A porta deslizou. Esse maldito som. Todos sabiam o que acontecia após o som, era hora da chegada. Eles vinham, ligavam suas máquinas, faziam suas coisas inúteis e partiam. Até esse momento não podíamos fazer muita coisa, nossa presença não era desejada. Com isso, o tédio era dominante.
Pouco antes da partida, tínhamos um debate. Qual de nós iria acompanhar? Quem seria o acompanhado? Todos os dias, a mesma rotina. Como amávamos essa rotina. O prazer de acompanha-los era gigantesco, mas não era permitido que mais de um fosse acompanhado. Às vezes tínhamos êxito em burlar a regra, mas caso fossemos descobertos por nosso superior, éramos banidos. Ninguém queria sair dali, então o mais comum era seguir o procedimento. Um por vez.
Quando o acompanhado era recém-chegado, o processo era ainda mais prazeroso. Toda aquela inocência, a euforia de estar ali, de ter conseguido chegar ali. Pode não parecer, mas as pessoas ansiavam por serem inúteis. A concorrência era gigantesca, era comum ver os candidatos esperando nervosamente, entrando na sala proibida e saindo um pouco mais relaxados, como se a parte mais difícil tivesse passado.
Engraçado mencionar que havia uma sala proibida. Proibida logo para nós, quem teria esse poder, não é mesmo? Porém, segundo o superior não podíamos interferir naquela sala. Ela era parte essencial para que todo o projeto seguisse corretamente, para que não pudéssemos atrapalha ar a sequência natural da escolha dos acompanhados. Era decidido quem entrava e quem saía, tudo naquela sala gélida e sem graça.
Seria difícil escolher quem foi o meu melhor acompanhado se não fosse por ela, a acompanhada número 2506. Não era possível saber o nome de nenhum, apenas o código de registro. Era sua primeira vez, nunca havia visto tanta empolgação em um invólucro de carne. Meu trabalho foi difícil, tive que encontrar um novo meio para execução. Tive que plantar felicidade, os outros caçoaram de mim quando contei. Entretanto, eu sabia que o resultado seria positivo.
Todos nós acompanhávamos com um único objetivo, não só naquela localidade, mas em qualquer outra, o objetivo era o mesmo. Estávamos naquela há 22 anos e nenhum de nós havia sido capaz de conquistar nosso único propósito, era divertido sem a menor dúvida, mas a cobrança do superior estava nos deixando apreensivos. Era comum que muitos nunca conseguissem alcançar nosso objetivo com todos os acompanhados, mas em muitas outras localidades a taxa de sucesso era de 42%, enquanto a nossa era 0%.
Não teríamos resultado algum se não fosse por ela, ela nos forçou a melhorar. Nos primeiros acompanhamentos, muitos reclamavam dos frutos que não estavam sendo colhidos por nós sobre ela. Até que chegou minha vez. Fiz minha presença se tornar quase imperceptível, como se nada a acompanhasse. Fiz que ela tomasse decisões pensando que a faria feliz. Aos poucos ela foi afastando aquele sentimento do coração dela. Aquele que nós abominamos. Cresci sobre ela com a ambição de fazer o melhor para si. Seu relacionamento desmoronou, para o bem dela. Seus pais se afastaram, para o bem dela. Sua arrogância sucumbiu sua humildade.
Eu era alvo de piadas, me tornei o acompanhante exclusivo dela, por pura chacota. Era falado que ela estava se tornando cada vez mais um de nós e que iria me engolir. Não passava uma única sombra de preocupação sobre minha cabeça. Eles estavam esquecendo que estávamos lidando com humanos, humanos são frágeis e sentimentais.
Em menos de 3 meses, os resultados começaram a surgir. A saudade do seu verdadeiro amor, a percepção que sua família se fragmentara, a dificuldade financeira devido a separação dos pais, a arrogância refletindo em seu ambiente de trabalho.
Não vou dizer que ela foi fraca, não. Ela teve fibra, ficou 26 meses aguentando o inferno em sua vida. Foi abraçada pela Depressão, ela é a pior de nós, sabe? Não estávamos obtendo sucesso em fazê-la permanecer, mas com o meu novo processo ela perdurou, até o alcance de nosso único objetivo. Adicionamos mais uma alma ao nosso superior.
Ele era uma coleção maravilhosa de almas devastadas, que se perderam dentro de si mesmo. Desorientações caudadas por nós. O problema dos humanos é que eles sempre atribuem a culpa a própria espécie. Nós estamos em todo lugar, levamos às vezes anos para que nosso objetivo seja alcançado, mas não falhamos. Uma hora ou outra, um ser ou outro, chegam até ele.
Autor: Canton