Era uma noite quente e sombria, as janelas estavam rangendo, ainda que não houvesse vento. Maira, nossa protagonista, sorria para a parede como se conversasse com um amigo de longa data. Eu não podia vê-lo, mas sabia que algo já não estava bem.
Os dias foram se passando, as aulas começaram e, muito embora tivesse sido uma garota popular entre amigos e funcionários de sua escola, Maira já não refletia a garota educada e prestativa que conhecíamos antes do pequeno período de férias de verão.
Não posso negar, Maira passou por grandes problemas em casa, os pais estavam se divorciando após anos de convivência pacifica, porém, sem amor ou afeto algum. Seu irmão, já distante de casa a alguns anos, era o único que mantinha Maira em sua racionalidade, comportando-se como uma garota comum de ensino médio. Entre uma folga e outra em seus atendimentos no escritório de advocacia, Marcos sempre tentava encontrar um tempo para entrar em contato com Maira, nunca com os pais, pois, como mencionei, os pais viviam juntos, mas não estavam realmente juntos, e Marcos percebia isso a muitos anos. Claro, depois de um tempo Maira já não atendia Marcos também.
Muitos problemas ocorreram na adolescência de Maira, estes comuns para qualquer pessoa normal de classe média, naquela idade, dentre eles, problemas financeiros dentro de casa, amores incompreendidos, crises existenciais, etc., entretanto, nestes milênios que passei nestas terras derrotadas que vocês chamam de Terra, pude perceber que os problemas não podem ser medidos de forma exterior, como um único problema com a sua preocupação sentida na mesma proporção para todos, sendo assim, qualquer que seja o problema, medimos de acordo com a intensidade que se sente, e assim, observamos a existência de pessoas com alto poder aquisitivo, com o que vocês chamam de “depressão”, bem como observamos pessoas de baixa renda desfrutando de cada momento de sua vida medíocre, com grande felicidade. Claro, depois de anos e anos de convivência entre vocês pude perceber que estas últimas pessoas que mencionei tendem a ter uma grande ignorância quanto ao que se passa aos seus redores. Estas são as que não enxergam o mal da humanidade, a ganância das pessoas, a inveja, etc., e também são as mais difíceis.
Como mencionei, Maira mudou drasticamente no período de férias, pude notar isso, claro, estava com ela o tempo todo. No fim de semana que precedeu a primeira semana de aula, Maira estava em seu quarto olhando para a parede novamente, sorrindo, como se conversasse com alguém.
Com o passar dos dias percebi que não havia algo lá, Maira estava vagando em seus próprios pensamentos apenas, e eu, claro, muito embora capaz de diversas coisas neste mundo humano, não podia simplesmente ouvi-los, no entanto, com a minha vasta experiência existencial, pude perceber que estava tudo indo bem.
Quando percebemos alterações comportamentais drásticas em pessoas, inicialmente tendemos a acreditar que “é uma fase”, caso perpetue, começamos a cogitar a possibilidade de uma doença neurológica, ou psíquica, como a depressão. Não levamos a sério inicialmente, e com o passar dos dias, finalmente entendemos que ela existe e pode estar ocorrendo neste exato momento.
Entretanto estas cogitações já não são relevantes para Maira, são 3h da tarde quando percebo que Maira está debruçada em sua mesa de estudos. Seu notebook aberto traz consigo uma página comum de Word, com algumas palavras escritas. Entendo isso como um convite pessoal para sanar dúvidas sobre qualquer que seja a situação que Maira se encontra. Isso é relevante para mim.
“...então, deixarei que ela tome o meu lugar. Já não posso conviver pacificamente com estas pessoas. Sinto-me maltratada, abandonada, e negligenciada a muito tempo. Sinto que aprendi a lidar com isso, que aprendi a guardas nas profundezas da alma os rancores por todos os que me machucaram.
Ela pode me proteger, sinto isso. Eu escuto ela as vezes, falando comigo, me dizendo para continuar, me dizendo que posso ser grande, que posso evoluir, mas sei que não posso, e quanto mais ela me fala isso, mas percebo que não posso de verdade.
Não consigo abandonar esta tristeza profunda, não consigo não lembrar de cada palavra e de cada pessoa que as pronunciou. Não posso esquecer... mas também não posso lembrar... não posso deixar ir, mas deixar ficar me faz mal. Ela, no entanto, é forte, perfeitamente controlada, e protetora.
Diga aos meus pais que eu os culpo, e que não os amo, e diga a ela que tome providências para que eu possa descansar em paz, de fato.”.
Ao lado de seu corpo um frasco de Nembutal, em sua frente meu reflexo. Sim, um reflexo perfeito de um corpo que me pertence agora. Meus olhos, minha boca, meus longos cabelos negros, meus sentidos.
Lembram quando eu disse que os problemas não podem ser medidos de forma exterior? Cada pessoa basicamente vê o mesmo problema de diversas formas e intensidades. Bom, eu realmente disse isso, no entanto omiti alguns pequenos detalhes, claro. Quando nascemos, os de minha espécie, fomos incumbidos de trazer o caos a humanidade. Como de nossa essência, simplesmente fazemos, sem questionar.
Dezessete anos, este foi o tempo que levei para pegar mais uma. Claro, cada um tem seu método, alguns de nós preferem desastres rápidos, ditos naturais, outros preferem a discórdia, já outros preferem observar os humanos se matando e se maltratando, entre eles mesmos, chamamos os que escolhem este metodo de "preguiçoso", porque não é preciso muito esforço para que isso ocorra... ah, o ser humano, criaturas horrivelmente fascinantes. Outros de nós optam por métodos de “acidentes”, que normalmente ocorre após algum ato de negligencia por parte de alguns de vocês.
Meus métodos são mais, digamos, saborosos. Eu implanto situações, claro, mas principalmente, implanto em minhas escolhas, como Maira, a confiança. Alguns, obviamente, acabam percebendo algo estranho, e eu não posso lutar contra a força desta pessoa em querem se livrar de um mal, ainda que ela não saiba exatamente o que é este mal. No entanto algumas dessas pessoas, como Maira, sucumbem aos meus métodos.
É de praxe: até determinado ponto de suas vidas elas se comportam como qualquer outra pessoa, mas a semente já está germinando em seu ser a muito mais tempo do que ela imagina. Há, claro, um gatilho, que pode vir de diversas formas. Uma briga, uma separação, uma traição, ou ainda, um aumento de peso, um amor não correspondido, ah, são tantas formas. E eu volto a afirmar, o segredo é sempre fazer a pessoa sentir intensamente seus próprios problemas, quando na verdade pode nem ser um problema, mas se eu não fizer ela ver e sentir as situações eventuais, ou mesmo as cotidianas, desta forma, eu deixo de existir. Quando concluído meus serviços com a pessoa de minha escolha, na medida de seus próprios limites, com o medo e a insegurança de um futuro não observado, um futuro borrado, incerto, assustador, eles mesmos procuram a forma mais fácil para o abate. Alguns, como Maira, usam de métodos incertos, outros, mais centrados, procuram armas, de fogo, ou mesmo brancas, já outros, não tão corajosos, procuram métodos que, de alguma forma doentia, os façam se sentir menos culpados quando chegarem ao outro lado, como se jogar em um trilho e acreditar que a culpa será dividida entre ele e o responsável pela locomotiva.
Mas o mais importante, algo que nunca conto para eles, NÃO HÁ UM OUTRO LADO, não há nada lá para eles, por isso vocês humanos são as presas perfeitas. Quando “se vão” deixam um recipiente vazio para que possamos entrar e tomar conta dele, um corpo perfeito para que continuemos a conviver entre vocês, realizando o que nos foi mandado, o que nos faz sentir alguma coisa, uma saciedade.
Maira acreditou em mim, me deu de presente seu corpo para que eu cuidasse dele, vivesse por ela, acreditando que sou forte e protetora. Claro, sou forte e protetora sim, mas para nossos interesses, não para os de vocês, uma espécie medíocre e egocêntrica, a única que observa problema em tudo, exatamente tudo o que os rodeiam.
Mas quem sou eu? Não se preocupe com isso, isso não é relevante para você no momento. Na verdade, quando o momento chegar, você perderá qualquer oportunidade de obter esta resposta, no entanto eu, graças a sua insegurança, e a sua negligencia consigo mesmo, estarei lá, à espreita esperando pacientemente a escolha que você fará sobre qual método utilizar. Basta então que você me faça este favor de continuar vivendo a sua vida exatamente da forma que você está fazendo agora, afinal, posso te garantir, estes problemas que você acredita ser grande demais para suportar, só podem realmente assim o ser...
Autora: Dan Yasuge (Insanity Pill)