Capítulo 1 - A Banheira
Desde que me entendo por gente, elas estão aqui, dentro da minha cabeça. Às vezes cantam, às vezes gritam, mas na maior parte do tempo apenas sussurram. É impossível ignora-las, estão sempre falando comigo.
Certa vez, perguntei ao meu pai se algum dia elas iriam embora. Ele suspirou, deixou as batatas que estava descascando de lado por um breve segundo e levou seus castanhos olhos aos meus. Seu olhar era frio e misterioso:
- Eventualmente, tudo morre, filho. - disse ele, voltando a descascar suas batatas em seguida.
Foi confortante ouvir aquilo, mesmo que não tivesse entendido muito bem o que significava. Para ser sincero, ainda tento entender.
Tais vozes não são meu único problema, há também os pesadelos. Tão reais quanto minha existência; tão constantes quanto as águas que caem de uma cachoeira e tão assustadores quanto tudo o que não conseguimos entender.
Já fazem dez segundos desde que abri meus olhos. Consigo sentir e ouvir meu coração acelerado batendo contra meu peito debaixo do cobertor. Sonhei com uma mulher, acho que era minha mãe. É engraçado, não é? Dizer "acho que era minha mãe". Mas digo isso porque nunca a conheci. Não a conheci de forma nenhuma. Não tenho fotos, nem cartas, nem desenhos, nem nenhum traço da existência dela. É quase como se ela nunca tivesse de fato existido. Já perguntei ao meu pai sobre ela milhares de vezes, mas tudo o que ele diz quando toco no assunto é:
- Vá para o seu quarto, Matt.
Levou um tempo, mas finalmente me conformei e desisti de perguntar. Talvez seja melhor não saber nada sobre ela mesmo. E a propósito, eu a matei, no sonho.
[...]
O tic-tac do relógio um pouco acima da minha cama preenche o vazio silencioso da noite junto das vozes que murmuram desesperadamente em minha cabeça.
Encarando o teto escuro do quarto enquanto minha mente revive cada segundo do pesadelo, penso em voltar a dormir. Mas o medo há muito já havia sobreposto o sono, e tudo o que me restara era rolar de um lado para o outro até que o dia finalmente amanhecesse.
- Dane-se. - pensei alto depois de um tempo.
Levantei-me da cama e comecei a caminhar desajeitadamente até a porta de saída do quarto. Tropecei em alguns brinquedos que não consegui identificar e sem querer derrubei alguns livros, mas cheguei até a porta bem rápido. Levei uma de minhas mãos à maçaneta, girei e saí.
No corredor, a única coisa que conseguia enxergar em meio a escuridão, eram os degraus da escada que levavam para o primeiro andar iluminados pelas luzes que irradiavam da cozinha. Quando as luzes do andar de baixo estavam acesas, significava que meu pai estava lá. Elas estavam sempre acesas.
Na ponta dos pés para não fazer barulho e consequentemente alertar meu pai de que estava acordado, caminhei em direção à escada cautelosamente. Passei pelo banheiro, depois pelo quarto do meu pai e então finalmente cheguei à escada.
Tudo parecia estar indo bem, até que um barulho agudo, extenso e ensurdecedor se iniciou atrás de mim.
O estrondo da porta batendo contra o caixonete foi tão alto, que fez com que eu desse um salto para trás e levasse as mãos até a boca para não gritar. Devia ter fechado a maldita porta.
No andar de baixo, o som de vidro se quebrando me fizeram perceber que não fui o único a me assustar com a batida.
- Matt?! - gritou meu pai, seu tom de voz transparecia espanto e preocupação.
Suspirei, decepcionado. E então percorri rapidamente a distância que restava para chegar à escada. Desci quatro degraus e, por fim, me sentei no quinto.
De onde estava, conseguia ver meu pai varrendo os cacos de vidro do que um dia fora um prato para uma pá e jogando-os em seguida dentro de um saco preto de lixo. Ele parecia cansado, mas isso não me surpreendeu. Ele sempre parecia assim.
- Oi, pai... - disse eu, mais baixo do que pretendia.
- O que faz acordado uma hora dessas? - perguntou ele, ríspido.
Eu nunca soube muito bem como responder àquela pergunta. Ele já a havia feito tantas vezes e eu já havia fingido respondê-la tantas vezes que, para mim, sempre soava como uma pergunta retórica. Mas nunca era, no final das contas.
- Vozes ou pesadelos? - perguntou ele finalmente, depois de eternos dez segundos de silêncio.
- Os dois...
- Quer conversar sobre isso? - perguntou, puxando uma das cadeiras de madeira da velha mesa de jantar e sentando-se de frente para mim em seguida.
Fiz que não com a cabeça.
- Tem certeza? - insistiu ele.
Permaneci em silêncio por um pouco mais de dez segundos, até que resolvi tentar conversar com ele:
- Uma vez... - comecei a formular o que iria dizer. - O senhor me disse que... as vozes... um dia... eventualmente.... morreriam. - senti que um sútil e quase imperceptível sorriso escapou de seus lábios. - O senhor se lembra?
- Sim, filho... - respondeu. - Eu me lembro...
- Ainda vai demorar muito para isso acontecer? - perguntei, lançando à ele um olhar de profundo desespero.
- Isso só depende de você, meu filho... - respondeu quase que imediatamente.
- De mim? - perguntei, aflito.
- Elas podem morrer agora mesmo.
Senti meu coração parar de bater.
- Como assim? - perguntei, surpreso. - Tá falando sério?
Um breve suspiro foi sua resposta para a pergunta. Depois, ele tateou os bolsos da camisa, depois os da calça, e então, finalmente retirou de um deles uma navalha de barbear brilhante e perceptivelmente afiada. Eu nunca soube o porquê, mas ele sempre andava com ela em seus bolsos.
Perdido em seus pensamentos, ele analisou a navalha por quase um milênio. Seus olhos brilhavam de forma indiferente enquanto dançavam pela luz que irradiava da pequena e velha lâmina de metal.
- Pai?
- Essa navalha era do seu bisavô... - começou a explicar. - Ele deu para o seu avô um pouco antes de morrer, e seu avô deu para mim um pouco antes de desaparecer numa noite como essa... - pude sentir o pesar em sua voz. - Eu não darei ela a você, porque não falharei como seu pai, filho.
Eu não entendi o que ele quis dizer, então apenas continuei a observa-lo em silêncio.
- Eu não falharei... - repetiu, mais para si do que para mim.
E então, ele se levantou da cadeira, caminhou lentamente até a escada, subiu os degraus que nos distanciavam e parou de frente para mim. Seus olhos, vazios e indecifráveis, pairavam sobre mim como se esperassem alguma coisa.
- Levante-se. - pediu ele. E eu obedeci.
Quando me dei conta, seu corpo esguio e gelado havia me envolvido e seus braços finos e largos haviam me espremido contra seu peito. A sensação foi demasiada estranha, entretanto, nunca havia me sentido tão seguro em toda a minha vida. Meu pai e eu nunca havíamos nos abraçado antes.
- Vamos... - sussurrou ele. E então, levantou-me no colo e subiu morosamente os degraus que restavam para o segundo andar. Pela primeira vez em muito tempo, as vozes gritaram.
[...]
Quando meu pai me pôs no chão, estávamos de frente para a porta do banheiro.
- Entra... - disse ele, de forma quase inaudível, entrelaçando um dos braços em meus ombros e me puxando para dentro gentilmente.
Pensei em perguntar qual era a razão de estarmos no banheiro, mas uma questão muito mais importante me veio a mente quando ouvi o ranger da porta sendo fechada e o estalo metálico da chave girando na fechadura consequentemente trancando-a. Uma intensa aflição invadiu-me no mesmo estante.
- Pai? - disse eu, lançando a ele um olhar cerrado, tentando entender o porquê da porta ter sido trancada.
Ele retirou a chave da fechadura, jogou-a no bolso da camisa e virou-se, mas não para mim. No entanto, por um ligeiro segundo, seus olhos se alinharam com os meus e eu pude sentir o frio e o vazio que havia por de trás deles. Minha mente jamais havia me assustado tanto quanto aquele olhar. As vozes berraram.
- "Hora de acabar com a obsessão do silício... - começou a cantarolar "Disillusioned" da banda "The Perfect Circle" enquanto posicionava um banquinho de madeira de frente para a banheira. Ele fechou o ralo, ligou a torneira e continuou a cantar. -...Olhe em volta, encontre um caminho no silêncio..."
Sentado no banquinho, observando a banheira encher, ele parecia ter se esquecido de que eu estava lá. Quando banheira encheu até a metade, passou uma de suas mãos na água, fazendo pequenas ondinhas, e disse:
- Tire suas roupas. - Sua voz tão calma e distraída quanto as ondas na banheira.
Hesitei por um breve momento, mas logo o fiz. Comecei tirando minha camisa... Abaixei minha calça... E por fim, fiquei apenas de cueca. Acho que já está bom, espero que esteja.
Meu pai se virou, olhou para mim e me analisou. Sua expressão amigável se tornou impaciente.
- Tudo. - ordenou ele, ríspido.
Pensei em questiona-lo, mas não queria irrita-lo ainda mais. Abaixei minha cueca bem devagar e antes que ela tocasse o chão levei imediatamente minhas duas mãos às minhas partes. Senti tanta vergonha. Só quero que tudo acabe logo.
- Entra na banheira.
Meus olhos se desviaram involuntariamente para o chão e eu caminhei lenta e desajeitadamente em direção à banheira. Mal conseguia sentir minhas pernas de tanto medo e vergonha.
Coloquei um pé dentro da banheira e em seguida o outro. A água estava fria, muito fria. Sentei-me lentamente e a água que antes cobria minhas canelas agora me cobria até o queixo. Meu corpo estremeceu. As vozes lamentaram.
- Feche os olhos e relaxe. - pediu meu pai, voltando ao seu tom amigável.
Obedeci.
- Respira fundo pelo nariz e solta bem devagar pela boca. - pediu.
E mais uma vez obedeci.
- Um... dois... três... - começou a contar bem devagar. - Solta. Respira.
Soltei e respirei.
- Um... dois... três... - repetiu. - Solta. Respira.
Repeti o processo.
- Um... dois... três! - gritou desta vez, forçando minha cabeça para de baixo da água com uma mão e segurando forte o meu pulso esquerdo com a outra.
Tentei gritar e levantar, mas isso só serviu para que eu engolisse água e ficasse ainda mais fraco. Meu pai tirou rapidamente a mão da minha cabeça e me afundou novamente pondo seu pé em minha garganta. E então veio a dor. Uma dor aguda e vagante no pulso, como se uma lâmina afiada desfilasse da palma da mão até o fim do ante-braço. Ardeu. Ardeu muito. E mais uma vez, as vozes berraram... E eu também.
A extraordinária e matadora dor havia se tornado um fator motivacional e mais uma vez tentei me levantar, mas meu pai era muito mais forte que eu. Meu corpo se debatia e lutava involuntariamente para escapar mas nada parecia funcionar. O desespero era indescritível. E em uma tentativa idiota e frustrada de gritar e implorar que ele parasse, senti a morte transbordar em meus pulmões. Neste momento, ele tirou o pé de minha garganta e finalmente consegui chegar à superfície, mas antes que pudesse vomitar a água dos meus pulmões, ele me afundou novamente com o outro pé e agarrou forte o meu pulso direito. A lâmina mais uma vez desfilou da palma da mão ao fim do ante-braço calibrando a dor entre os pulsos. Gradativamente senti minha força se esvair e meu corpo parar de lutar. Meus braços caíram sem vida para dentro da banheira e pouco a pouco a água cristalina foi sendo tomada pelo o intenso vermelho que fluía de minhas veias à beira da morte. Meu pai tirou o pé da minha garganta, ajoelhou-se na banheira e entrelaçou suas gigantescas mãos em meu pescoço. Seu rosto sem expressão, seus olhos vazios e a intensa luz atrás de sua cabeça foram tudo o que consegui enxergar através da distorção avermelhada da água.
Meus pulmões finalmente sucumbiram à água... Meus olhos gradativamente perderam seu brilho... Uma exorbitante escuridão tomou conta de tudo o que me cercava... Meu corpo parecia levitar sobre um vazio... E pela primeira vez desde que me entendia por gente minha mente parecia desabitada. Tudo estava totalmente silencioso.
- Shh... Você está livre, garoto. - Ouvi uma voz de muito longe dizer.
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E ai, pessoas legais! Aqui é o Matheus, criador de “Distopia” trazendo novamente para vocês “Monstros Em Meus Ombros”. Distopia fez minha escrita melhorar consideravelmente e paralelo a ela tenho revisado “Monstros Em Meus Ombros” e vos trago a versão final do primeiro capítulo. Dependendo de como for, desta vez, todos os capítulos serão publicados. Revisadinhos e bonitinhos procês! Espero que gostem <3
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Boa sorte no próximo capítulo, está muito boa...
ResponderExcluirGente, o primeiro capítulo não tinha sido postado? Como podem retornar ao início?
ResponderExcluirele ta revisando e reescrevendo a história
ExcluirGostei *-*
ResponderExcluirCarai viado <3
ResponderExcluirQuando vi achei que era mentira kkkk mds. Tá muito foda cara, melhorou o que já era ótimo
ResponderExcluirOKADKOAOKDAKODOKADOKok Valeu, cara!!
ExcluirMonstros em meus ombros é uma das melhores creepypastas que já li, nem faz ideia da minha felicidade ao saber que vai ter continuação. Obrigado pela ótima história.
ResponderExcluirNão faz ideia da minha felicidade lendo este comentário! Muito obrigado, de verdade <3
ExcluirCarai viado, morrendo de sono, leio esse fucking título e meu sono morreu, sério, eu estou muito animado para continuar. Vai ser loko
ResponderExcluirEu ri OKAODKAOKDOKA
ExcluirVai ser loko mesmo, cara! Fique de olho!
Tô me tremendo td nesse caralho, tua escrita me conquista de todas as formas e essa, mais que Distopia, me atingiu de um jeito tão pessoal q eu não consigo nem descrever. Só vai, mano, tá lindo <3
ResponderExcluir"Monstros em Meus Ombros", seria a minha série de Creepypastas mais querida de todos os tempos? Ela estar sendo reescrita é literalmente uma das melhores notícias que tenho em meses, quase como um sonho!!! Está ficando incrível, mais do que já era! Ansiosa demais para os próximos capítulos.
ResponderExcluirCaramba, isso foi MUITO bom!Eu consegui sentir tudo, até mesmo, a frase de ar e o desespero da criança. A história é ótima, já vi q no site tem a parte dois, entãoooo, estou indo ler.
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