João Silveria fintava o céu estrelado, cujo fulgor do luar cortava brilhando em seus olhos num descontento final. Fintava o vazio de seu derradeiro destino compelido por um desejo banal. João então, relembrou toda sua história até ali, naquele poço, ao ser traído e atraído por seus próprios desejos.
Sua vida e a história ligava-se àquele lugar; estavam entrelaçadas com a incógnita história daquele poço, erguido em imemoráveis tempos. Para alguns, obra do demônio, a qual remetia a tempos antecedentes a de Portugal. Assim rezava a lenda.
Poderia ser como uma lenda qualquer de poço dos desejos, mas aquele era de testemunho combalido, não somente por sua origem jamais descortinada, mas por realizar todos os desejos de seus pedintes.
Quando soube do posso, João abraçou o mesmo e por meses depositava-lhe os poucos réis que lhe sobravam.
Aqui está sua história...
João era um negro alto e de físico vigoroso, pelo trabalho duro como ajudante de ferreiro, pertencente a uma geração de negros livres, pois antes fora agraciado pela lei do ventre livre.
Tinha olhos negros e profundos, mas um sorriso luminoso, principalmente ante seu alvo de afeto, Justine, uma jovem e formosa moça filha de Joaquim, o ferreiro dono do lugar.
O fato é que João, perdido em seu platonismo pela jovem, temia nunca poder conquistar seu afeto e amor, sem as virtudes financeiras dos abastados brancos e por isso apelou ao poço por meses a fio. Poço, pai indireto de muitos segundo seu pai, que lhe contava as histórias desde a tenra idade.
De certo, muitos testemunhavam a favor de um misticismo envolvendo o poço de maneira que o senhor de seu pai apenas logrou sucesso com o mesmo. Vindo pra terras de Pindorama, falido e condenado pela coroa, pagou por seus pecados em terras tupiniquins até que visando tirar do papel um projeto de moinho e fábrica de farinha, clamou ao poço dando-lhe oferendas de dobrões por escravos que o executassem. Assim veio a ele dado por um amigo, escravos como Zulu Silveira (pai de João), escravos que compelidos ao trabalho, edificaram o projeto de seu senhor, Emmanuel Nogueira.
Porém, extenuado das longas jornadas de servidão, Zulu Silveira clamava em seu âmago íntimo pelo descanso da liberdade e em segredo pediu ao poço, com poucos dobrões custosos, por uma família livre. Assim fora que engravidou sua mulher de João Silveria quando ainda no percurso da gravidez se anunciou a lei do ventre livre e com notável esperança, Zulu viu se formar no ventre da jovem negra, o futuro de uma família livre através de João Silveira.
João cresceu ouvindo as histórias do famigerado poço que estava em meio a uma densa floresta no meio do nada, e quando cresceu, seu pai pediu para que ele vivesse o que ele nunca viveu. Fosse ao sabor do vento que lhe desvelaria os caminhos da liberdade e lhe dissesse aonde eles deram, pois João teria como senhor apenas Deus.
Porém, com temor, João viu sua liberdade cerceada pelas limitações financeiras impostas pela sociedade, assim fugiu ao amor por Justine a quem fintava seus cachos dourados em segredo. Amar era o significado mais cheio de ternura de sua liberdade, ainda que um amor platônico em meio a sua malfadada desventura financeira.
A jovem e bela Justine também teria sido fruto do ocaso do poço ao luar. Seu patrão, o ferreiro Joaquim, contava-lhe que ao deflorar sua amada mulher descobriu que ela era estéril. Assim Joaquim clamou ao Deus do alto e o poço do baixo, o qual a fundura não se podia desvelar, depositou toda semana um dobrão naquele poço, até que com os meses, a resposta lhe sobreveio pela esperada gravidez de sua mulher.
Joaquim que conhecia terras inglesas, assim batizou Justine por considerar justiça e gracejo do insondável poço, o qual somente se poderia vislumbrar pelo ribombar dos sons dos dobrões caindo em seu fundo.
Muitas eram as histórias de desejos atendidos pelo poço, por coincidência e sorte ou destino dos deuses e orixás. Mas João ainda que um crente no Deus dos cristãos passou lá depositar moedas junto com sua fé, na esperança de que seu desejo se concretizasse.
Durante o primeiro mês João passou a depositar todos os sábados, suas finanças e esperanças, mas como num infortúnio não teve respostas a não ser um agourento silêncio do poço.
Assim passou-se dois meses e mesmo quando as trevas da noite se adensavam, João passou a depositar e depositar...
Passou-se então quatro meses, cinco e seis, até que numa noite sob a lua cheia, João parecia exasperado com aquele lugar. Depositou suas moedas até a última o fundo tocar, e murmurou, depois praguejou contra o infortúnio do poço que tragou por gerações adentro as fortunas.
Tomado então por uma perplexidade mesclada à fúria, inclinou-se sob a abertura, na esperança de que o fulgor do luar lhe descortinasse algo. Ouviu água, mas apenas de forma pardacenta consegui contemplar até que o muro que lhe escorava cedeu até o fundo a seu derradeiro fim.
Seu corpo estava estropiado e contorcido por fissuras e fraturas expostas, quando despertou ao fintar o céu estrelado e o luar, pela abertura do poço de onde caiu.
Sentiu então desvanecer-se suas forças, junto ao sangue que escorria de seu corpo, junto às fontes cristalinas.
João estava em seu fundo e como último esforço, virou-se para o lado e contemplou infindáveis dobrões, moedas de todas gerações acumuladas como num grande cofre natural. Seu sangue que manchava as imaculadas águas escorria entre as peças de ouro e prata.
Naquele momento, ele finalmente compreendeu, que o poço que lhe atraiu, não lhe traiu, mas apenas cumpriu o que ele sempre clamou em sigilo insondável, morrer rico.
Lá estava ele agora, cercado de toda riqueza que sonhou e clamou, o depósito de inúmeros pedidos e desejos cujas histórias nunca conheceu, mas que de um modo a outro o levou inexoravelmente até aquele momento.
Autor: Gerson Machado de Avillez