Morávamos numa fazenda bem afastada da cidade mais próxima. A gleba fora nosso lar desde que me lembro, tendo nascido lá tanto eu quanto minha irmã Ana. Meus pais eram camponeses e extraíamos a quase totalidade de nossa subsistência da propriedade. Meu pai, homem forte e severo, falecera já havia alguns anos. Fora tolhido do mundo dos vivos por uma febre que levou consigo grande parte dos moradores daquela região no ano negro que marcou sua passagem.
Vivíamos uma vida mansa e sossegada.
Ocorre que um dia minha mãe foi acometida por dores lancinantes que lhe tomaram as forças e enfraqueceram seu corpo antigo. E a isso seguiu-se um acesso de febre fortíssimo que mandou-lhe de vez para o leito de seu quarto escuro.
Desesperado, temendo que a tal “calentura”, como ficou conhecida a febre que ceifara tantas vidas anos atrás, houvesse mais uma vez lançado seus tentáculos soturnos sobre nossa casa, tratei de selar um bom cavalo e, na companhia de nossos dois criados, rumei para a cidade deixando minha mãe aos cuidados de minha querida e frágil irmã.
A estrada para a cidade consistia num caminho pedregulhento e sinuoso que singrava as terras de várias famílias antes de fazer uma curva fechada para sudeste a cerca de duas léguas distante de minha casa, curva esta que ficava bem no dorso de um morro levemente íngreme.
No topo desse morro e em volta da parte da estrada que atravessava a elevação, havia uma pequena floresta de árvores empretecidas que guardava em seu coração uma charneca estéril e fedorenta que embaçava a vista com suas emanações de fumo esbranquiçado e gélido.
A estrada, infelizmente, passava em meio ao tal pântano e a vegetação que o circundava era tão crespa e fechada que não havia hipótese de travessia por outra parte que não as poças de líquido azeviche e borbulhante do charco mal cheiroso.
Devido aos supostos lamentos que se dizia ecoar dos arredores daquela mata durante a noite, o local ficou conhecido como cancela das lamentações pelos moradores da região. Sua fama a precedia e não faltavam histórias, as mais tétricas, sobre toda sorte de
malefícios ocorridos aos infames viajantes que por ali passassem quando em viagem para as urbes.
Meus criados protestaram para que tomássemos outro caminho que levasse à cidade, informando-me que na direção oposta havia outra passagem, mais distante dos medicamentos que salvariam minha pobre mãe, contudo, mais segura.
Recusei liminarmente seus augúrios e lhes disse que poderiam eles mesmos voltarem para casa e se colocarem a fazer algo de utilidade pela minha mãe, em vez de choramingarem feito crianças medrosas em momento tão impróprio. E percebendo minha ira desesperada, apesar de relutantes, não seguiram o conselho.
Sendo assim, prosseguimos os três em nosso caminho.
Adentrando a floresta escura por volta das quatro da tarde, alcançamos a charneca lamacenta pelas dezoito horas daquele dia agourento. E a julgar pela luz escassa que conseguia atravessar a copa das árvores, parecia mesmo que eram dez horas da noite.
Estávamos todos muito assustados com as formas ominosas e sinistras da vegetação que cercava o local. Por vezes meus criados chamaram-me a atenção para os supostos vultos a que se moviam por entre aquela ramagem doentia. Eu lhes censurava os sentidos afirmando que viam coisas na bruma densa que ocupava os espaços exíguos entre as árvores. Mas interiormente guardava certo horror daqueles movimentos diabólicos e apesar da vontade de evadir-me dali o mais rapidamente possível, prossegui estrada à frente afastando o medo e colocando a imagem de minhas amadas parentas em seu lugar.
Desde que falecera meu pai, avoquei-me a responsabilidade pelo bem-estar do que sobrara de minha família, pois era o único filho homem. Chegando mesmo a desistir do casório com a filha do vizinho lindeiro para que pudesse velar pela minha idosa mãe e adorada irmã. E aquele não era o momento mais apropriado para que fraquejasse em meus desígnios.
A visão do pântano era bem mais terrífica que as histórias a seu respeito. E pude sentir nos ossos a gélida sensação de solitude daquele maldito lugar. Era um lamaçal imenso entrecortado por moitas espinhosas que exsudavam fogos-fátuos num aparente padrão bizarro. Havia um cheiro de morte e podridão por toda a orla do alagadiço. Um silêncio aziago somente interrompido pelo gemido de animais desconhecidos imperava naquele ermo.
Corriam historias assustadoras de que um bando de freiras desaparecera no interior da floresta enquanto marchavam em procissão vindas da igreja da cidade. Desde então dizia-se que era possível ouvir as mulheres malditas gemendo suas desgraças quando a noite se amortalhava por sobre as árvores pitorescas.
Sendo-nos impossível seguir caminho devido ao avanço das horas e evidentes dificuldades e cansaço das cavalgaduras, tivemos de parar à entrada das terras úmidas. Os criados arengaram e mais uma vez lhes aconselhei voltar. Contudo, covardes que eram, contentaram-se em resmungar entre si e rezar enquanto montávamos nosso insólito acampamento.
Comemos as provisões trazidas em nossos alforges, encorajamo-nos mutuamente, fizemos uma prece conjunta e nos deitamos em nossos colchões de viagem sob o sereno da noite eterna que nos circundava.
O silêncio era fatal e perturbador. Algumas vezes um fogo-fátuo saltava fugazmente por entre as moitas de modo a quase nos matar de susto com aquela luminosidade doentia amarelo-azulada. Contudo, após algum tempo de vigília involuntária, acabamos sendo derrotados pelo cansaço crescente e adormecemos um após o outro, caindo num sono pesado e merecido.
Acontece que no meio da noite fui acordado por um ruído que lembrava o choro de uma criança ao longe. O lamento ecoava no vazio enegrecido do vale.
Estando mesmo horrorizado pelo som aterrador, levantei-me de um salto e procurei instintivamente pelos criados para acordá-los e me certificar de não estar ficando louco ouvindo sons inexistentes no meio do nada. E qual não foi minha surpresa ao perceber que os desgraçados haviam-me abandonado, tomando rumo desconhecido enquanto eu estava entregue aos caprichos do sono.
Praguejei em voz alta. Gritei pelo nome de um dos serviçais desaparecidos. Não houve resposta. Pelo contrário. Mais uma vez ouvi a voz infantil lamentando e chorando na escuridão.
Atravessado pela compaixão e clemência à miserável alma infante perdida em tão funesto lugar, acendi o lampião que trazia a tiracolo e arqueei a mão por detrás da orelha esquerda aprumando o ouvido. Escutei então novamente o choro que agora parecia vir de uma certa direção ao sul de onde estava. Apanhei a arma que trazia na bolsa do cavalo,
conferi a munição, calcei minhas botas e fui em direção ao som escabroso, sempre atento ao caminho para que não me perdesse em meio àquele inferno alagado.
Caminhei por cerca de meia hora atravessando o charco e ficando atolado algumas vezes, até que cheguei numa espécie de clareira onde jazia uma tapera em ruínas feita de estuque. A casinha estava totalmente às escuras e o som do choro parecia nitidamente vir de seu interior.
Fiquei meio atônito perante a visão perturbadora e enquanto piscava sem entender que sorte de lugar era aquele, me pareceu que uma figura esfumaçada esgueirou-se por sobre o telhado precário da velha tapera, indo introduzir-se na cavidade quadrada da chaminé que se erguia pouco mais de meio metro acima da superfície das telhas.
Persignei-me e toquei o punho da arma em minha cintura, esperando pelo pior. Nesse instante uma claridade bruxuleante surgiu timidamente pelas aberturas nas paredes do aposento e agora sim a voz da criança soou rouca, vindo certamente do interior da cabana. Como que acordado de repente dum sonho aterrador, joguei o medo de lado e pensando na fragilidade da alma que pudesse estar presa naquele lugar nefando, corri em direção à porta da tapera. Chutei-a e ela obedientemente voou para longe emitindo um ruído seco. Então vi sentada no meio do cômodo único uma bela menininha de olhos e cabelos negros segurando uma vela por entre mãos trêmulas.
Seus olhos escuros estavam arregalados e inchados. Lágrimas copiosas brotavam deles inundando sua face branca de expressão inocente e amedrontada.
Aproximei-me rapidamente da criança e percebi, não sem estranhamento, que ela estava muito limpa e asseada, com os belos cachos de seus cabelos amarrados por uma fita amarela na base da nuca. Bem como sua roupa, que estava limpa e alva. Aquilo tudo contrastava muito com a imundície bizarra do local.
Ante minha presença, a garotinha largou a vela que se apagou ao cair no chão e levantou seus pequenos braços em minha direção, como se urgisse por ser retirada dali.
A visão atacou meu coração preocupado e imediatamente peguei a menina nos braços limpando-lhe as lágrimas com a mão livre e perguntando-lhe o nome. Ao que a criança se resumiu a me responder esta frase:
-- A mamãe... a mamãe está morta, moço!
Sua vozinha fraquejava enquanto pronunciava as sílabas e ao término da fala enterrou sua face em meu peito caindo num pranto dolorido.
Eu não sabia o que fazer e estando emocionado com todo o ocorrido, virei-me e tomei o caminho de volta ao acampamento com a pequena pessoa no colo.
Enquanto caminhava inquiri insistentemente a menina sobre quem ela era e como havia chegado onde a encontrei. No entanto, não recebi qualquer resposta às minhas perguntas. Parecia mesmo que a pequena criança não sabia dizer nada além daquela frase exordial.
Chegando ao que antes fora meu acampamento, como chovesse um pouco, arriei o cavalo, juntei minhas coisas e mais que depressa, com o coração apertado de terror e pena, pus-me a cavalgar por entre os charcos do pântano, esporeando desesperadamente o cavalo. Ele que me perdoasse, mas tinha que nos tirar daquele lugar.
Cerca de umas três horas mais tarde havia saído da orla ominosa daquela floresta maldita e estava em direção à cidade novamente. A menininha dormia calmamente encostada ao meu abdome enquanto era sacudida pelo passo monótono e ritmado do cavalo. Agora, com a luz da alvorada refletida em sua tez pálida, pude perceber o quanto suas feições se aproximavam das de minha querida irmã quando mais nova. E por isso senti mais pena ainda da pobre garotinha, como se algo nela me despertasse os sentimentos paternais mais profundos.
Pra que se encurte o relato, basta dizer que cheguei à cidade dois ou três dias depois da aparição noturna no meio da charneca. Lá tratei de adquirir a medicação que motivara toda a minha viagem por meio de um comerciante cego de pupilas esbranquiçadas e cabelo grisalho desgrenhado. O tal vendedor disse-me que conhecia a menina quando ouviu o relato de como eu a havia encontrado. Assumiu um tom grave e afirmou ser a criança um arauto do outro mundo que trazia a mensagem da morte. Refutei as afirmações do homem visivelmente louco e me resignei a lhe perguntar pelo caminho de volta à minha região que fosse diferente daquele que cortava a floresta. O estranho homem silenciou-se por um momento e depois me respondeu calmamente por onde deveria me guiar para que evitasse os perigos da “cancela das lamentações”. Agradeci ao comerciante e lhe dei algumas moedas pela informação. O homem agradeceu e me aconselhou que passasse na igreja antes de seguir viagem e pedisse a bênção da Providência, pois iria precisar.
Esporeei o cavalo e fui embora sem seguir o conselho do louco. Não havia tempo para aquilo. Minha mãe doente aguardava meu retorno, bem como minha querida irmã.
O caminho diferente era bem mais extenso e passada uma semana de viagem avistei os contornos de minha morada ao longe. Trazia a criança encontrada no pântano comigo, pois alimentei grande apreço por sua companhia nesses dias solitários e aviltantes que passamos juntos. Mormente por suas nítidas semelhanças de comportamento com os trejeitos de minha amada irmã quando em idade tão tenra.
Cheguei em casa ao anoitecer. Apeei do cavalo apressadamente e corri em direção à entrada, quando de repente assomou minha mãe ao portal com expressão terrífica e desesperada. Seus cabelos esvoaçados. Suas feições tensas, apesar da saúde que parecia lhe ter voltado.
Ao me avistar a meio caminho da casa correu ao meu encontro segurando as pregas do vestido para que não se lhe enlameassem as bordas. E antes de me alcançar lançou os braços para o alto largando o vestido e vociferando desesperadamente:
-- Oh meu filho! Meu filho querido! Tão feliz está essa mãe em ver-te que por um momento senti meu coração desapertar no peito em virtude da perda recente que se abateu sobre essa família.
Colocando a menina que trazia no colo por sobre a relva molhada, e franzindo o cenho sem que entendesse como podia estar minha mãe tão bem de saúde não havendo tomado medicação alguma, perguntei-lhe aturdido:
-- Ora, minha amada mãe, o que se passa com teu espírito, vez que estais tão bem fisicamente? Eu mesmo já me julgava atrasado em minhas diligências pensando haver ocorrido o pior por causa de minha demora.
Neste instante minha mãe, que agora me alcançara, abraçou-me fortemente e por entre lamentos me informou:
-- Pois é porque tu não sabes que tua irmã feneceu um dia depois de tua partida, vítima da febre. E eu, amortalhada que estava, nada pude fazer que evitasse tamanha desgraça! Os criados que contigo foram jamais voltaram e vejo que contigo não estão. Guardei minhas forças para que pudesse te dar a notícia eu mesma, pois devi minha vida até agora à memória de minha filha falecida.
“Quando despertei e a encontrei morta ao meu lado, roguei aos céus para que tu voltasses a tempo de salvar nós duas e pedi ao espírito de Ana que te avisasse da tragédia, pois eu mesmo não podia fazê-lo.”
“Contudo, vendo que não fui ouvida em minhas orações, suportei o fardo da morte até que novamente te encontrasse e pudesse contar o que se passou.”
“Lamenta-te. Veste-te de luto. Tua amada irmã está morta e jaz desde o dia de sua passagem ao lado de meu leito exatamente como ficara no momento de tua partida!”
E eis que enquanto dizia essas palavras, o fôlego de minha mãe pareceu se diminuir e seu amplexo se arrefeceu em torno de mim, de modo que ao pronunciar a ultima palavra da sentença funérea, esfriaram-se de uma vez suas mãos e caiu morta em meus braços com a rigidez lívida dos cadáveres amanhecidos.
Como estivesse em choque e não pudesse sequer mover um músculo após a seqüência de fatos narrados, fui arrancado, extirpado de minha petrificação sepulcral pela estridente voz infantil que chorava e puxava a barra de minha calça, lamentando a morte de minha família.
Era o agouro daquela menininha tão parecida com a minha finada irmã, a qual encontrei na maldita charneca.
Autor: Rodrigo Bispo