolável. O título "Doença Do Homem Louco" já estava em suas posses, mas os resultados vieram acontecer após alguns meses e prontos para aniquilar a população.

Os sintomas se espalharam mais rápido do que a própria internet, em todos os lugares do Globo, causando ataques violentos em massa, homens mentalmente saudáveis se comportando como primatas mordendo uns aos outros, agredindo e espancando até à morte, espalhava-se como formigas em um formigueiro pelo contato físico e qualquer tipo de resíduo humano. As casas não estavam mais seguras, os doentes estavam invadindo com suas forças brutais como homens de ferro que não sentiam mais dor, apenas experimentando a selvageria para infectar uns aos outros. Não morriam tão fácil, não importava o tempo e as circunstâncias.

Demônios caminhando usando o corpo de homens, zumbis, mortos-vivos, ressuscitados, dezenas de apelidos refletiram o que estávamos passando e é exatamente como os filmes mostraram há muito tempo. Fizeram isso no pesadelo de 2020, esteve presente, e nós sabemos muito bem o que estávamos passando, mas a negligência humana e a maldade nunca vai evoluir. Deixamos se espalhar, e esse não era apenas algo irracional, a transmissão não ocorre simplesmente por meio da absorção de gotículas liberadas pela tosse ou espirro de uma pessoa infectada ou pelo contato com superfícies contaminadas pelo vírus, ele sabia muito bem o que estava fazendo! Vítimas da doença do "homem louco", prepararam ataques em aglomerados, sabiam se desviar, lutar, espalhar os seus maus para todos, saltavam mais de 10 m, lunáticos incontornáveis que resistiam ao máximo contra as investidas porque evoluíram a consciência para saber o que deveriam fazer.

Disseram que os outros não precisavam se alimentar e os corpos eram tão resistentes quanto qualquer tipo de metal. Mesmo após a decomposição da carne, permaneciam fortes nos últimos segundos em que os músculos estragavam e não poderiam lutar como antes. A doença do homem louco se expandiu em proporções surreais. As famílias mais privilegiadas, pelo apoio do exército, conseguiram encontrar segurança com homens armados, mas não duraria por muito tempo para alguns fracos à mercê do destino em um local escolhido.

As portas da igreja estavam trancadas com tábuas e a comida estava acabando. Rezas, todas as noites, não foram suficientes para acalmar as almas. Então, todos decidiram o mesmo: ganhar o perdão de Deus em seus últimos segundos de desespero. Como um dos pais de famílias mais importantes, presentes na casa de Deus, o meu voto faria diferença, e todos estavam aguardando.

Nosso lugar particular isolado era preenchido por timbres e lágrimas lamuriando de forma quieta. As pessoas abraçando umas às outras, e um som, do lado de fora, quebrando as tábuas com suas mãos resistentes e penetrando a madeira, socando sem parar com os seus berros espalhando-se pelo vento e absorvendo ele como se tivesse sido mais uma vítima... Cada vez mais o número aumentando, e todos ouvindo as pancadas nas paredes de todas as partes, vindo pelas criaturas do outro lado, aumentando e se tornando mais forte e consumindo qualquer tipo de resistência do lado que nós estávamos.

De maneira alguma participei e não estive aqui nos finais de semana, ninguém esteve presente de verdade para ouvir as palavras do Senhor e os evangélicos dos 12 apóstolos. Foi tão automático quando me perguntaram, todos olhando para mim, se eu iria concordar e receber o perdão de Deus. A minha boca respondeu automaticamente que "Sim", mas minha mente estava apenas navegando no medo e tentando confortar os meus filhos e mulher.

O padre fez sua última oração, enquanto eles estavam prestes a invadir, aumentando em uma aglomerações infinitas. Os soldados começaram a disparar, eu só queria estar naquele momento antes que a chacina começasse, pelo menos uma vez ter participado nas orações e ouvido a palavra do padre quando perguntou se deveríamos cometer o maior crime de todos em um suicídio em massa.

Além do desespero trancados aqui e os "Homens Loucos" prontos para entrarem, nada mais nos abalaria. Os disparos de arma passaram despercebidos por mim... Nos últimos momentos em que finalmente estávamos agonizando até a morte, os soldados se atacaram uns atirando nos outros. Só restavam apenas os últimos suspiros, o medo, sangue escorrendo e o silêncio na casa do Salvador, enquanto tudo acabou lentamente em um grupo de corpos... Se Deus existisse mesmo, teríamos ganhado perdão ou seríamos mais uma peça pela podridão humana, ouvindo as madeiras batendo em um lugar preenchido por multidões famintas.

O sangue estava jorrando pelo meu corpo em suas perfurações de bala. A maioria morta ou agonizando em seus últimos segundos até finalmente se entregarem. Pude perceber, os meus olhos não foram traiçoeiros, quando as portas foram arrombadas, e aquelas multidões de pés penetraram. Os seus olhos observando a carne destruída, o espanto e os que estavam contemplando, não transmitiram nenhum tipo de vocábulo. Suas armas estavam direcionadas para exterminar, mas já fizeram isso do lado de fora, e os homens do exército, para nos salvar, enxergarão o que restou da carnificina interna, o suicídio em massa.

Eu sabia que deveria ter controlado as emoções, não entregado diante da multidão, apenas por está. Poderia muito bem ter participado e pedido para que aguardasse mais um pouco, mas não! Segui as palavras do padre, apenas estando ali, e não participando. O meu último suspiro, vi a angústia dos semblantes dos soldados salvadores para o que restou do pessoal não contaminado pelos zumbis.

Autor: Sinistro

25/06/2020

Estranha Criatura (Parte 1)

Nesses dias aconteceram coisas muito estranhas comigo, eu não acredito muito em fantasmas ou espíritos mais ontem aconteceu uma coisa que me fez pensar um pouco sobre isso.

Meu nome é Ivan eu tenho 21 anos, à um tempo eu decidi sair da casa dos meus pais e com meu dinheiro comprei uma casa aqui por perto do bairro e então comecei a morar la. Na parte da noite aqui costuma ser bem barulhento porque minha casa é praticamente grudada com a dos vizinhos e então eu nunca liguei tanto pra barulhos estranhos no meio da noite.

Era mais um dia de trabalho eu tinha chegado tarde em casa ontem, por isso eu entrei tomei um banho e fui direto pra cama porque eu precisava descansar para ir trabalhar no outro dia, então eu fechei a porta do meu quarto me deitei e fechei os olhos...

Depois de alguns minutos eu acordei com alguns barulhos, eu nao liguei no começo, até que eu notei que os barulhos estavam dentro da minha casa. Eu pensei que era um bandido ou coisa assim porque não temos muita segurança aqui no bairro, então eu fui agachado para não fazer nenhum barulho e chegar o que era, eu sei que eu deveria fingir que nada aconteceu pra não ter risco de levar um tiro ou ser esfaqueado mais eu não estava pensando direito porque eu estava muito cansado e não tinha dormido quase nada.

As casas ao lado estavam muito quietas nem parecia que eu morava perto de vizinhos, sem pensar muito eu levantei e fui até a porta e abri ela devagar pra não levantar a atenção de quem estivesse dentro da minha casa, foi a pior escolha que eu fiz na minha vida, o barulho de coisa arrastando ecoava no corredor me fazendo ficar com um pouco de medo.

Eu olhei bem na cozinha que era de onde estava vindo o barulho, na hora o barulho parou e eu não vi nada, fiquei um tempo olhando a cozinha com dúvidas de o que era que estava fazendo o barulho,eu me virei rindo de mim mesmo por estar com medo de coisas da minha cabeça.

Eu ia em direção para a cama e então eu ouvi o estralo da cadeira, quando eu virei... não consigo explicar o que era, eu apenas vi olhos me observando no escuro, olhos brilhantes me olhando fixamente, eu não conseguia nem piscar eu havia ficado paralisado de tanto medo que eu senti na hora, eu pensei em gritar mais tinha medo de que acontecer algo comigo.

Eu pude ouvir a figura estranha cochichando pra mim: "Isso é apenas um sonho ruim", ela começou a se aproximar de mim e antes que eu pudesse correr, tudo ficou escuro eu acho que eu desmaiei de medo não sei ao certo o que tinha acontecido aquela hora.

Hoje de manhã eu acordei na minha cama como se nada tivesse acontecido, porém, eu senti que havia algo na minha mão, ao abrir a minha mão eu me deparo com um papel, eu abri para ver o que tinha nele e estava escrito: "Aguarde" eu fiquei preocupado porque como eu teria um papel na mão se eu estava dormindo.

Olhei para o despertador ja era 9:35 eu já estava atrasado pro trabalho, então eu corri e fui escovar os dentes e peguei uma maçã para comer no caminho, eu voltei para o meu quarto para pegar minha blusa já que estava muito frio aquele dia, e então eu lembrei do "sonho" que eu tive e foi ai que tudo se clareou na minha mente e então eu lembrei da frase: "Isso é apenas um sonho ruim" eu não consegui ver a face da criatura, essa noite eu estou com medo de dormir aqui novamente.

Autor: Ivan

24/06/2020

Não podemos saber o presente porque ele pode vir impiedoso

Algumas pessoas nascem para brilhar na vida, fazer sucesso e desfrutar de dezenas de companheiros, que não são falsos. Em outras ocasiões, existem outros que não têm nada na vida, além do pouco para sobreviver. Eu me encontro nesse pequeno grupo vivendo como parasita, apenas existindo e respirando. O meu próprio pai não conheci, algumas fotográficas presevavam o seu rosto dentro do pequeno baú. Lembro nos dias dos pais e ocasiões especiais que todos os companheiros do colégio levavam os seus progenitores, e eu era a única criança que não podia desfrutar desse conforto. A mamãe nunca falou sobre ele, esperou eu fazer idade suficiente para dizer que era apenas um drogado que morreu sobre o uso excessivo de cocaína.

Na fase adulta, minha vida seguiu normalmente, como qualquer outro jovem da minha idade. Havia cursado a faculdade da região, fiz alguns parceiros e até consegui uma namorada, tão bela que eu não merecia tudo isso que ganhei em momentos bons da minha vida. A realidade é tão traiçoeira quanto o hamster nos olhos de um gato predador, nós sabemos que as coisas não são tão boas para quem tem a tendência a atrair energias ruins em seus caminhos.

Começou parecendo mais uma madrugada despertando após um sonho desagradável, mas isso se repetiu dezenas de vezes. Consegui apoio dos meus poucos amigos enquanto não estava mais cochilando normalmente e parecendo cada vez como um cadáver caminhando exausto e cansado. O terapeuta perguntou como estava sendo meu relacionamento, e repliquei que bem. A minha namorada era perdidamente apaixonada por mim e fazia de tudo para me agradar. As perguntas do cara atrás da mesa foram para outras situações, mas em nenhuma delas eu estava vivendo uma vida desgastante, além dos sonhos que me acordavam gritando na madrugada, e minha mãe aparecendo na minha cama para perguntar o que estava havendo, enquanto eu controlava os verbos na minha boca sendo abraçados por soluços.

Dentro de uma casa organizada, com gato deslizando em um pequeno amontoado de travesseiros, observava a minha namorada com o corpo nu, suas curvas atraentes mergulhando na banheira e pegando um pouco de shampoo com cheiro de hortelã. De forma majestosa, ouvindo um pequeno rádio, próximo das escovas de dente, sons de Nicolo Paganini. Seus braços brancos começam a espalhar outros aromas dentro da água. Relaxada, afunda um pouco o seu corpo, deixando apenas a região acima do pescoço... Submersa, durou alguns segundos até que a água ganha forma parecendo uma boca monstruosa e começa a mastigar o seu corpo, devorando a carne, enquanto eu posso sentir como se tivesse apreciando tudo ao seu lado e sem poder fazer nada! Cada pedaço fragmentado da sua estrutura física é esmagado e se misturando ao líquido na banheira que começa a transbordar. O seu felino aparece lambendo aquilo que sobrou com o tom rubro.

Me encontrei em várias vezes, nos últimos dias, com os batimentos cardíacos machucando o meu peito, os joelhos na altura dos ombros e segurando apertado para tentar encontrar conforto, após mais uma vez sonhar com a mesma coisa e sempre parecendo tão real quanto a noite anterior. Os conselhos, tratamentos e medicamentos não foram suficientes quando finalmente o pesadelo se tornou real...

A minha namorada não estava se sentindo bem com a minha situação, nunca disse para ela sobre os pesadelos que estava sofrendo. Porém, naquela situação, deveria ter mencionado algo. Em uma diversão como qualquer outra, Lacie, minha companheira, decidiu se aventurar com alguns companheiros em uma praia deserta e proibida por causa da falta de segurança. A notícia chegou quando eu finalmente estava descansando melhor, sabendo lidar com o infortúnio, a mensagem foi direta ao ponto, na região mais dolorosa do meu coração, quando disseram que ela foi atacada por tubarões e morreu enquanto surfava com os seus amigos.

Não é fácil você perder alguém que realmente ama, nas redes sociais é muito simples colocar "luto" e fingir que realmente se importa, mas, quando os sentimentos são reais, não é bem assim. Sofri por muito tempo e, no meio do tormento particular, algo estava tendo espaço e inundando qualquer tipo de aflição que eu deveria estar passando, quando começaram a acontecer eventos estranhos em minha vida: começando com pesadelos, da mesma forma que ocorreu há uns meses, repetindo-se dezenas de vezes e torturando-me lentamente até que se tornassem reais.

Demorei muito para perceber a situação horripilante que estava passando, era tudo tão evidente e acertando o meu nariz em socos que fui estúpido demais até acontecer com mais alguém próximo de mim. O meu irmão mais velho, o orgulho da família, servindo o exército dos Estados Unidos em combate contra os terroristas. No sonho, nós estávamos jantando na mesa: a mamãe, o meu futuro padrasto, eu e o meu irmão, tudo parece normal, até que encaro em sua direção e vejo Matt, o meu irmão, sem cabeça! O líquido vermelho saltando do seu pescoço e ele conversando como se nada tivesse acontecido, e eu afundando lentamente na cadeira vivendo um pânico particular.

Esse pesadelo se repetiu nos últimos dias... era a mesma coisa, aquele jantar reunido a felicidade, os outros prazerosos e saboreando a mesa repleta de alimentos deliciosos. O meu irmão, ganhando atenção de todos por estar conosco, pintando todos os alimentos com seu sangue escapando do buraco em seu pescoço, e todos se alimentando do líquido da sua morte. Isso demorou por muito tempo, cada vez mais doendo e me machucando como se fosse a primeira vez e perfurando em todas as migalhas dos meus sentimentos. Mais uma vez, não disse para ninguém, jamais desejei ser o louco do local, mas a notícia chegou, e nós ficamos sabendo que Matt havia sido morto em uma missão, na qual algo atingiu a sua base e sua cabeça explodiu igual uma bexiga. Nós recebemos apenas um tronco, e o caixão ficou lacrado, a cerimônia foi rápida e o manto da morte pairou em cima de nosso lar.

Quanto mais eu estava suportando a ansiedade dos ocorridos, mais aumentava os incidentes. O mais recente foi com meu companheiro de bebedeira, o cara que considerava melhor amigo, aquele tipo de gente que você sabe que nas horas exatas vai estar contigo. Nos pesadelos, Kenny estava em um parque, alimentando pombos, sentado em uma cadeira com os pés cruzados, e os pássaros cada vez mais aumentando para engolir as sementes de milho. Kenny estava sereno e bem-vestido, o lugar brilhava como um paraíso, e suas mãos jogavam cada vez mais alimento para os pombos. Logo, a beleza ganhou vislumbres sombrios e a atmosfera ficou tensa: as nuvens escureceram, o meu amigo se levantou do banco da praça, puxou sua camisa mostrando a região da sua barriga, e o seu corpo, em poucos minutos, foi ganhando tons vermelhos e começaram a sangrar até que o meu companheiro caiu morto no chão, e os pombos começaram a afligir o seu corpo com seus bicos incansavelmente... Acordando-me logo em seguida.

Coisas de quando o homem não raciocinava... Depois disso e os cálculos mentais, que nenhum ser humano pode controlar, algo dominando sua mente, atormentando de todas as formas possíveis e de maneiras inexplicáveis. Em algumas delas parecendo fantasias em comédia, eu observei o meu cachorro dachshund aparecendo em meus sonhos esmagado e triturado com sangue escorrendo em seu corpo. Na naturalidade doentia de ser, pedaços de ossos saltavam por sua pele, e as marcas do pneu negras em seu corpo brincavam pelas causas da sua morte. Isso durou bem menos do que eu esperava, sua língua amorosa, alisando os meus pés, pareciam suficientes até a realidade ser concretizada. O meu dog fora atropelado, e observei o que sobrou de sua estrutura física, triturada pelo asfalto.

A primeira vez durou meses, na segunda semanas e, nos outros ocorridos, envolvendo pessoas aleatórias no caminho do meu dia a dia, ficou por dias e agora foram horas. Eu estava pronto suficiente quando a notícia chegou que o meu companheiro Kenny havia sido brutalmente atacado, após resistir a um assalto em uma praça, contra alguns viciados e vagabundos. Antes da notícia que me deixaria despedaçado, ainda mais fragmentado e psicologicamente instável, antes da porra toda, nos últimos dois dias, eu já estava enxergando-o como um morto-vivo pronto para ser entregue ao destino, e a maldição se confirmou em meus presságios noturnos.

Depois disso, as coisas não foram mais como antes, o tormento e a inquietação se tornaram em um verdadeiro inferno. Na televisão poderia ver pessoas mortas, na vida real e no meu caminho, sacos de carnes vivas prontos para morrerem. Suas identidades foram substituídas por um semblante apagado, apenas uma parede branca com desenhos surgindo em traços esqueléticos.

Eu cada vez mais estava vendo a morte de todos, me sentia em um cemitério vivo, caminhando entre os mortos e falando com eles como se fizesse parte. Os remédios para dormir não duraram por muito tempo porque o meu corpo se tornou resistente e, no pico da degradação, acabei adormecendo... desmaiando por algumas horas: uma overdose, semelhante a do meu pai, penetrou o que restou de mim. Acordei e não queria que isso estivesse acontecido...

As pessoas acham que quem está em coma ou adormecendo por algum inconveniente, não têm noção do que acontece com o seu cérebro ou esquece de tudo, no meu caso, não! Fiquei muitas vezes, em quantidades que eu não podia contar, sonhando com o mesmo ocorrido, envolvendo minha própria ruína em uma morte. No pesadelo, encontrava-me no lúgubre, dentro da minha casa, alguém abria a porta do meu quarto, e estava pronto para fazer qualquer tipo de coisa. A minha mãe aparecia, a visão se escurece por alguns segundos. Em mais um relance do tormento, eu estava tentando escapar, pressionando a maçaneta da porta e logo sendo golpeado, mas o meu corpo já estava ferido bem antes disso. Nas poucas lembranças da carnificina particular, caio, olho para trás e vejo minha genitora com suas mãos sangrando e segurando uma faca.

Estive trancado na minha casa após receber alta, não falei com a minha mãe, a única pessoa que morava comigo, por muito tempo. Ignorei ao máximo que pude, e todas as suas tentativas de saber o porquê foram frustradas com a porta sendo fechada diante do seu rosto. A sensação de ataque foi aumentando com coisas pequenas pelo canto dos olhos, observando vultos se escondendo onde não havia ninguém, minha própria visão no espelho se movimentando contra minha vontade, enquanto os meus olhos estavam ocupados em outra direção. Desfrutava de uma certeza que a morte estava planejando algo contra mim.

Usei todo tipo de coisa ilegal para não fechar os olhos, enquanto estava em cima da cama, cuspia palavras de baixo calão para qualquer um que ligasse ou batesse na minha porta. Foi nesse entardecer que senti a sensação de que algo iria acontecer com mais intensidade. Não como as outras vezes, agora toda a vitalidade do meu corpo estava escapando entre as paredes e um vazio tomou conta do meu mundo. Senti uma brisa fria aparecendo de lugares onde não existia nenhum tipo de contato com o mundo exterior e enxerguei a porta do meu quarto sendo aberta, a figura da minha mãe com sua roupa de dormir encarando-me.

Ela se movimentou rapidamente, bem mais do que eu esperava. Recuei instintivamente, e ela se jogou em cima da cama como um animal de quatro pernas. A faca estava embaixo do meu travesseiro e acertei o seu corpo em quantidades que eu não podia controlar, mas suficiente para escapar. Fechei a porta do quarto atrás de mim, escorreguei logo depois para ouvi os seus passos sendo carregados em minha direção por uma segunda vez.

Creio que não senti na primeira vez ou não percebi enquanto fui acertado dentro do meu quarto, mas algo estava ardendo nas minhas costas e coloquei a minha mão esquerda para trás para ver o sangue fresco. Em pedaços, me dirigi à porta de saída, um pouco tonto. Pressionei a maçaneta, e o ferrolho estava trancado, a chave não se encontrava no mesmo local de antes. No meio do tormento, algo me jogou contra a madeira em obstáculo, eu pude sentir como um soco, no entanto, bem mais doloroso, suficiente para roubar minhas forças. A reação do meu corpo foi para cuspir um líquido quente entre meus dentes.

Contorci o meu pescoço dolorosamente na direção contrária. Igual o pesadelo, pude vê minha mãe com seus braços sangrando utilizando uma faca nos seus dedos, mas ela logo caiu em seguida, e o agressor estremeceu seus lábios em minha direção com os seus olhos penetrantes, o sorriso maléfico. Enquanto finalmente tudo estava roubando o que existia da minha vida, eu pude enxergar, por uma última vez, o meu pai segurando o machado...

Autor: Sinistro

20/06/2020

Visões de um crime

Comecei a perder a visão logo no início da adolescência por conta de uma doença, que passou de gerações a gerações a algumas pessoas da nossa família. Demorou muito tempo, até que finalmente, após alguns anos, recebi a notícia de que iria fazer a tão esperada cirurgia de córnea. Fiquei muito feliz porque iria enxergar as coisas perfeitamente, pois já não conseguia distinguir o rosto da minha mãe, do meu pai, do meu irmão mais novo... Nem o rosto da minha namorada sei como está. Mesmo com problemas de visão, ela sempre estava comigo, ajudando-me e apoiando de todas as formas possíveis.

No hospital, alguns minutos antes de começar a cirurgia, o médico falou que o homem que vai doar seus olhos tem quase a mesma idade. O doutor não falou nada além disso, então foi realizado o ato cirúrgico. Acordei depois de um pesadelo — um sonho estranho no qual vi um homem sendo espancado brutalmente. Chamei a minha namorada e esta me abraçou. Depois algumas horas, o médico tirou as ataduras do meu rosto: pude ver, mesmo que de forma embaçada, algumas coisas ao meu redor. Logo depois de algumas semanas, minha visão estava perfeita.

Comecei a estudar e trabalhar para me sentir independente. A união com a minha namorada foi ficando mais sério ao ponto de eu querer me juntar a ela. Mas tinha algo estranho acontecendo... era um tipo de visão. Não eram sonhos; eram visões de um homem e uma mulher. Às vezes, tenho a mesma visão dele, sendo agredido e morto... acordo nessas horas e meus olhos começam a queimar. 

Quando isso acontece, dói como se houvesse duas facas enfiadas em meu rosto.

Depois de alguns meses, com a minha nova vida, não parava de pesquisar para tentar saber quem era a pessoa que me trouxe a visão de volta. Pelo tempo que estava enxergando, logo aprendi a mexer na Internet e consegui identificar o homem do qual eu tinha recebido o transplante. De acordo com as informações da Internet, nos dados de doadores da cidade, o doador mora a alguns quilômetros de minha casa. Queria muito visitar sua casa... saí com o carro, o veículo da minha namorada. Fazia algum tempo que ela não dirigia, desde aquela noite em que chegou tarde à casa da mamãe. Sei que tinha uma tempestade muito forte nesse dia; a minha namorada não disse o que aconteceu, mas sei que foi algo grave, tão grave que esta passou a rejeitar o próprio automóvel.

Cheguei até a casa. Pensei em bater à porta para falar com alguém, mas fiquei apenas observando, pois faltou coragem. Quando estava saindo, uma velha olhou para mim e olhei de volta para ela. A vovó disse que reconheceu meu olhar... ela perguntou se eu queria alguma coisa, mas respondi que não, que apenas estava de passagem. Esta continua falando sobre os meus olhos. Eu disse que tinha feito uma cirurgia de transplante e queria dar um "oi" para um dos familiares do rapaz, de quem tinha recebido meus olhos. A velha mulher deu um sorriso e disse que se tratava de seu neto, o qual ela criava como um filho e que fora assassinado.

Eu não queria incomodar nem reviver feridas passadas da velha, mas ela parecia querer conversar, então fiquei escutando. A vovó disse que antes de morrer, seu neto era apaixonado por uma garota e planejavam casar-se, mas numa noite, esta foi vítima de um acidente, deixando seu namorado louco, sem conseguir trabalhar nem continuar vivendo em paz sem a amada. Segundo suas palavras, o pior foi que a pessoa que atropelou a namorada de seu neto não prestou socorro e ela morreu afogada numa poça de água, que se formara naquela noite horrível de tempestade. A velha ainda disse que seu neto passou a viver em bares, arrumando brigas — e numa dessas brigas, acabou sendo espancado até a morte.

Fiquei chocado com as palavras, pois tinha muitas visões de uma pessoa sendo agredida. Acho que se tratava do jovem do qual recebi o transplante de córnea. Perguntei se os responsáveis foram presos; a velha disse que não, pois eram afiliados de gangsters da região, um grupo de cinco jovens com pais perigosos. Ninguém se metia a enfrentá-los, nem mesmo a polícia. Saí do lugar, pálido e angustiado. Um olhar de choque se fez em meu rosto, pois eram informações demais em um só dia... e uma tragédia enorme, envolvendo alguém que fora responsável pela minha visão.

Estou voltando do trabalho; é sábado, dia 29 de dezembro. Logo o ano vai acabar e vou poder assistir aos fogos de artifício, explodindo para um ano feliz a mim e à minha família. Parei o carro em um posto de gasolina para abastecer. Estava distraído, esperando o tanque ficar completo, quando vejo alguns rapazes passando com garrafas, vestidos como arruaceiros — grupos de gangues. Nesse momento, meus braços começaram a tremer e eu já não conseguia mais mexer o meu corpo. Comecei a ficar com frio e meus olhos foram ardendo, doendo o suficiente para que os fechasse... tive uma visão: vi aqueles garotos espancando um outro alguém até a morte. Era o alguém com quem ficara sonhando algumas noites atrás. Nesse momento, tive consciência de que os meus pesadelos se tornaram reais.

Os meus olhos não param de doer. Depois que o tanque do carro finalmente encheu, encostei-me em uma garagem pública, com a cabeça no banco do carro, e apaguei...

Desperto com o meu corpo doendo em várias partes e a mente girando como uma labirintite. Uma vontade de vomitar fica rodando na minha barriga e estou sentado ao chão, banhado de sangue. Aos poucos, minha visão vai deixando de ficar embaçada e noto corpos brutalmente assassinados: são aqueles rapazes. Pelo visto, eles foram espancados e esfaqueados. Há uma faca próxima aos meus pés. Saio do local e consigo entrar em meu carro; mesmo banhado de sangue, ninguém me notou. Volto para minha casa e algumas horas depois recebo notícias de que um grupo de jovens da região foi aniquilado em uma carnificina. Até o momento, a polícia trata tudo como uma briga de grupos rivais.

Após essas mortes, passaram alguns meses e casei com a minha namorada, que disse que estava pronta para nós temos filhos. Nós estávamos muito felizes. Em um momento no qual estávamos conversando e falando sobre nossas vidas, ela disse que queria contar-me um segredo. Um segredo que guardou de mim... então, começou a falar que em uma certa noite estava chovendo muito. Ela queria muito chegar em casa. Num momento de distração, porém, atropelou uma mulher que atravessou a pista e o namorado desta foi morto meses depois, vítima de espancamento.

Quando eu escuto essas palavras, os meus braços começam a tremer. Comecei a suar, minha visão foi escurecendo e os meus olhos não paravam de arder. Até que tudo ficou escuro...

Autor: Sinistro

18/06/2020

A mudança é completa

Olhos muito separados. Nariz grande demais. Cicatrizes de acne. Dentes tortos. Corpo magro e flácido. Todas essas características me renderam vários apelidos na adolescência, e consequentemente, uma baixa autoestima. Eu poderia dizer que precisar me olhar no espelho seria o ponto baixo do meu dia, mas isso nem se compara a ver o feed do Instagram, ou assistir minhas colegas de trabalho se maquiando no banheiro. Até outdoors me deixavam com um peso na alma, com seus rostos perfeitos e sorrisos alinhados.

Tais pensamentos deveriam desaparecer quando Jonas, um homem bonito e um dos jovens mais bem sucedidos do meu trabalho, me convidou para sair, mas, por Deus. Tudo só piorou. Mesmo depois dos inúmeros encontros, do pedido de namoro e do brilhante fio de ouro que envolvia meu dedo anelar, eu ainda me sentia indigna de estar com ele. Sentia minhas costas queimarem com os olhares maldosos dos nossos colegas, escutava cochichos e risadinhas quando estava com meu noivo. Todos pensavam a mesma coisa: ele é demais para ela. Olha que mulher feia, que magia negra ela fez para prender esse homem?

Bem, eu não era a única da relação que me sentia insegura quanto a minha beleza, ou melhor, a minha falta dela. Jonas poderia me amar pelo o que sou por dentro, mas não era cego e nem bobo, sabia muito bem o que as pessoas falavam por trás. E o pior, ele se importava. Eu consegui ver o constrangimento estampado em seu rosto quando me apresentou para seus pais. Jonas nunca postou fotos nossas, e quando alguém que não me conhecia se aproximava, eu era apenas apresentada pelo nome, nunca era “essa é Elisa, minha noiva”.

Dito tudo isso, tentei não ficar ofendida quando ele me disse que conheceu alguém. Não uma mulher, mas sim um homem, mais especificamente um cirurgião plástico. “Sem pós-operatório, em apenas um mês você será uma nova mulher. A mudança é completa”, prometia o anúncio mostrado por Jonas, que estava totalmente entusiasmado.

No dia seguinte estávamos na sala de espera do Dr.Dario, somente nós dois e uma recepcionista deslumbrante que não deixei de invejar. Minutos depois sua voz monótona chamou meu nome e fui encaminhada para uma sala inteiramente branca. Dentro dela havia apenas uma espécie de balança digital e uma poltrona cheia de aparatos tecnológicos com um capacete estranho. Me lembrava um pouco uma cadeira elétrica.

“Você precisa ficar totalmente nua, vamos tomar todas as medidas do seu corpo. A mudança é completa” uma voz masculina veio de um canto da sala, porém, não havia ninguém exceto eu. Me despi, tremendo com o frio do lugar climatizado e também com um medo repentino e quase instintivo que se abateu sobre mim. Sinais de alerta pipocaram em meu cérebro, mas permaneci onde estava.
A próxima instrução veio logo após minha última peça cair sobre meus pés, me dizendo para subir a balança. Me senti desconfortável ao imaginar que alguém estava me vendo de algum lugar e não pude deixar de cobrir minhas intimidades, mas não questionei a natureza das ordens. Eu passaria por qualquer coisa para melhorar minha aparência patética.

Ao colocar os pés na balança os senti esquentar. Uma onda de calor subiu por todo meu corpo e as luzes na sala piscaram algumas vezes. No pequeno monitor do aparelho passaram vários números e logo percebi que não se tratava apenas do meu peso, mas sim de todos os valores correspondentes às minha medidas. Minutos depois a temperatura caiu e o monitor tornou a ficar vazio.

“Pode colocar suas roupas e aguarde uma de nossas funcionárias para a coleta” proferiu a voz. Eu apenas obedeci cegamente, imaginando que a “coleta” seria feita naquela poltrona estranha. Depois de me vestir, me aproximei dela, a examinando e imaginando sua função.

- Não toque em nada. – eu pulei de susto quando uma garota loira apareceu atrás de mim. Trajava vestes de enfermeira pornô, vestido curto, lábios vermelhos e decote avantajado. Arrastava um carrinho de bandeja coberto com pano branco. – Vim fazer a coleta.

- E a poltrona? – perguntei, e a expressão dela ficou mais sombria.

- É para a próxima etapa, daqui a um mês. – ela afastou o pano do carrinho e pude ver uma seringa, ampolas, garrote, algodão, álcool, um saco plástico e uma tesoura.

Ela fez o processo básico de coleta de sangue: apalpou minhas veias, apertou o garrote em meu braço, desinfetou o local da punção e montou a seringa. Meu sangue encheu três ampolas e quando achei que estava acabado, a enfermeira habilmente cortou uma mecha do meu cabelo e depositou no saco plástico. Logo depois de vedá-lo, a mulher se retirou e disse que eu podia fazer o mesmo.

Comentei com Jonas, com amigas, com meus familiares, e todos acharam muito estranho todo o procedimento, mas diziam que eu não podia reclamar, o que relutantemente concordei. Além de ficar linda ao final do processo, não era eu que ia pagar. “Você tem sorte de ter o Jonas”, disse minha mãe, e eu apenas assenti. Eu era mesmo muito sortuda.

Um mês se passou com a lentidão de um conta-gotas, e lá estávamos, eu, Jonas e a recepcionista. Fui informada que o procedimento duraria um dia inteiro, e que depois que eu entrasse na sala meu noivo seria dispensado. Nada de acompanhantes. Fui chamada e recebi um beijo de Jonas.

- Mal vejo a hora de ver você de novo. Não se preocupe, você ficará linda. – ele sussurrou enquanto nos despedíamos. Eu forcei um sorriso porque, no fundo do meu peito, eu sabia que só queria que Jonas pensasse que sou linda agora.

Entrei na mesma sala de um mês atrás, mas agora tinha companhia. Duas enfermeiras, com aquele mesmo uniforme que qualquer um encontraria em um sexshop, e um senhor careca, alto e de jaleco, segurando um carrinho metálico coberto com um pano. Uma das mulheres segurava um bastão metálico e a outra uma bola de ferro.

- Eu sou Dr.Dario. – ele se apresentou e reconheci a voz que ditava o que eu fazia na primeira vez que eu estive ali. Eu abri a boca para fazer o mesmo, mas Dario levantou um dedo e tocou meus lábios – Silêncio. Apenas tire a roupa.

E mais uma vez obedeci sem questionar, porém bem mais constrangida do que da última vez. Uma terceira mulher (acho que não preciso mais dizer que todas ali eram perfeitas) apareceu apenas para recolher minhas vestes.

Dario apontou para a poltrona e eu me sentei. Não pude deixar de me sentir como um cão adestrado, com um mestre sem afeto e que não parecia se importar com minha opinião. Ninguém me perguntou como eu gostaria de ficar, apenas disseram que seria mudança completa, e que ficaria linda, como se fosse um maldito veredito. Tão certo quanto o nascer e o se pôr do sol.

Logo que me sentei, a poltrona se reclinou como um assento de carro. Senti um metal envolver meus meu braços, pescoço e barriga. Tentei mexê-los, mas todo esforço era em vão, até respirar era difícil. Somente minhas pernas estavam livres, mas essa liberdade durou pouco. Meus joelhos foram separados e minhas pernas foram abertas quase em um espacato. Logo todas as minhas juntas estavam imobilizadas.

O fato de estar totalmente nua e em uma posição tão vulnerável e constrangedora me apavorou. Comecei a gritar para me soltarem, mas minha voz foi calada quando empurraram a bola de metal em minha boca. Engasguei com o objeto e com minha própria saliva, o que só fazia meu pânico aumentar. O bastão que uma das enfermeiras usava encostou em meu peito nu e senti uma onda de choque percorrer meu corpo.

- Calma, Elisa. Você ficará perfeita. A mudança será completa, só precisamos de uma parte significante sua. Na verdade, é quase tudo o que torna essa sua casca imperfeita a Elisa, a noiva do Jonas. Não se preocupe, essa parte continuará viva, mas não aqui.

Eu ouvi, porém não compreendi o que Dario disse. Tudo o que eu compreendia era minha dor, até ela simplesmente sumir quando o capacete foi colocado em mim. Era como se minha mente se separasse do corpo e eu levitasse. Logo minhas memórias do dia passaram diante dos meus olhos. E as memória de ontem. E da semana passada. Do mês passado. Do ano passado.

Eu vi quando conheci Jonas. Eu vi quando minha vó morreu. Eu vi quando fui aceita no primeiro emprego. Eu vi as festas de faculdade as quais eu sempre estava no canto. Eu vi meus colegas de escola me chamando de “Garibalda”, igual a garota no seriado. Eu vi meu primeiro cachorro. Eu vi meu pai antes de nos deixar por uma nova família. Eu vi minha primeira queda de bicicleta. Eu vi as Barbies que eu tanto desejava ser. Eu vi tudo. E então as memórias pararam de girar na minha cabeça e eu retornei para a dor.

- Está completo, senhor. – disse uma voz feminina. O capacete foi retirado.

E começou. Dario se colocou entre minhas pernas e abriu o jaleco, revelando sua nudez. Eu tentei chamar por socorro, implorar por clemência, mas a bola de metal me impedia. Só me restava a dor e choro. Senti grampos, agulhas, facas. Alicates puxaram meus dentes e dedos. O médico revezava seu membro e o bastão de choque para me ferir por dentro. A pele de todos os cantos do meu corpo foi esfolada, e eu já não poderia contemplar o resultado porque estava sem olhos. A serrote arrancou meio seio esquerdo e minha perna direita, e a furadeira traçava seu caminho tortuoso em minha costelas. Apenas o choque me acordava quando perdi sangue demais para estar consciente. Já não precisavam me silenciar, e então tiraram a esfera metálica um pouco antes de cortarem minha língua. 

Rezei para cortarem também minha garganta, mas só o fizeram quando meu estômago estava aberto.
E finalmente, o silêncio. 

...

Eu acordei esperando sentir dor depois dos procedimentos estéticos – que não faço ideia de quais sejam – e sorri ao lembrar que não havia pós-operatório, então eu estava novinha em folha. Era como acordar de uma soneca a tarde, totalmente revigorada, e não de uma transformação que durou 24 horas. A minha cama era grande e confortável, e uma das paredes era revestida por um enorme espelho.

Quase gritei ao ver a mulher perfeita que eu tinha me tornado. Removi a roupa da clínica para inspecionar inteiramente o trabalho feito. Não havia cicatrizes, nem cirúrgicas, nem de acne. Era tudo tão natural que, apesar do meus seios e glúteos estarem bem maiores e redondos, não parecia haver silicone abaixo da pele. Pelo reflexo do espelho notei um armário atrás de mim que continha um vestido novo ainda etiquetado, sapatos dentro de uma caixa perfumada e um pequeno ramalhete de rosas brancas com um bilhete.

- Elisa Andrade? – uma voz feminina me assustou, e eu tentei cobrir meu corpo com as flores. Era a mesma enfermeira que coletou meu sangue e cabelo há um mês. Ela estava sorrindo. – A senhorita está bem? Podemos lhe dar seu almoço, ou você pode ir com o senhor Goulart.

- Ah, o Jonas já está aqui? – perguntei, e ri com a ideia de que pela primeira vez alguém parecia estar sendo gentil comigo por aqui. A mulher disse “sim” para minha pergunta. – Então eu quero ir com ele. Essa roupa foi ele quem trouxe?

- Cortesia do Dr.Dario. Vou dar licença para você se arrumar, estarei aqui na porta lhe aguardando. A propósito, meu nome é Clara.

Quando terminei, a mulher me guiou por um corredor longo e escuro. Consegui ouvir vários choros femininos, vozes de mulheres adultas que soavam como as de bebês aprendendo a falar. Achei melhor não perguntar nada, até porque Clara parecia nervosa. Andava cada vez mais apressada e me puxava por uma das mãos. Minha mão livre envolvia as rosas e o bilhete.

Atravessamos uma porta larga e paramos naquela mesma sala que estive dias atrás, quando era uma mulher muito distante da perfeição que me encontrava atualmente. Várias enfermeiras estavam ao redor de algo naquela poltrona que eu estava sentada ontem. Senti minhas pernas amolecerem ao ver que era um cadáver ser pernas, braço ou cabeça. As mãos enluvadas das mulheres separavam os órgãos do abdômen aberto.

- Calma, querida. Em todo hospital há cadáveres, e este está sendo estudado. Dr.Dario é bem rigoroso com nosso treinamento. – pude ver lágrimas se formando no canto dos lindos olhos de Clara – Todas nós passamos... Por isso. Tudo pela perfeição.

Antes que eu pudesse refletir sobre o que vi e ouvi, saímos da sala e fomos recebidas por Jonas. Seus braços me envolveram e nossos lábios se juntaram. Pela primeira vez vi que não havia vergonha pairando sobre ele enquanto os outros nos observavam juntos, e isso me deu uma mistura de tristeza pelo passado e satisfação pelo presente, enquanto ouvia elogios sendo sussurrados ao meu ouvido. Seus olhos foram direto às rosas que eu segurava e pode notar um pouco de ciúmes em sua expressão. Ficou tão óbvio que até Clara percebeu.

- É apenas um mimo do meu chefe. Todas as pacientes recebem o mesmo. – depois de ouvir isso, a carranca de Jonas suavizou.

- Amor, vou acertar o pagamento com a recepcionista. Vá para o carro e me espere. – meu noivo me entregou as chaves e se voltou para o balcão, não sem antes me dar mais um beijo luxurioso. 

Estava tonta de amor e desejo quando cheguei ao carro. Sentei no banco do passageiro e lembrei de quando estive na poltrona antes de tudo apagar quando o capacete pousou sobre minha cabeça. Senti um arrepio no meu corpo, mas meu reflexo no retrovisor me pôs de volta a realidade. 

Um pouco antes de Jonas tomar seu lugar, um pouco antes de irmos para o apartamento novo o qual meu noivo pretendia transformar em nosso lar, um pouco antes do casamento maravilhoso e do nosso filho que, por sorte, é a cara de seu pai, lembrei do bilhete que acompanhava as flores. Pude examinar os presentes do Dr.Dario melhor, e quando abri o envelope eu pude sentir o cheiro.

O cheiro de sangue.

Digitais vermelhas tingiam o papel de carta retangular. O odor rançoso empesteou o veículo e minha cabeça girou. As manchas só não me assombraram mais do que as palavras escritas por Dario, e não deixei de escutar sua voz em minha cabeça... Para sempre.

“Querida Srta.Andrade. 

Aprecie meu trabalho. Nosso trabalho. Eu cumpri minha promessa. Eu fiz a mudança. E a mudança é completa.”

Autora: Gabrielle Lima

16/06/2020

Já ouviu falar no Show de Manequins?

Antes de falar sobre o que aconteceu naquela madrugada e as consequências do que ocorreu comigo até hoje, irei começar o meu relato do princípio, quando era ainda uma criança com o nariz escorrendo meleca e se divertindo com os colegas do passado. Foi uma dessas ocasiões, quando nós estávamos subindo em uma mangueira para roubar algumas frutas, que eu acabei escorregando, deslizando sem conseguir me apoiar em um dos troncos e caí de forma desajeitada.

Não havia quebrado nenhum osso, muito menos me machucado de forma grave, mas, após aquele acidente, eu não conseguia mais dormir como antes. Os médicos falaram sobre um trauma na cabeça em uma região específica, que causou a minha insônia até hoje. Com certeza foi aí que tudo começou. Após alguns anos daquele incidente, eu já havia servido ao exército e estava podendo pagar meu próprio aluguel, ocupando alguns serviços meio bico, mas suficientes para uma grana. Mudando-me de uma casa para outra, fez com que eu pudesse ter o meu próprio lugar para descansar e comer.

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Esse dia seria como qualquer outro, ao conhecer um novo lar, novos vizinhos e um cheiro diferente no papel de parede mal desenhado. A propriedade, naqueles anos, guardava alguns móveis do ex-proprietário. As únicas coisas que eu precisava saber, quando paguei adiantado, era que não me preocuparia em conseguir uma mobília nova porque a falecida senhora, com muitos anos que viveu na residência, deixou alguns eletrodomésticos. Os seus filhos, sujeitos mal-encarados, alugaram por um preço bem atrativo. Era tudo que eu necessitava.

Como eu não conseguia dormir, ficava a maior parte da madrugada perambulando dentro dos quartos e móveis, que eu habilitei. Isso se tornou uma rotina desgastante e monótona, no entanto, aprendi a lidar com isso enquanto bebia algo vagabundo e fumava cigarros paraguaios. Tudo era apenas mais um acessório, já que eu desenvolvi uma mania própria, utilizando os televisores e fazendo um joguinho particular com os canais em estática.

Em outras ocasiões, eu estava sob o uso de álcool, mas não era suficiente para criar alucinações, já que aprendi a me adaptar e o meu corpo estava tão resistente quanto pedra sendo atingida por água no oceano. Naquela noite, com ventos sacudindo os telhados e janelas sem ferrolhos, batendo na parede sem cansar, que eu coloquei um cigarro entre os meus lábios, e ele ficou balançando para um lado e outro. A fumaça sendo consumida aos poucos sem, ao menos, eu dar um trago.

Antes de mais nada, no meio do devaneio psicológico, decidi fuçar os cômodos da residência para encontrar, pelo menos, algum rádio ou televisor. Cambaleando como um morto vivo na madrugada, explorei vários troços e porcarias, para achar uma TV escondida embaixo de alguns cobertores sujos com poeiras e outras coisas marrons que eu não consegui identificar. Tratava-se de um aparelho de 14 polegadas, a cabo, bem antigo. Não pensei muito para ter em posse e dirigir para onde estava posicionado o sofá. Coloquei em cima de um móvel, que ficou devidamente assentado, como se pertencesse aquilo, mas foi retirado por alguém. A tomada no lugar certo e as ligações com a antena devidamente preparada, só precisava conectar e ligar.

Pressionei o meu dedo no botão, exageradamente grande do aparelho, na parte direita. Um cheiro degradante de borracha queimada subiu, e imaginei que havia destruído o que restou daquele objeto, mas não. Naqueles segundos, imagens em estáticas começaram a ficar movimentando freneticamente, uma linha preta cortada de baixo para cima e um traço, ainda maior, no meio se movimentavam como uma dança. Animado e solitário naquela alvorada, pude perceber que o aparelho estava funcionando.

Tentei me adaptar ao menu, todos os canais estavam fora do ar, e eu fiquei impressionado: havia 64 emissoras e nenhuma funcionando direito. Isso tudo parecia feito para mim, naqueles momentos, porque contribuiu em seu estado estático e borrado para o meu jogo particular. Costumava ficar pressionando no botão de sincronização para que os canais fossem correndo e encontrando os que estavam com área. Geralmente eram os mesmos, mas, antes disso, eu sintonizava no meu relógio de braço para o segundo em que pararia em seus intervalos aleatórios. Muitas vezes fora do ar, e isso contribuía para me deixar cansado e fazendo o tempo passar naquelas horas de vigília.

Mas naquele dia não. Eu pude perceber, mesmo não funcionando devidamente, que algo foi colocado como favorito. O canal escolhido como preferido, sempre era selecionado no número zero. O local apresentava barulhos e imagens distorcidas, mas menos pior do que os outros. Nas ocasiões em que chegava no número 0, parecia que a TV iria sacudir.

Antes que chegasse no destinatário, fui mudando, me aconchegando no sofá e saboreando o Whisky com pedras de gelo. O cigarro ainda continua dançando nos meus lábios. Pressionei meu polegar várias vezes no controle remoto de forma frustrada porque parou de funcionar: bruscamente o aparelho continuou no canal 0, nada mais estava funcionando, nem mesmo o botão bizarramente grande desligava. Então parei ali para terminar a madrugada com o chiado.

Eu estava olhando para aquela tela ficando preta e, aos poucos, depois de alguns segundos, sem corresponder os meus comandos, a emissora foi ganhando imagens e ruídos familiares aparecendo ao fundo. Parece que demorei algum tempo refletindo e sendo entediado pela minha mente cansada, que as coisas foram ganhando proporções inusitadas. Como eu disse, estava aguardando o dia começar e tinha certeza que já havia ultrapassado às três horas da manhã. O canal foi ganhando formas, a estática desaparecendo rapidamente e mexericos de espectadores anunciaram um Top Show com uma cadeira no centro, uma plateia embaixo de uma câmera dando destaque para anunciar um possível apresentador, cortinas laranjas com alguns detalhes ondulados riscados.

Logo em seguida alguém surgiu com algo no rosto, de forma exagerada e bem típico daqueles shows de auditório, uma apresentação bastante animada e agitando, deliberadamente acenava para o público. A câmera distante agora vai ser aproximado para mais perto de onde ele havia sentado. O esquisitão, aparentemente ao vivo, ficou observando a plateia frenética em aplausos e gritos de garotas e homens. Quando finalmente a câmera estava próxima do sujeito, eu pude vislumbrar que se tratava de alguém usando uma máscara bizarra semelhante a uma ave. Sua voz falha, levando os espectadores a loucura com algumas piadas em alemão que eu não entendia a maioria, mas a plateia explodia em gargalhadas. O pouco que compreendi, era de humor negro bem pesado com abusos, violência, mortes atuais para época e mais antigas.

O apresentador, usando uma máscara assustadora, elegantemente bem-vestido, anunciava na sua linguagem que ia ficando cada vez mais difícil de compreender, mostrando uma tela grande com a projeção semelhante a um cinema. Em um local da parede, tinha destaque para figuras desenhadas e algumas imagens que, em todas as ocasiões, fazia a tela fica borrada do meu televisor. Mesmo dando uns tapas, não funcionava, e a interferência sempre incomodava nessas ocasiões. Não imagino o que se passava, creio eu que coisas típicas dessas opções de comédias ou algo que eu não poderia saber. O entretenimento, tão tarde da noite, parecia uma droga ao estourar o público da plateia em euforia e espanto. Depois das apresentações em algum tipo de projeção, aplausos duradores se divertiram.

O que fez o meu sangue congelar e o corpo parar de responder os meus comandos naquele momento, como uma paralisia do sono, foi no instante que a câmera finalmente apontou para a plateia repleta de manequins sentados, com rostos virados para a direção devidamente colocados. O sujeito continuava com suas piadas no sotaque alemão, e as risadas eram expulsas das caricaturas de gente, com faces contorcidas, gargalhadas plastificadas, olhos abertos, atentos e brancos. Tudo causava um pavor em cada momento que eu enxergava uma nova caricatura humana mais horripilante do que a outra.

As coisas foram ficando mais bizarras quando o apresentador ficava apontando o seu dedo para câmera e em direção da sua plateia. Os objetos sem vida, roubando aparência humana, claro que eles não respondiam, porém, atrás da visão da câmera, pareciam se divertirem, cochichar e murmurar um para o outro. Nos cortes dos seus diálogos e imagens do público sem vida, se comunicavam e, cada momento, eles pareciam mudar a posição e expressões faciais.

Eu não controlava mais nada e o desespero ficou entalado na minha garganta, junto com o grito na minha boca. Seja lá o que ocorreu, demorou minutos, no entanto pareceu que o tempo escapou para outra realidade porque a madrugada estava demorando bem mais do que o habitual. Em um certo momento, uma mulher com roupa de enfermeira e usando uma máscara também semelhante a do apresentador, como uma ave negra com o bico longo e apenas dois buracos para mostrar os seus olhos, carregava uma mesa com rodinhas, repleta de objetos pontiagudos, facas cuidadosamente guardadas.

Enquanto a mulher posicionava os objetos no centro do palco, se movimentando e fazendo o seu momento particular diante dos manequins, o apresentador foi se aproximando da câmera. Os seus braços agarraram nas duas direções e o televisor tremeu como terremoto, infelizmente a visão não ficou borrada como as outras vezes. Nesse momento, eu pude enxergar os seus olhos com veias no meio e encontrando a pupila. Sua maneira de movimentar muito rápido as íris atrás dos buracos da máscara, mostrando que, de maneira alguma, aquilo era um homem normal como os outros. Ele parecia penetrar através do vidro do televisor, vislumbrar meus olhos e senti o meu pânico.

Demorou alguns momentos, balançando o seu corpo e encarando como se conseguisse me enxergar. O meu corpo doeu ainda mais e pareceu que concretos de cimento foram deslizados em cada membro porque tudo parecia insuportável e frio ao mesmo tempo. Ficou ainda pior quando ele disse o meu nome, antes de voltar para a sua posição.

O gemido traiçoeiro mencionou as seguintes palavras: "chegou o melhor momento tão aguardado no show, Richard." — a malignidade surgiu em seus verbos e o sotaque não existia mais naqueles segundos.

Quando finalmente eu pude enxergar o horror, os meus braços tremeram demais e o controle remoto, deslizou pelo suor aflito... O homem com a máscara de pássaro havia saído da visão da única câmera e voltou arrastando um manequim com os braços caídos de lado, as pernas moles e bem diferente dos demais porque ele não assustava, não carregava uma expressão de ódio no meio dos sorrisos plastificados, suas roupas eram como de uma princesa, cabelos cacheados, olhos azuis, maquiagem e sendo ainda mais real na sua fisionomia humana, quase que blasfemando para a realidade genuína.

O lunático arremessou a caricatura no chão, apontou o seu dedo na direção da câmera mais uma vez e cochichou algo com malícia. Não sabia se era para eles ou para mim. O seu sotaque falho, saindo da máscara de pássaro, gaguejou para uma piada final... Socando suas coxas e sendo sufocado pelo seu próprio humor para finalizar o temor de sua apresentação.

Enquanto ele tossia igual um doente de tuberculose, foi se arrastando, saindo por uma segunda vez do alcance da minha visão. A estranheza não acabava por aí já que trouxe o pesadelo naquele dilúculo com algo tenebroso e surreal: os manequins ganharam vida, levantaram da plateia e foram direto para mesa com as facas. Tomaram de posse os objetos, se movimentando lentamente e esfaquearam o manequim deitado no chão.

Seus movimentos arrastados e excitados, acoitavam a caricatura humana de uma garota debruço. Isso é o de menos, a coisa que realmente causou loucura na minha mente foi porque ela expulsava gritos e sangrava como se fosse uma pessoa de verdade. Não pude acreditar na cena que estava enxergando, os outros manequins continuavam golpeando e penetrando sem parar, fazendo sua pele branca ficar com o tom acarminado de sangue.

Essa cena durou mais do que minutos, pareceram uma eternidade até que, após o massacre, a multidão feroz retornaram para os seus assentos na plateia, arremessando as facas em volta do que sobrou da manequim destroçada. Voltei para minha realidade, como se eu estivesse presente naquela carnificina. Encontrava-me coberto com suor, aterrorizado, com medo e o meu coração bateu como tambor no meu peito, acelerado. Parecia que eu havia despertado de um pesadelo e ainda continuando nele.

Tudo pareceu um vago sofrendo sem gritar. Nem podia mais ouvir os sussurros que ignorei desde o início, mas, no momento de brutalidade, pude perceber com mais clareza... parecia que em todo momento, desde o início da transmissão, vozes acompanhavam o chiado e representavam almas agonizantes na transmissão. Nesse vazio, não existia mais nenhum tipo de espetáculo... a plateia de manequins assassinos ficou silenciosa, o apresentador tinha sumido e apenas mostrando a sua mesa vazia com aquela gravura esquartejada adormecendo no chão de madeira.

Nos segundos em que encontrava-me saboreando todo o mal do mundo, qualquer coisa ruim que já poderia enxergar e que ainda viria acontecer, o repugnante... utilizando a máscara de sempre, apareceu para visão das câmeras. Causando nós em seus verbos, que ficaram ainda mais piores em uma linguagem própria, ainda mais lunático e perverso, observando o sangue derramado e os pedaços desmembrados da manequim que foi bela, agora está horrível. O fim da tortura veio junto com o som da TV em estática. Os tons brancos anunciavam o fim do Top Show.

Minha realidade voltou nos segundos em que o cigarro, na última brasa, queimou a minha perna esquerda. Despertei de um desvaneio, um sono alucinótico. Lembro-me das suas palavras tão frias, cruéis, vazias e impiedosa, seduzindo os telespectadores em geral com: "esse é o espetáculo dessa madrugada, estamos aguardando você mais uma vez". A televisão voltou a ficar sem sinal e logo desligando de forma automática. Desde esse dia, eu não consegui ficar mais acordado, pareceu uma cura para a insônia, mas, na verdade, era uma escapatória da minha alma porque eu não poderia mais permanecer nas madrugadas e muito menos com o televisor ligado em tal ocasião.

O apresentador, usando a máscara de pássaro, ficaria satisfeito em me ver mais uma vez apreciando o seu espetáculo! Estou aqui nesse texto para saber se você já ouviu falar do Show com Manequins...?

Autor: Sinistro

13/06/2020

Super Heróis

Você conhece as histórias de origem dos super heróis? Superman, Batman, Homem-Aranha, entre tantos outros, todos tiveram seus pontos em partida. Os melhores e mais fortes super heróis tem uma coisa em comum em todas as suas histórias de origem: a perda. Sim! Todos passaram por um evento traumático onde perderam algo importante ou alguém próximo.

Meu nome é Josh e é isso que eu quero. Quero ser um herói poderoso!
Para isso, preciso perder algo. Não importa o que seja, eu estou disposto a abrir mão!
Espero ansiosamente pelo dia que será escolhido para acontecer minha história de origem, eu sinto que está próximo. Perderei minha mãe? O país inteiro? O planeta inteiro? Não importa, só quero que aconteça. Independentemente da perda, o resultado será o mesmo: eu vou me tornar um super herói e ninguém vai mais zombar de mim.

Acabará a humilhação na escola. Acabará a sessão semanal com o psiquiatra chato. Acabará a reclamação do meu pai de que não aguenta mais um filho com tantos problemas. Acabará a dose de comprimidos todos os dias, quatro vezes por dia. Acabará o pesadelo com o bicho preto de todas as noites. Acabará o costume irritante de Tyler, meu irmão mais velho, de sempre roubar toda a atenção para si, com toda sua inteligência e normalidade. Eu te odeio Tyler, mas espero te odiar menos quando eu for um herói amado que você lamberá os pés.

Hoje acordei com a sensação forte de que acontecerá. Será que é o início de um dos poderes que vou despertar? Clarividência? Ver o futuro? Que seja. 

Estamos aqui, toda a família reunida em um chatissimo show de teatro, o tipo de bobagem que meus pais adoram gastar rios de dinheiro. Adivinha quem viemos assistir? A pequena estrela da família Tyler, o menino de ouro. Lá está ele, interpretando o herói da história. Não me sentiria mal se aquele lustre arrebentasse e caísse na cabeça dele. Não pela história de origem, só por satisfação. A morte desse inseto em nada agregaria para minha história de herói, não me importo com ele, eu o odeio.

Enfim acabou. Estamos saindo do teatro, mas está acontecendo algo lá fora... Um tumulto.
Começamos a ouvir disparos e gritaria. Fico animado. 

Meus pais tem a brilhante ideia de fugir por um beco. Sim! Sim papai! Vamos pelo beco escuro, eu já vi essa parte na história do Batman! 

Ao virarmos a esquina do beco, para a surpresa de absolutamente ninguém, havia um homem armado a espera.

Rapidamente ele apontou a arma para nós e começou a falar um monte de baboseiras sobre desigualdade, julgamento e várias outras coisas que honestamente não fui capaz de ouvir pois estou feliz demais, em êxtase. Aqui ocorrerá minha história de origem. Esse vagabundo atirará em alguém e depois disso algo vai acontecer. 

Será que vou despertar um poder instantaneamente? Será que ele vai fugir e será uma história de vingança? Não sei, mas estou ansioso demais. 

Vamos, atire! Não aguento mais esperar!

Ele aponta a arma para meu irmão e fico furioso. Se ele atirar no Tyler, nada vai acontecer. Por favor não.

Ufa! Agora virou a arma para meu pai. Mas... Bom... Não tenho certeza se vai dar certo assim também.

Estou tremendo... Ele agora está apontando a arma para minha mãe... Isso... Isso. Isso! Isso! Isso! Isso! Isso! Atire! Atire! Atire! Atire! Agora!
Eu a amo mais que tudo no mundo e só agora percebi, então é o alvo ideal. Atire, por favor!

Mas espere, o que é isso? 

Por um instante, consigo ver tudo em câmera lenta. Consigo ver que ele vai puxar o gatilho. É isso, vai acontecer. Mas calma... Tyler?! O que está fazendo?! Está se jogando na frente da mamãe?! Você vai estragar tudo seu desgraçado! Eu preciso impedi-lo.

Não sei exatamente como, mas com extrema rapidez consigo empurrar Tyler de volta para seu lugar e em seguida ouço o disparo. Tudo volta a velocidade normal. Sinto um calor dentro de mim. É isso, meus poderes finalmente chegaram.

Minhas pernas começam a falhar.
Sinto o calor escorrer pelas costas.
Caio no chão.
É claro que a bala me acertou.

Que droga, eu sinto que estou perdendo a consciência.
Por que vocês estão parados aí olhando e chorando? Me ajudem, inferno!

É o fim da linha pra mim.

A última coisa que consigo ver é Tyler correndo com raiva em direção ao criminoso. O homem dispara todas suas balas mas elas batem na pele de meu irmão e em seguida vão ao chão.

Que merda Tyler... De novo não...

Autor: Lucas Queiroz 

11/06/2020

A garota mais bela do mundo

Eu abri a janela, era quando o sol estava se pondo. Desejava enxergar nos últimos minutos que a bola de fogo iria desaparecer. Mas algo me chamou atenção, uma coisa que esmagou e consumiu qualquer tipo de beleza da natureza... Foi uma garota caminhando, sozinha, no meio da pista, com seus longos cabelos ruivos deslizando de um lado para o outro na altura do bumbum. À sua pele era tão branca que parecia que estava brilhando, encontrando os últimos raios do sol. Então ela passou direto, não olhou na minha direção, mesmo assim conseguiu hipnotizar-me por alguns segundos.

No dia seguinte, eu esperei no mesmo horário. Queria vislumbrar mais uma vez à sua fisionomia, os seus traços e a definição de paraíso respirando com carne e osso na terra. Não demorou muito para a moça passar mais uma vez, agora de carro. Então, ajeitou os seus cabelos para o lado, mostrando seu rosto e o seu pescoço tão atraente quanto qualquer tipo de desejo carnal que o homem sentiria por uma bela donzela. Eu não soube descrever o que eu estava sentindo, foram apenas alguns segundos até ela desaparecer. No entardecer posterior, mais uma vez mantive o mesmo hábito e ela não apareceu. Foi como se estivesse trocado a sua rota. Triste, caminhei para sair em busca e encontrá-la mais uma vez. Deu certo porque a vi novamente em um outro bairro. Com um vestido amarelo e uma fita enrolada na cintura, como se fosse um cinturão... caminhava distraída.

Parecia uma obsessão, eu queria cada instante observar aquela mulher passeando nas ruas com o seu veículo e, às vezes, caminhando a pé. Foi uma dependência, um tipo de paixão, eu ansiava meramente olhar e apreciar... sendo mergulhado por aquele sentimento de prazer e fascínio, um tipo de desejo inexplicável para alguém que eu nunca, nem sequer, dei um "oi". Não passou uma semana, mas eu já estava sendo alertado por conta do louco maníaco perseguindo e matando jovens indefesos. Isso não foi um problema para mim, aliás, sempre fui um fantasma e ninguém nunca me notou mesmo. Eu conseguia esconder-me entre os carros, no meio dos arbustos... sendo parte das sombras dos postes de luz, apenas observando e apreciando.

Da última vez foi quase difícil de encontrá-la, parecia que estava sentindo à minha presença, percebendo aquela velha figura de longe a perseguindo, um stalker doente era tudo isso que passava na minha cabeça. Naquele tempo, em uma das ruas que eu não conhecia, ela parou o carro e eu não captei que estava tão perto o suficiente para ver os seus olhos azuis no retrovisor do veículo me enxergando. Eu parei, fiquei sem saber o que fazer e tive certeza que estava olhando diretamente para mim. E fiquei abombado, em silêncio e sem conseguir me mexer. Foi mais ou menos dez segundos até disfarçar que estava entrando em uma casa, como se eu conhecesse os moradores. A maneira que eu mexi na maçaneta, parecia que estava com as chaves. Naquela circunstância, seu carro ligou mais uma vez, e ela foi embora. Talvez para o seu destino rotineiro, pois poderia ser apenas uma moça entediada e querendo caminhar nas ruas como algumas pessoas fazem quando estão de saco cheio do trampo ou da sua própria família.

O meu comportamento estranho foi suficiente para garota desaparecer completamente. Eu não consegui encontrar em mais nenhum dos bairros próximos da minha residência, parecia que sumiu do mapa e ninguém nunca ouviu falar da tal ruiva que eu estava tentando descrever. Imaginei que fosse uma loucura na minha cabeça, mas, no período da noite, eu a vi mais uma vez. Parecia que, dessa vez, foi ela quem veio ao meu encontro, quando passou com o seu carro tão distraída... Aparentemente não me notou, e eu a contemplei. Senti aquele mesmo desejo de perseguir por algumas horas. Então, ela continua caminhando com seu veículo em velocidade baixa, o suficiente para me esconder em alguns lugares e à acompanhar.

Eu já havia passado dos limites no meu desejo diabólico, não estava mais medindo as minhas atitudes e fiquei perto o suficiente. Esse início da noite estava tão grudado no seu veículo, que parecia que estava dentro. Devorando o seu corpo com os meus olhos e sentindo o meu coração batendo cada vez mais forte, quase que expressando o som de batida abafada. O seu automóvel parou, quase não dava para perceber o momento em que os pneus ficavam em descanso, pois, a velocidade que ela sempre dirigiu era quase que lento demais, bem abaixo da velocidade padrão. Então, pegou um perfume, ajeitou o vidro do carro e borrifou algumas vezes no pano. Eu aproximei-me mais, agachando o meu corpo e escondendo-me em algumas latas. A nossa distância era quase que no mesmo espaço. Naqueles segundos, foi onde tudo aconteceu...

Os passos foram controlados como marionetes, atraídos pela beleza da moça distraída no espelho retrovisor. Não demorou muito para perceber o homem estranho a encarando. Eu não soube o que dizer, muito menos o que fazer, apenas fiquei contemplando. Abaixou o vidro do carro quase que automaticamente, e foi o suficiente para que o homem estranho, na porta do automóvel, entrasse como uma besta irracional das suas atitudes. Nos mesmos segundos, uma luta dentro do automóvel balanço algumas vezes até que o corpo caiu desmaiado.

A localidade era pouca movimentada porque as únicas almas vivas que apareciam nesse lugar era, claramente, vagabundos e viciados. Fiquei fascinado como a sua pele pálida transformando-se em um tom vermelha e algumas marcas da luta deixaram aquele corpo frágil possuindo agora hematomas rosas. Estava sentindo que logo alguém apareceria, então o corpo foi guardado no porta-malas, ela saiu dirigindo mais uma noite, como se nada tivesse acontecido.

Autor: Sinistro

10/06/2020

Coisas da vida

Olha, não curto muito esse tipo de coisa, mas quando me falaram que eu teria uma experiência completamente inédita, diferente de tudo que poderia imaginar, eu tive que aceitar. 

Minha vida sempre foi bem miserável sabe? Eu PRECISAVA de alguma emoção, qualquer coisa que fizesse sentir VIVA realmente. Saí de casa com uns 16 anos, na primeira oportunidade que tive, meus pais eram insuportáveis e eu não podia aguentar aquele tipo de coisa. Basicamente eles (meu pai e minha mãe JUNTOS) abusavam de mim constantemente e eu não tinha a quem recorrer, na verdade eu não tinha muita noção de como pedir por ajuda. Enfim, consegui fugir, anos depois voltei e cravei um cano de ferro do ânus de cada um, foi lindo, mas faltava alguma coisa.

Voltando... Um amigo chegou pra mim e disse que uma empresa estava realizando testes clandestinamente e precisava de umas 60 cobaias, ele me garantiu que era uma droga nova que a indústria farmacêutica desenvolveu na surdina, mas ele sempre foi louco por conspirações então não coloquei muita fé, mas aceitei participar de qualquer forma.

Tínhamos combinado que ele viria me buscar, me surpreendi bastante quando vi ele chegando com uma van lotada com aproximadamente 8 pessoas sobrando apenas um único lugar, para mim é claro.
Isso me lembra uma vez que me enfiaram no porta-malas cheio de bonecas de pano quando eu tinha 7 anos, era meu aniversário, meus pais disseram que iriam me fazer uma surpresa e por isso eu não pude viajar no banco de trás. Quando chegamos lá, meus olhos arderam com a claridade, mas quando senti a areia sob meus pés percebi que estava na praia e era absurdamente linda, mas estava vazia porque fomos no inverno, mesmo assim eu me animei muito. Minha mãe me levou para nadar e a água estava fria como gelo, tanto que meus ossos doíam, quando eu quis voltar pra areia ela segurou meu pescoço debaixo d'água, meus pulmões queimavam, olhos e narinas também, não sei quanto tempo fiquei lá, mas tudo ficou turvo e não consegui enxergar mais nada. Horas depois acordei em casa, apesar da minha mãe ser enfermeira, ela era uma mulher horrível que não se importava com as pessoas e, sempre me machucou muito.

Desculpe, meus devaneios sempre foram muito frequentes. 

Depois do que pareceu horas chegamos em um prédio enorme e muito bem conservado, quando Gregório (o amigo conspiracionista) estacionou, fomos logo recebidos por uma mulher de jaleco segurando uma prancheta que se apresentou como Rosana, parecia muito simpática e exalava uma aura de confiança, novamente para minha surpresa, ela já sabia nossos nomes e idades, confesso que me assustou um pouco. Rosana nos guiou para o subsolo do prédio, onde seriam realizados os testes e eu tenho que dizer, o prédio é simplesmente magnífico tanto dentro, quanto fora, mas tem um pequeno detalhe: depois de adentrarmos o subsolo, logo percebi que as salas eram como "caixas" de vidro blindado e em TODAS pelas quais passamos tinham cerca de cinco pessoas, completamente imóveis e sentadas, algumas salas estavam sujas de sangue no chão e nas paredes, mas em nenhuma delas haviam pessoas fazendo qualquer outra coisa além do estado catatônico em que se encontravam e, foi nesse ponto que eu comecei a me assustar de verdade. Sabe aqueles momentos de pura angústia quando seu pai ou sua mãe te ameaçam dizendo que vão queimar seus olhos com uma faca quente ou quando te fazem comer a areia do gato só porque você não foi uma boa menina? Então, fora mais ou menos assim que eu me senti naquele momento e ninguém poderia tirar aquilo de mim. Por que estavam todos parados? O que estava acontecendo ali? Era o que eu me perguntava. A única coisa que mexia comigo de verdade era aquele catatonismo.

O que se seguiu quando chegamos a nossa sala não foi nada muito assustador, quer dizer, Rosana pediu para nos sentarmos e nos deu uma pílula metade roxa metade vermelha.

OBS.: Neste ponto, eu já não via mais Gregório, meu pequeno grupo e eu entramos na primeira sala vazia que apareceu, então para onde ele foi? Achei que também fosse participar.

Bem, depois disso não recebi outras instruções senão "tome a pílula e se acomode", nada mais.
Eu tomei e me acomodei, os primeiros minutos (ou talvez horas) foram absolutamente nada, mas os efeitos chegaram pouco sutis, com uma leve tontura...
Olhe só a sala está vermelha... Será o sangue de alguém? Ou será que pintaram? Mas se pintaram, por que vermelho? Me lembra sangue e sangue lembra meus pais.
Xiu! A sala parou de girar.

- "Quem parou de girar?"

- "É mesmo... Quem?"

- "EEI! não gire o cano no rabo do seu pai!"

- " Ah que pena, já acabei hehehehe"

- "A sala parou de girar, Sofia."

- "Do que adianta a sala parar de girar se os malditos cachorros na calam a boca!"

Acho que não estou me sentindo bem... Isso me lembra da vez que meu pai e os amigos dele me fizeram usar drogas, não lembro quais, mas foi uma tragédia, daquelas que te abusam com um porno de palhaço reproduzindo na televisão por horas, daquelas que sua mãe te espanca porque acha que você está seduzindo o próprio pai... Sinceramente, o mar é realmente lindo! Eu sinto a areia, a brisa e os corpos sob meus pés. Sento-me num banco para observar a bela vista, mas sou interrompida por uma cabeça...

- "Você não se envergonha, Sofia?"

- "De quê?" Suspiro.

- "De tudo! De sua vida miserável, das pessoas que matou, dos seus irmãos de te abandonaram... Você pensou em fazer algo realmente bom? Quer dizer, eu entendo que sua infância foi difícil, mas e se você fizer algo bom pelo menos uma vez na sua vida, hm?"

- "Primeiro, não, não me envorgonho nem me arrependo. Segundo, você não entende porra nenhuma, eu não sirvo pra fazer coisas boas, eu sirvo apenas para causar sofrimento."

- "Isso é o que seus pais querem que você pense." Disse a sem-corpo, piscando pra mim... Repugnante.

- "Que se foda meus pais, eles estão mortos e adivinha só! Eu os matei. Não quero saber se é justo ou não, muito menos se é bom. Se tivesse outra chance eu faria pior."

- "A sala está girando, Sofia."

- "Cala a boca!"

- "A SALA VAI CAIR, SOFIA! ELA ESTÁ GIRANDO! GIRANDO COMO UMA ESPIRAL DO INFERNO, SOFIA!!! UMA MALDITA ESPIRAL DO INFERNO!"

- "CALA A BOCA, SUA CABEÇA MALDITA OU EU CORTO SUA LÍNGUA IMUNDA!"

Eu volto pra sala. Acho que vou vomitar... Eu preciso sair daqui. Eu preciso sair...

- " Você. Não. Pode. Sair. HAHAHAHAHA que pena"

Diz a figura humanoide totalmente preta sorrindo pra mim e ela me enche de pavor, eu estremeço até os ossos com cada sílaba que sai de sua boca asquerosa.

- "Sabe, Sofia..." Começa meu cachorro "a sala está girando loucamente e você morrerá como numa centrífuga hauhauaha coitadinha, vai morrer igual uma putinha"

- " AHHHHHH CALE A BOCA" eu pego um martelo e esmago a cabeça dele, quero ver esse cachorro me perturbar agora.

Eu sinto que estou girando lentamente, sinto meu corpo derretendo e então ele volta a sua forma original, vira estática e volta a sua forma original, derreto novamente e transformo-me numa jujuba e volto a forma original e então subitamente eu apago. Tenho que dizer, essa foi a pior experiência da minha vida. Nunca deveria ter dado ouvidos ao Gregório.
Quando acordo, vejo que não estou mais na sala, agora eu me encontro numa cama macia, me levanto e vejo Gregório sentado a minha frente de jaleco, escrevendo na prancheta.

- "Ah bom dia, Sofia. Como você se sente?"

- "Bom dia? O que você tá achando que é? Um doutorzinho? Achei que você fosse um drogado de sarjeta, mas não... Me arrastou pra essa porra!"

- "Bem, tecnicamente eu sou doutor, mas não o que você imagina hehe. E você veio livre e espontânea vontade, eu disse que seria inédito, não bom."

- "Aquilo foi real?"

- "Sim e não. Seu cérebro recebeu todos os impulsos necessários pra fazer da experiência palpável, porém seu corpo não mexeu um músculo. O que minha equipe está desenvolvendo é uma substância que proporciona —————— chamada N,N-dimetiltriptamina que ——————— e ————————— ixa de letalidade é ——————— um —————————————————————————

Sinto o quarto girar. Vejo o Gregório derretendo. Encaro-o.

- "Ei, ———— você está ———— "

- "Que?"

- " ————— "

- " Eu não-" apago novamente.

Dessa vez eu acordo na sala de vidro, ela está vazia. Minha cabeça começa a girar, literalmente. Socorro! Minha cabeça está girando, como isso é possível?! SOCORRO! A sala gira pra esquerda, minha cabeça gira pra direita. Meu Deus.

Eu apago...

Acordo na praia cheia de corpos, areia vermelha, mar vermelho. Os corpos levantam a uns 2 metros do chão, todos eles... Ahhh não... Eles pendem como se pendurados pelo tronco e começam a girar, muito, mas MUITO rápido. Meu corpo gira, minha cabeça não. A porra da minha cabeça está imóvel enquanto meu corpo gira.

Eu apago.

Autor: Koolt

06/06/2020

Vozes do Além

Tudo começou a dar certo na minha vida quando finalmente comprei um lugar que eu poderia descansar feliz com a minha amada, que logo depois me surpreendeu com a notícia de que estava grávida do nosso primeiro filho. Os dias foram uma maravilha enquanto nós estávamos com dezenas de planos para o futuro e, no momento em que o meu filho estava prestes a nascer, eu consegui transferência para trabalhar em um lugar próximo do imóvel o qual comprei há alguns meses. Tinha tudo para dar certo, a animação nos controlou e o amor deixava a estrada chuvosa e cheia de neblina como um arco-íris, mas a rodovia era perigosa e a chuva ilusória. Acabei abusando da velocidade mínima e a curva chegou traiçoeira. O outro carro ultrapassou a sua faixa e nos encontrou...

Senti uma sensação de perigo iminente, aquele desejo de abrir os olhos custe o que custar, e observei algumas pessoas do SAMU me conduzindo para dentro do que aparentemente era um hospital. Tentei me mexer, e um dos homens colocou sua mão no meu peito, pedindo para que eu ficasse quieto, pois não sabia se eu havia fraturado algum osso. As memórias estão fumaçando no meu passado, tentando desenhar o que aconteceu e onde estava. Não adiantava de nada, o meu corpo todo doía e as luzes foram ficando mais claras, ao decorrer que a maca atravessa os corredores e, finalmente, me entreguei.

Ainda pude saborear o gosto de ferro na minha língua ressecada, nos segundos em que despertei. A sensação nauseante e a deformidade da minha visão foi moldando aos poucos uma enfermeira cuidando de alguns objetos em cima da estante. A moça se assustou quando eu perguntei onde estava e olhou na minha direção, aproximou e mexeu no meu corpo e, mais uma vez, indaguei para saber o que estava acontecendo. Então, imediatamente, seus lábios tremeram de forma hesitante e disse que iria chamar o médico.

O sujeito perguntou se eu estava bem, e eu assenti com a cabeça. A enfermeira estava me observando também, e eu não precisei ouvir mais nada... enquanto a fumaça finalmente ganhou a forma daquela noite: a tempestade, a estrada, o carro traiçoeiro e o apagão na minha mente. Mesmo antes da pior notícia chegar, depois dos seus papos clínicos, eu comecei a chorar. O cara, com sua roupa toda branca, foi explicando que eu havia ficado quase um dia e meio desacordado, o meu corpo não sofreu nenhum ferimento grave, mas a minha esposa, por sua vez, não teve tanta sorte. Ela não sobreviveu, e a criança estava morta, todos acharam melhor que o nosso bebê fosse enterrado junto com a mãe para, assim, o espírito descansar em paz.

Chego em casa, vou abrindo a porta e observando todos os móveis cobertos como fantasmas por lençóis brancos. O vazio e o silêncio são impiedosos do lugar. Ponho a chave em cima da cadeira e, logo em seguida, desabo em soluços por tudo que aconteceu, sentindo-me culpado e ainda sendo mais deteriorado por nem ter participado do velório da minha própria esposa, a qual eu matei! Fui direto para o chuveiro, arrancando as minhas roupas com unhas e dentes, jogando-me embaixo do chuveiro com os braços na parede e a cabeça escondida entre os meus ombros.

O vapor quente da água começa a me sufocar e o som das gotas dominam o water-closet, até que, enquanto os meus olhos estão fechados, batidas, em todos os lados, nas paredes, no teto e no chão, me despertam e eu vejo o meu corpo vermelho como sangue. Aterrorizado, vislumbro o chuveiro se tornar uma cachoeira congestionada pela repugnância, começo a escapar, derrubando algumas coisas e agarrando a toalha de banho. Em frenesia, passo o pano no meu rosto para perceber que está tudo normal.

Ainda agitado pelo ocorrido, seja lá o que foi que houve, talvez seja alguma consequência do trauma que passei. Não demora muito para ir direto ao meu leito, depois de enxugar o meu corpo e remover cada líquido. Nem precisei comer nada, porque a minha consciência não deixaria que tentasse ocupar o vazio no meu estômago. Em poucos minutos, acreditando que finalmente descansaria, aquele estrépito ressurgiu. Agora com arranhões e a cama tremendo. Fiquei assustado e, ao me virar para ligar o abajur, apreciei Kate Austen, a minha esposa, próxima dos meus pés. Estava claramente desesperada, e sua alma atormentada repete várias vezes as seguintes palavras:

"O salve antes que seja tarde demais! Por favor, faça alguma coisa!"

Fico apavorado, minha respiração se torna pesada e difícil. Nos instantes em que finalmente consigo ligar o abajur, próximo à minha cama, meu quarto não tinha nada. Qualquer tipo de intenção de descanso ou sono desapareceram naqueles minutos. Levanto da cama para tentar acalmar a minha mente e minha respiração estava cada vez mais pesada. Sabia que precisava tomar um pouco de ar fresco e fui direto para a varanda, sentando-me na cadeira de balanço. Depois de muito ofegar, comecei a recuperar o domínio dos meus pulmões, mas algo me surpreende mais uma vez, o som do rádio, vindo da sala, e eu nem havia ligado o aparelho, tomou o manejo da situação.

Enquanto os meus andares delicados se aproximam... os ruídos, nesse momento em estática, vão se transformando em sons semelhantes aos tormentos de um bebê chorando, uma criança rouca e, aparentemente, desesperada. Claramente estou ficando louco, ainda mais quando tento desligar o aparelho e percebo que não está respondendo e muito menos conectado à tomada da energia.

Começo a questionar minha sanidade e parece que tudo está derretendo minha mente por um pavor traiçoeiro. Tento fugir, mais uma vez pela porta, sinto um calafrio e a temperatura bruscamente baixando no meu cômodo. Saindo do nada, alguém me agarra, pressionando-me contra a parede, enrugando a gola da minha camisa e dizendo que eu preciso ajudar alguém. É a minha esposa falecida, com aparência semelhante à morte, seus olhos esmarridos, a pele azulada e um cheiro degradante de algo que não deveria estar aqui. Peço desculpa por tudo que eu fiz, dizendo que não foi minha culpa e o quanto eu sinto muito, sem querer olhar mais uma vez em seus olhos. Ela, finalmente, desaparece e eu me vejo pressionando meu próprio pescoço com as minhas mãos lunáticas.

Eu mal saí do hospital e não estou bem! A comida não tem o mesmo gosto e, todas às vezes que eu fecho os meus olhos, vejo a minha falecida esposa sendo desenhada por fumaças brancas no negrume, desesperada, agoniada, em um lugar apertado e escuro. A criança chora preenchendo todo o vazio com os seus suspiros, até que os meus olhos se abrem nos segundos em que eu imagino consegui apagar na exaustão. Percebo que não consigo mais fazer nada além de ser atormentado por isso.

Quando finalmente reparei os raios do sol aparecendo pelas janelas, as minhas têmporas doeram pelo contato. Fui à farmácia mais próxima e comprei remédios para tentar descansar minha mente em um sono infinito. Ao empurrar a quantidade demasiada na minha garganta e preencher com um copo com água, o meu organismo tratava de expulsar. Não importava quantas vezes eu fazia, parecia que algo estava possuindo o meu corpo. Depois de pujar várias vezes, na intenção de acabar com isso, jogo-me na cama e não existe nada além do silêncio, o meu tormento e a minha cabeça.

Os momentos em que tudo fica calado o suficiente, minha cabeça neutralizando a angústia, é quando ela surge! O seu corpo em estado de decomposição, Kate repetindo, enquanto se aproxima, rastejando e machucando cada centímetro em que encosta na minha pele, as seguintes palavras:

"Ele precisa da sua ajuda, a chuva vai voltar mais uma vez! Você precisa ajudá-lo!" - mais uma vez, peço desculpas por tudo que eu fiz, por ter lhe matado e ceifado a vida da nossa criança,como o pior monstro de todos. Seu comportamento espectral fica ainda mais desesperado com as minhas súplicas. Irritada, deu tapas no meu rosto e continuou repetindo as sentenças torturantes. No entanto, dessa vez, no momento de sofrimento, suplicou para que eu cavasse onde estava escondida.

O tempo parou, e enquanto eu estava ouvindo o desespero da falecida, os gritos de uma criança me atormentavam, minha cabeça latejando, sangue escorrendo pelas paredes, batidas em todas as direções e, finalmente, eu cuspi em um berro desesperado para que parassem, para que eu, de alguma forma, pudesse lhe encarar e enxergar o crime que eu fiz. Fui à garagem e peguei uma pá, já estava escuro e tarde da noite, ninguém viu quando entrei no cemitério e encontrei o coveiro dormindo, agarrado com uma garrafa de vinho, e comecei a cavar na sepultura da minha tão amada Kate.

Tão poucas horas que ela me deixou, e a chuva aparecendo de repente fez tudo voltar para o passado. Eu não tive coragem de vir aqui e preciso finalmente encarar o meu crime. Dominado pela brutalidade e a psicose, não conseguia controlar os meus braços enquanto enfiava a pá, golpeava com o meu pé descalço e jogava nas minhas costas um monte de terra. Quanto mais me aproximava da madeira do seu leito, ouvia um choro de criança, atormentando-me e pressionando a minha mente, ao esmagar da sua forma cruel de ser na lamentação da morte.

Finalmente chego na madeira, já que senti a pá socando algo sólido. Gargalhei muitas vezes, de fato, por ouvir o meu castigo no coro infantil. Sem controlar os meus extintos, coloco os dedos, quebrando as unhas na adrenalina primata e monstruosa. Abro o caixão, enxergando o corpo da minha falecida em uma expressão de angústia: cabelos cuidadosamente jogados nos dois lados, veias com tom verde, deslizando nas suas curvas, os seus braços em formato de x, acima do estômago e, no meio, há uma criança ainda respirando, os seus lábios próximos dos seus seios e severamente desnutrida. Sou surpreendido por meu filho vivo, olhos fechados, fraco demais, o tenho em meus braços e saio do cemitério. Antes de colocar o meu último pé para fora, posso apreciar o espírito da minha falecida esposa agora feliz.

Autor: Sinistro

04/06/2020

Sussurros na Escuridão (Parte 2)

Na noite que aconteceu eu tinha ido dormir um pouco tarde demais e já estava grogue, tinha tomado uns copos da bebida mais barata que achei no mercado, copos não, talvez uma garrafa toda, ou seja, meu estado não estava lá dos melhores, mas eu nem ligava, era feriado no dia seguinte por isso só curti o momento. Quem me visse iria achar que eu estava sofrendo por alguma desilusão, logo eu. Quando finalmente deitei o “sonho” não demorou muito para aparecer.

Eu estava em pé em frente a porta ao apartamento do lado, a porta estampava o mesmo número 10 prateado, mas parecia corroído, como se muitos anos tivessem passado por ela, mesmo que o prédio fosse consideravelmente novo. Senti vontade de bater, mas nem precisei fazer, ela simplesmente se abriu, revelando uma dona Silvia triste e cabisbaixa que sustentava a voz em um tom tão baixo que parecia até sussurrar, muito diferente das risadas que se ouviam porta a fora quando a mulher estava a assistir um seriado qualquer.

Para a minha surpresa o apartamento também estava mudado, me peguei observando-o, os tempos que passaram pela porta pareciam ter tomado todo o interior, janelas, móveis e decorações. Como posso ser mais claro? Parecia abandonado. Teias de aranha se emaranhavam no encontro da mobília com as paredes e chão, e nas lâmpadas também, uma camada generosa de poeira estava em todas as superfícies, como um tapete de mal gosto, mas de alguma forma dona Silvia parecia não ligar, me convidando gentilmente para sentar e bater um papo, ela carregava o mesmo apoio que usava para andar, um daqueles quadrados.

Quando sentei no sofá a poeira acumulada subiu e simplesmente congelou no ar, a atmosfera lá dentro era parada, como se houvesse um bolsão de ar tão antigo e sujo que em alguns momentos me causava dificuldade para respirar. O assunto? Meio mórbido, me contando o que achava que acontecia depois da morte, e sobre a morte de seu marido a alguns anos atrás, e também em como se sentia sozinha e achava que ninguém iria perceber quando ela de fato morresse.

Geralmente eu não me incomodaria com assuntos assim, mas o jeito soturno que pronunciava as palavras, e as lágrimas que derramava de vez em quando, me deixavam desconfortável, sufocado, triste. E então acordei.

Minha primeira reação foi pôr as mãos na cabeça e pensar: Meu Deus, o que foi isso? Nunca tinha tido uma visão tão.... Real, quer dizer nas outras vezes eu parecia estar presenciando algum filme de terror e nunca tinha tido uma conversa sequer com as minhas visões. Eu precisava saber se minha vizinha estava bem, coloquei na minha cabeça que quando entardecesse passaria lá para lhe perguntar como ia a vida.

Mas você sabe né? Me entende, às vezes a gente simplesmente esquece de certos compromissos quando se está sufocado de pensamentos borbulhantes, e cheio da metódica rotina, e foi o que eu fiz. Me enchi de tarefas mais simples, como organizar os papéis, passar uma vassoura de qualquer jeito pelo chão e me sentir orgulhoso disso antes de sair para dar uma volta. Esse passeio durou todo o resto do dia, sondar a praça, sentar no banco do parque e observar as outras pessoas com aquele sorriso vitorioso, o sorriso que eu não tinha. Por fim, me enfiei em algum bar que estava aberto decidido a repetir a noite anterior, beber até sentir a visão me escapar e dormir. Mas no momento que coloquei o primeiro copo na boca ouvi, assim, claramente a voz da dona Silvia: “Ninguém vai saber quando eu realmente morrer”. Foi tão repentino e claro que me fez soltar o copo que caiu e se espatifou no chão, se dividindo em vários cacos, todos olhavam meu pequeno vexame, inclusive o cara troncudo que me serviu a bebida, eu nem me dei o trabalho de explicar, estava atordoado.



- Isso deve pagar, desculpa – Foi a única coisa que disse, coloquei o dinheiro no balcão e saí.



Isso foi o que me impulsionou a bater na porta número 10 assim que coloquei os pés no meu andar, e bati, três ou cinco vezes, não me lembro, e não fui respondido, não tinha ruído de nada, nem das séries antiquadas que gostava de ver, nada. Mas daí me lembrei de uma coisa, era feriado, ela devia ter viajado para praia, sempre fazia isso. Foi o que me confortou pelo resto da noite, e além do mais minhas visões não passavam de visões, nada demais, eu havia ignorado isso a minha vida toda e não seria agora que ficaria colocando minhocas na minha cabeça, eu iria dormir e iria sonhar com outra coisa. Não foi bem o que aconteceu.

Assim que fechei os olhos o sonho começou, do mesmo jeito, a mesma porta, a mesma sensação de sufocamento e o mesmo papo mórbido, a única coisa diferente era que dona Silvia parecia mais triste que a última vez, não conseguia pronunciar uma frase sem que derramasse uma enxurrada de lágrimas, elas ensopavam sua camisola cor de rosa e algumas pingavam no chão, mas não pareciam fazer efeito na poeira que se mantinha intacta, nem parecia que tinha sido molhada. E de novo eu acordei.

Eu me lembro muito bem que tornei a procura-la depois de ter acordado, mas de novo não fui atendido, ainda não escutava nada, nenhum ruído vindo de dentro daquele apartamento, o dia estava quente demais, na verdade o noticiário tinha avisado que iria ser quente a semana toda, ela deve ter aproveitado para prolongar o feriado, assim que chegasse eu iria conversar com ela e talvez lhe contar sobre o que vi. Mas naquele dia ela também não apareceu.

Seis dias, isso mesmo, seis dias foi o tempo que tive a mesma maldita visão, seis dias terríveis, eu já não conseguia trabalhar direito, comer, fazer as coisas mais comuns, eu sempre a ouvia sussurrar a mesma frase, estivesse eu no banho, ou andando pelas ruas, era angustiante! E eu sempre tentava entrar em contato, cheguei a esmurrar a porta algumas vezes e chorar baixinho em frente ao número 10, eu não aguentava mais! Precisava saber o que estava acontecendo, o sentido de toda aquela perturbação. Não sei se foi uma resposta divina, sei lá o que você vai achar, já não me importo mais, só sei que a resposta veio na forma de mais uma visão.

Eu estava novamente em frente a décima porta, mas pela primeira vez em uma semana ela estava mudada, em vez de ter o número 10 completo, faltava o zero, sustentando apenas o primeiro algoritmo de uma maneira desequilibrada, prestes a cair. A madeira estava repleta de bolhas de mofo que pareciam encrostadas por dentro do material, e fedia a bolor, podridão, confesso que senti certo nojo de encostar em sua maçaneta, pensei até em voltar, mas em uma simples olhada ao redor percebi que não conseguia ver mais nada, parecia que só existia aquela porta, todo o resto era apenas escuridão.

Dessa vez eu precisei abrir a porta, que rangeu sob o peso da minha investida contra ela, e o interior, quase desmaiei ao entrar, sustentava um cheiro de morte tão grande que fui obrigado a colocar a mão em frente ao nariz, as paredes não tinham mais nenhum pedaço do antigo papel de parede, o chão além da camada, ainda mais grossa, de poeira tinha gotas escuras e viscosas, parecia sangue, sangue velho e fedido, e a última coisa que reparei foi que Silvia não estava lá, não na sala, não no banheiro, não na cozinha e quanto mais eu adentrava o lugar, mais o cheiro putrefato ia ficando forte, parecia se engatar no fundo da minha alma.

Em todos esses anos achei que tinha visto as coisas mais terríveis, atropelamentos, decapitações, mas nada, absolutamente nada foi capaz de me causar tanta ânsia. Dona Silvia estava lá, deitada na sua cama, a mesma camisola cor de rosa, seu rosto parecia moldado em uma tristeza eterna, pelo menos a metade que ainda estava inteira, a outra? Oh céus! A outra metade era apenas um punhado de vermes, gordos e brancos, que se remexiam para lá e para cá, felizes com a refeição cadavérica, o olho estava perfurado bem no meio da órbita e pulsava, devido aos vermes que também estavam ali dentro. Eu tive que me segurar para não despejar tudo o que havia comido no chão, o bolo tinha se formado bem na garganta e tive que engoli-lo duas vezes para ter certeza de que não voltaria a subir.

Que visão pavorosa meu amigo! O resto do corpo era uma bola de carne inchada e roxa, eu a olhava com lágrimas nos olhos, não conseguia acreditar no que estava vendo e então houve um suspiro, não lhe dei atenção no primeiro instante, mas logo ele ganhou força: “Eu avisei. Sozinha”. Vinha da boca carcomida da mulher. Não tive tempo de ver o resto da cena, parti em uma carreira até a porta e a fechei atrás de mim, mas ainda assim conseguia ouvir! A voz, a voz dela: “Sozinha”. Mais alto e alto, parecia gritar no meu ouvido, eu precisava parar com aquilo e comecei a socar minha própria cabeça contra a parede, mas a voz parecia ignorar: “SOZINHA! ”. Acordei.

Meu primeiro impulso foi bater na porta ao lado, não ligava se estava de pijama, eu precisava vê-la, garantir que estava tudo bem. Esmurrei a porta tantas vezes que senti meu pulso arder, os vizinhos que haviam acordado àquela hora da manhã com meu barulho já se aglomeravam em suas portas, alguns me xingavam outros perguntavam o que estava acontecendo. Eu não ligava! Precisava de respostas. Desci às pressas para a portaria, e contei da maneira que consegui ao porteiro o porquê que precisava que ele abrisse aquela maldita porta.



- Eu preciso, preciso! Preciso... – Estava desesperado, mas logo tentei me recompor quando percebi que não conseguiria nada daquela maneira - Onde ela está? A dona Silvia do 10, chegou de viagem?

- Viajem? Senhor, a dona Silvia não saiu em viajem.



Não podia ser.... lhe contei resumidamente sobre meus sonhos e então ele tomou a atitude que eu esperava, subiu para conferir.

Quando o apartamento foi aberto um cheiro de podridão invadiu os olfatos de todos que estavam presentes vendo a cena, o porteiro não me deixou entrar, na verdade ninguém, disse que o que estava fazendo era invasão, mas logo depois que saiu ligou para a polícia, eu observava tudo com olhos aflitos, encostado num canto até que a polícia chegou. A notícia veio depois de alguns minutos que ficaram lá dentro: dona Silvia estava morta, morrera do coração há uma semana e ninguém havia percebido.

Depois disso tudo foi um borrão, me levaram para interrogatório, eu não conseguia pronunciar uma palavra descente e então decidiram que seria melhor que viesse para cá, simplesmente me colocaram nas suas mãos doutor Morgan, não precisa nem me dizer o que vai acontecer, eu já sei, e só assim espero que a voz cesse. Sei que já sabe disso, mas de qualquer maneira preciso contar para ficar registrado na minha ficha, a voz continuou e continua a gritar na minha mente: Você sabia!

- Bom Gustavo, você já sabe a sua sentença, gostaria que as coisas não fossem assim, mas não sou eu quem decido, infelizmente

- Tudo bem, meu amigo, sei que agora acredita em mim e sei também que deveria ter dado atenção as coisas que vi. Pode acreditar, você está me dando meu alento.

Depois disso dois homens vestidos de branco entraram na sala, igualmente branca, e levaram Gustavo, que seguia sem oposição talvez por desejar aquele momento, ou por causa da camisa de força, ninguém sabia.

Doutor Morgan, médico do hospital psiquiátrico, se pegara por um momento pensando na história daquele jovem, para logo depois assinar o papel que autorizava sua execução.

No dia 5 de agosto de 2019 Gustavo foi morto por uma injeção letal, depois de um julgamento que o condenava culpado pela morte de Silvia, já que ele, de alguma maneira, era o único que podia ajudar e não o fez, por não acreditar em suas visões.

Autora: DarkQueen