02/04/2019

Naquele Dia

Gostaria de começar falando que desde que sai de casa, aos 15 anos, por más influencias de amigos, passei a usar drogas. Usava maconha pra “relaxar e viajar”, cocaína e ecstasy em festas e sempre acompanhado de muita bebida, de preferência, as mais baratas e fortes.

Me acompanhava rotineiramente o cigarro a qual chamava de psicólogo de bolso, era sempre muito prazeroso fumar, quando acendia ao momento em que o descartava o tempo era só meu, não importa o que estava acontecendo, poderia estar chovendo canivetes, eles me faziam bem.

É óbvio que eu não me importava com a saúde, odiava estar de “cara” e tudo era motivo para me embriagar e/ou me drogar. Estava acima do peso e sempre fui um tanto quanto irresponsável com a faculdade, trabalho, enfim... Compromissos não eram minha praia.

Minha rotina era tranquila, trabalhava durante o dia em um emprego monótono, faculdade a noite, morava com minha irmã mais velha em um pequeno apartamento de dois quartos. Fugia de exercícios físicos já eu tinha algum problema que sentia enxaqueca ao fazê-los, problema este que nenhum dos diversos profissionais da saúde em que fui descobriu do que se tratava, passei até a tomar ansiolíticos para tentar amenizar este mal.

Me estressava quase sempre com tudo, de coisas bobas até coisas que mereciam tamanha atenção, tinha pavio curto e explodia constantemente, sempre fui, também, muito rancoroso.

Eu fugia um tanto quanto do padrão social aceitável de uma pessoa com quem se queira estar do lado, não pela minha personalidade forte mas por conta do uso constante de químicos. Embora escondesse este hábito de todos eu era capaz de me julgar quando em frente ao espelho.

Tive uma família maravilhosa, unida, que emanavam amor e companheirismo, não éramos ricos, mas das coisas boas que não são tangíveis tínhamos de sobra, caso esteja se perguntando o caminho que me levou a fazer o que fazia.

Naquele dia as coisas estavam diferentes, é difícil explicar detalhes, mas prometo me esforçar. A timidez do sol fez com que se escondesse durante todo o dia, o céu estava carregado de nuvens escuras, os ventos estavam numa velocidade acima do normal, se eu fosse exagerado poderia dizer que ele nos carregaria, parecia que ia chover mas não caiu uma gota de água.

As arvores se balançavam com o vento e o barulho que faziam... Elas pareciam querer dizer algo, achei engraçado e bem paranoico, na noite anterior havia abusado muito de mim mesmo ao festejar com amigos, mas, como sempre, contava com a resistência da juventude.

Não parou por ai, normalmente um sábado no bairro é bastante movimentado por conta do comércio e vizinhança mas não naquele dia, ruum deveria ter observado com mais atenção. As ruas estavam vazias como se fosse véspera de réveillon em cidade pequena do interior, poucas pessoas transitavam.

Fui para a sacada do apartamento que morava, era no terceiro andar e permitia uma visão ampla de alguns lugares, um gato preto que corria no telhado da casa da frente parou subitamente e me olhou... olhou fixadamente, ficamos naquilo por um tempo mas voltei pra ver alguma série que matasse meu tédio.

Embora eu ainda estivesse de ressaca da noite anterior não poderia fazer nada pra matar o tempo, minha mãe estava na cidade e viria me ver naquela tarde, então aguardei sóbrio a sua chegada. Minha irmã estava trabalhando e não a tinha visto já que ela saiu cedo e eu acordei tarde.

Minha mãe demorou, como de costume, mas não dei bola já a conhecia e não ia me permitir estressar algo previsível assim. Assistia TV, entrava no whatsapp mas nada de novo, nada de interessante, pelo contrário parecia tão solitário, me senti só e disse a mim mesmo:

- mas que ressaca filha da puta.

Já estava quase anoitecendo quando ela chegou, subiu as escadas reclamando, me deu um beijo, me abraçou, começamos a conversar sobre a viagem dela, ela me perguntou sobre a faculdade, enfim... colocando os papos em dias.

Na frente dela, evidentemente, eu era um bom filho, ela sentia orgulho de mim, do meu trabalho, da faculdade, por estar sempre cuidando de todos entre outras coisas. E eu não poderia deixar a peteca cair, disse:

- Mãe, veja o trabalho que eu fiz para uma apresentação de seminário, vou colocar ele na TV para que possa ver.

Ela pediu cinco minutos pois iria ao banheiro fazer xixi, era o tempo em que eu conectava o computado na televisão, puxei uma cadeira pra frente do hack da sala onde estava o notebook, sentei e conectei na TV. Comecei a repassar o material que eu havia feito.

Então minhas vistas começaram a embaçar até ai tudo bem eu usava lentes de contato que as vezes ficavam mal lubrificadas bastava fechar e abrir os olhos algumas vezes para corrigir, mas não estava dando certo então iria lava-las assim que minha mãe voltasse.

Ainda sentado senti um calafrio, um vento forte entrou pela sacada e atravessou todo o apartamento indo embora pela porta de entrada, que dava acesso as escadas, na qual minha mãe havia deixado aberta ao entrar. As cortinas balançaram e subiram com o vento, tocou em um vaso de flores que caiu no tapete e rachou mas sem fazer muito barulho.

Minha mãe ouvindo o barulho disse:

- Filho, o que houve?

Eu cerrei os dentes, minhas mãos estavam tremendo e eu só conseguia ouvir o som do meu coração, senti um sono terrível, então coloquei o braço esquerdo sobre o hack, apoiei a cabeça sobre eles e fechei os olhos por um instante.

Segundos depois abri os olhos novamente, não entendia o que tinha acontecido, vi o jarro rachado sobre o tapete e, observando a demora da minha mãe no banheiro levantei e fui encontrar com ela. Notei que do lado de fora estava muito escuro, já estava escurecendo então só liguei a luz da sala e fui ao encontro dela.

- Mãe, que demora, vem logo ver !

Percorri o apartamento que parecia mais longo do que o normal e, para tudo isso, ainda colocava a culpa na ressaca. Quando cheguei ao banheiro a vi sentada no sanitário terminando de fazer xixi e disse:

- Mãe !

Ela continuou a fazer xixi, fingiu que eu não estava ali, pegou papel higiênico para se limpar. Eu fiquei estático, ela me ignorava sem razões, então chamei novamente impaciente com a possível brincadeira mas com medo de não ser.

- Mãe, ta me ouvindo ?

Ela continuou a ignorar, se levantou, vestiu a calça, deu descarga e foi em direção a pia. Meus olhos pareciam me enganar, me senti aterrorizado, tudo estava se encaixando e enfim estava entendo o que havia acontecido.

Em passos curtos e lentos eu dei as costas a ela e segui em direção a sala de TV, apertava minhas mãos frias e úmidas tentando não acreditar no que havia acontecido, toquei nas paredes, tudo parecia tangível, procurava me convencer do contrário até que vi, quando olhei pra trás, eu não estava projetando a minha própria sombra.

Arregalei os olhos, minhas pernas tremendo quase não obedeciam aos meus comandos, minha boca estava seca e sentia que nenhuma quantidade de água poderia saciar a minha sede.

Foi somente quando eu cheguei na sala que finalmente acreditei, lá estava eu, ainda estava sentado na cadeira, em frente ao hack, deitado sobre meu braço com os olhos arregalados e sem cor.

O vaso de flores estava intacto sobre a mesa, ele não havia caído e rachado, o gato negro estava na sacada, lambendo as próprias patas e olhando fixadamente a mim.

Ouvi sussurros, pessoas conversando, passos, não entendia o que diziam, não sabia o que fazer. Queria que estivesse somente sonhando, mas era a fria realidade meu coração havia parado.

Num instante todas as luzes se apagaram e, aos poucos, foram ligando novamente. Primeiro a da sala em que estava, a do corredor da porta de entrada, as luzes das escadarias ligaram como se o sensor tivesse detectado movimento, e assim sucessivamente, uma atrás da outra.

Eu já sabia, eu tinha que caminhar por onde as luzes indicavam, mas eu não queria descer aqueles degraus. O gato passou por mim em direção a porta de entrada e parou, olhou de volta com o mesmo olhar que havia visto mais cedo e seguiu descendo. Não me restou alternativa senão acompanha-lo.

Autor: Walter Miranda