O meu preconceito com mendigos não surgiu do nada. Se bem que,
preconceito não seria a palavra certa. Eu diria... que é um medo que deu origem
ao meu ódio por estes monstros que não possuem um lugar onde possam ser
enterrados. As pessoas me julgam e dizem que sou um lixo humano por causa
desta minha forma de pensar. O problema é que poucos tem conhecimento de
mim...
Quando criança, eu era dotado de um caráter dócil e exageradamente humilde.
Quem moldara a parte doce de minha personalidade foi minha mãe, uma jovem
dona de casa que sentia prazer em servir o meu pai. Bem, pelo menos era
impossível ela não sentir em não ser punida pelo temperamento de meu pai,
atiçado pelo álcool. Meu pai possuía uma lavoura de fumo a um quilômetro da
casa onde morávamos, em um local esquecido no sul de Santa Catarina. Todas
as noites, o meu pai chegava do trabalho e toda a sua angustia alcoólica era
descontada em minha mãe. Ele a empurrava para o quarto, fechava a porta e
era possível ouvir os gritos de minha mãe. No dia seguinte, ela aparecia com
hematomas bem visíveis, embora ela tentasse os esconder de algumas visitas.
O grande desafio de minha infância era uma lenda tradicional do local, que o
meu pai fez questão de me dar conhecimento. A lenda popular dizia que uma
encarnação do demônio Ubezeleb né forma de um homem sem teto, negro e mal
vestido que se alimentava da carne de crianças que ousavam aventurar-se pelos
campos depois das sete horas. A lenda era famosa na comunidade. Os sermões
de todos os parentais da vila eram claros: depois das sete horas da noite, toda
criança na faixa dos cinco e dez anos não deveria circular pela vila.
Certo dia, enquanto brincava com um carrinho de madeira de brinquedo que a
minha mãe havia feito, acabei entrando em terreno desconhecido. Escutei uns
gritos de agonia. Com medo, corri para casa, mas os meus pais não estavam em
casa. Fui desesperadamente para a lavoura de fumo aonde o meu pai
trabalhava, mas não o encontrei. Ouvi novamente os gritos. Pareciam ser os
gritos de uma mulher, a voz era parecida com a de minha mãe. De uma hora
para outra, os berros pararam. Corri o máximo que pude até o terreno
desconhecido e me deparei com a cena que até hoje me assombra: a cabeça de
minha mãe, com os olhos esbugalhados, cheia de sangue, jogada em uma valeta
qualquer. Ao lado, havia o que parecia ser a cabeça do mesmo mendigo da lenda
que meu me contara. Era a cabeça negra de um ser iluminado. Entrei em
desespero e gritei alto. Corri para casa chorando de desespero. A uma certa
distância, o meu pai estava voltando para casa. Eu estava tremendo e logo,
acabei contando tudo à ele. Ele tentou me consolar. A notícia se espalhou pela
vizinhança. O funeral foi realizado, mas o resto do corpo de meu pai nunca foi
encontrado. Todos falavam que o demônio em forma de mendigo que
assombrava a vila estava morto.
Uma semana depois, em um fim de tarde de segunda-feira, cheguei de mais
umas aventuras pela vila e encontrei uma panela no fogão. Eu estava faminto.
Rapidamente, peguei um prato e me servi. Era uma carne macia com um molho
apetitoso. Enquanto comia, o meu pai chegou em casa. Curiosamente, ele não
estava bêbado. Mas estava com um sorriso malicioso.
– Como está a comida que preparei? –Perguntou ele e eu apenas sorri
infantilmente com os dentes sujos. –Sabe que carne é essa? Ela é especial. É
uma mistura peculiar do demônio em forma de mendigo que tinha relações com
a sua mãe e ela mesma. Eu guardei está carne por dias. Aproveite o rango. –
Dito isto, ele se retirou da sala de jantar.
O pior é que, apesar de estar ciente de tudo, eu repeti, pois estava faminto.
Naquela noite, eu tive uma congestão e regurgitei todo o peculiar jantar que o
meu pai me preparara.