Confesso para você, meu único amigo, que nunca levei meu “dom”, se posso chamar assim, como algo divino, era sempre assombroso demais, até que cresci. Mas me lembro bem de quando as coisas começaram.
Eu tinha cerca de sete anos ou um pouco mais, estava sentado na sala de casa assistindo um desenho qualquer na televisão, até que vi uma mulher muito diferente de todas da minha família, entrar pela porta, parecia uma cigana, os cabelos pretos esvoaçantes, a saia rodada e os véus pelo corpo, ela apenas se sentou ao meu lado e sussurrou palavras que eu não entendia, não parecia que estava conversando comigo, mas em um momento de reflexão. Quando perguntei quem era ela, percebi que minha voz estava um pouco elevada e talvez por isso a mulher tenha se assustado, levando a mão até a boca em surpresa, talvez ela não tivesse me visto e então perguntei de novo quem era ela, queria saber se era uma tia distante ou uma prima que não conhecia, mas ela não respondeu, só continuou da mesma maneira, me observando de cima para baixo, quando insisti novamente na pergunta, minha mãe interviu da cozinha:
- Com quem você está falando Gustavo? – Minha mãe colocou a cabeça pela soleira da porta e observou, mas em vez de seus olhos pousarem em cima da mulher, apenas me fitavam – Você não está com essa bobeira de amigo imaginário, não né?
No momento eu até senti meu coração se acelerar. Como era possível minha mãe não ver a mulher do meu lado?
- Ué mãe, tou falando com a mulher dos véus...
- Que mulher?
Quando virei novamente, não tinha ninguém lá, nem sinal que esteve realmente ali, nem o lugar onde havia sentado estava quente, parecia que tudo estava normal.
- Que mulher Gustavo? – Eu não conseguia raciocinar direito, apenas olhava para minha mãe e para o chão, tentando criar uma relação lógica entre tudo aquilo – Olha, se eu souber que você fez isso para me assustar, vai ficar uma semana sem o videogame, agora me diz, com quem estava falando?
Não me lembro quais palavras usei para convencer minha mãe do que tinha acontecido, e acho que também não consegui, porque ela apenas colocou a mão na minha testa, como se tivesse medindo a temperatura e depois saiu de volta para a cozinha, sem dizer mais nenhuma palavra, e quando meu pai chegou do serviço, ela também não comentou nada, não na minha presença, talvez depois tenha feito, quando eu estava dormindo.
A única coisa que sei é que aquela noite foi a pior da minha vida, foi repleta de pesadelos indecifráveis, visões de acidentes e de pessoas que nunca tinha visto na minha vida, não tive sequer um sonho normal, algo que uma criança pudesse se orgulhar. No outro dia, quando contei para meus pais, a única coisa que disseram era que eu devia rezar mais antes de dormir, que isso era um castigo por eu ser, por vezes, um menino desobediente. E eu acreditei que com isso não teria mais uma noite como a passada, só aquela vez já tinha bastado. E meu primeiro ato de proteção foi fazer uma prece, do jeito que só uma criança sabe fazer, cheia de promessas de mudança e um fim “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. ” Coloquei no meu coração que aquilo seria meu ritual para ter uma noite tranquila de sono. Mas não foi bem assim.
Eu cheguei em casa esgotado naquele dia, tinha tido aula de matemática e outras coisas que exigem bastante o uso do cérebro, mas ainda sim tive energia para brincar na rua com meus amigos e gastar o restinho dela resolvendo os deveres de casa.
Quando me deitei só tinha um único pensamento: dormir até tarde, já que no outro dia era sábado, e logo peguei no sono, não sem antes fazer minha prece de proteção.
Logo nos primeiros momentos, que me lembro, daquele sono, fui tomado por visões, pessoas encapuzadas em volta de um livro aberto, velas tremeluzindo, como nos filmes de terror. Elas pareciam entoar algum cântico em outra língua e tremiam, as vezes violentamente, suas vozes assumindo um tom de clímax, até que pararam e de uma só vez me olharam. Meu único instinto foi correr, mas não deu tempo, como um raio a visão mudou.
Agora eu estava dentro da minha própria casa, as mesmas cores, decorações, mas haviam outras pessoas, muitas outras pessoas, não as conhecia, não eram minhas professoras, nem tias. Estavam por todo o canto, em cima da mesa, deitadas sobre o chão, no sofá, algumas conversavam entre si, outras apenas me observavam passar. Pareciam despreocupadas, assim que toquei a maçaneta da porta do meu quarto, a visão mudou novamente.
Meus pais, tios, primos, olhavam para mim de cima, pareciam tristes com alguma coisa, e eu sentia que estava deitado em algo macio, talvez na minha cama, mas por que estavam chorando? Alguma coisa dentro de mim fez sentido quando minha mãe, muito chorosa, disse:
- Já vai começar a chover, vamos enterra-lo logo, não suportaria ver meu menino na chuva – E desatou a chorar novamente
Me enterrar? Eu estou vivo! Foi exatamente o que eu gritei, mas não surtiu efeito nenhum, pareciam não me ouvir e então simplesmente fecharam a tampa do que seria meu caixão e vi, pelo vidro, depositarem pás e pás cheias de terra em cima de mim, até que já não via mais nada do lado de fora. A sensação? Horrível, eu aranhei o quanto pude as paredes da minha tumba, soquei, gritei por socorro, mas já sentia minhas unhas se quebrarem com o esforço, e um fino gosto de sangue descer garganta abaixo, minha voz já não saia mais, estava suado e o coração batendo a mil, era o único som que podia ouvir ali dentro, até que comecei a sentir aquela sensação, de quando se está morrendo sufocado: o calor e a queimação que subia do peito para a cabeça que logo foi substituído aos poucos por um frio incomparável, sentia meu peito comprimir e minhas mãos aos poucos ficarem geladas, e um sono, muito sono, não havia mais desespero, somente o frio.
Quando acordei estava suado e tremia da cabeça aos pés, eu havia sentido todas as sensações, o frio, a falta de ar, e a primeira coisa que pensei em fazer foi correr para o quarto dos meus pais, mas quando vi a escuridão que rondava a casa decidi simplesmente voltar para a cama, e não preguei os olhos o resto da noite.
Depois daquela noite minha vida mudou completamente. É lógico que no dia seguinte contei aos meus pais sobre o que aconteceu. Mas foi em vão, na verdade nem me deixaram terminar, minha mãe simplesmente cortou o que poderia ser o início de uma confissão:
- Gustavo, pare com essas bobeiras já!
E imediatamente voltou a colocar as coisas para o café na mesa, murmurando depois um simples “Não quero mais saber disso”. A sensação foi sufocante eu de fato não seria ouvido, mas não colocava a culpa em ninguém, a criação religiosa dos meus pais os deixou assim, incrédulos sobre coisas que envolviam espíritos e visões, e então me calei, não seria ouvido e arrumaria um jeito de colocar para fora tudo o que vi, e veria.
Uma semana depois ainda buscava um ouvido para saber da minha desventura passada, mas todos moldavam a mesma expressão de incredulidade, parecia que eu estava falando a maior das heresias em uma língua imunda, não seria assim que conseguiria ser ouvido, precisava de outra maneira.
Eu não gostava do nome “diário” por isso chamei de Caderno dos Sonhos, mesmo que fossem pesadelos, eu só não queria chamar atenção dos meus pais. Meu caderno tinha desenhos disformes e histórias inacreditáveis, que só eu sabia ser verdade.
Com o passar do tempo e o aumento das obrigações que uma vida de adolescente exige, acabei esquecendo do tal caderno, ou para ser sincero, simplesmente o deixei de lado, me acostumei com as visões que vinham toda noite sem falta, algumas duravam apenas alguns minutos, flashes e vultos, em outras eu era o expectador, vendo o desenrolar da trama, impotente, pessoas enterradas vivas, acidentes de carros e mortes, mas elas nunca se repetiam. O que me atordoava antes, a ponto de me deixar o dia todo assustado, suando frio e olhando para os lados a cada instante, como um foragido, agora era apenas motivo de um grande nada, isso mesmo, nada, eu me tornei incapaz de sentir alguma coisa, fiquei absorto, eram anos da mesma coisa. Coloquei na minha cabeça que nem preces, nem pessoas, seriam capazes de resolver meu problema, dom, seja lá o que isso significava na época, e por isso, passei a ignorar.
Mas mesmo assim, meu amigo, ignorar também não foi o remédio certo, parece que depois disso as coisas passaram a desandar ainda mais, minha vida era apenas meu trabalho, sequer tinha uma namorada que suportasse minhas crises da madrugada, a maioria das garotas que me envolvia fugia no dia e seguinte e as mais corajosas duravam pouco mais de uma semana, bastava me ouvir contar sobre minhas visões para que pudessem fugir, assombradas, dizendo sempre a mesma coisa: “Você é louco”. Ah! Eu ouvi tanto essa frase.
Enfim, apesar de tudo isso, minha vida não era de todo ruim, a luz do dia era a minha escapatória, acordar, trabalhar, visitar os pais no final de semana e dizer-lhes que tudo estava bem.
Mas parece que o destino ou as forças que moviam minhas visões não queriam que eu as deixa-se de lado, e foi justamente por causa desse acontecimento que eu vim parar aqui, conversando com você, que no final vai fazer a mesma cara de espanto e dizer que sou louco, só que dessa vez com convicção, sabe, as vezes sinto que realmente a sanidade me fugiu em algum momento, talvez quando não tive ajuda, ou quando simplesmente decidi deixar passar, a verdade é que nunca vou saber o que realmente passa, o porquê fui “agraciado” com essa misticidade. Tenho pouco tempo eu sei, e já devo estar prestes a morrer nesse momento em que lhe conto minha história, mas não estou com medo, longe disso, confessando para você, me sinto até bem, talvez encontre na morte meu alento. Me desculpe, me perdi um pouco, continuando.
Antes de vir parar aqui, eu tive o que julgo “a última visão”, dessa vez não eram com pessoas desconhecidas, te contei isso? Então, todas as antes dessa eram com pessoas que nunca vi na minha vida, mas essa era diferente, era com a minha vizinha.
Autora: DarkQueen
ótima creepy mas acho que o fim foi muito brusco
ResponderExcluirPRGDL02022
ResponderExcluir"Que creepy bonita, que creepy formosa, que creepy bem feita!!!"
Sensacional, gostei muito. Depois da outra ou outras partes, escreva mais pra gente, você escreve muito bem, senti até a falta de ar do personagem, c é Loko!!! Parabéns 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Obs: as do SINISTRO também são muito boas, comento pouco mas leio todas!!
Que fodaaaaa
ResponderExcluirhistória otima, porém uma dúvida, é real?
ResponderExcluirOi é voltei a ler as Cp's e queria saber ...
ResponderExcluirVc já tá aqui a quanto tempo?