Não sei porque estou escrevendo isso... encontrei essa
agenda na minha mochila em meio ao meu uniforme e outras coisas do meu
trabalho. Lembro-me de meu chefe de ter me dado ela no último dia de trabalho,
antes da empresa suspender suas atividades para as férias coletivas visando as
festividades de fim de ano. Agora, neste instante enquanto escrevo essas
linhas, me recordo como se fosse ontem... Era dia 23 de dezembro, uma
sexta-feira quente, quase infernal. No final do expediente enquanto eu fechava
o caixa e separava alguns papéis ajeitando os últimos detalhes para o
fechamento da loja, o patrão apareceu como de costume para recolher a féria do
dia. Ao abrir a mala para guardar o dinheiro, ele tirou essa agenda de dentro e
a ofereceu a mim dizendo: - Você quer? Já tenho um monte delas, todas presentes
de fornecedores.
Para ser honesto, não tenho o hábito de usar agenda. Minha
vida costumava ser um exemplo perfeito para as palavras "monotonia" e
"rotina", mas para não correr o risco de parecer grosseiro, aceitei
dizendo: - Obrigado. Finalizei meus deveres, peguei minha mochila no vestiário,
guardei a agenda dentro junto com o uniforme que acabara de trocar, e parti em
direção a saída da loja para o que seriam as primeiras horas das minhas férias.
Já do lado de fora, talvez porque eu fosse o último funcionário a sair, o
patrão me ofereceu uma carona. Recusei dizendo que morava perto, e além do mais
ia passar no mercado do outro lado da rua para fazer algumas compras de última
hora. Mentira... na verdade odeio pegar caronas. Me sinto pressionado ante
situações que obriguem a socialização, o que geralmente leva a longos períodos
de "silêncio constrangedor".
Pode parecer besteira, mas colocar minhas ideias no papel
está ajudando a diminuir minha ansiedade e a me conhecer melhor. Acabei de
notar por exemplo um dos motivos da rotina "devorar" as horas do meu
dia; sempre evitei situações que pudessem me tirar da minha zona de
conforto... Pena só notar isso agora...
creio ser um dos benefícios do "amadurecimento forçado"... Bom...
isso não vem ao caso. Gostei da ideia e vou continuar escrevendo; embora saiba
que a probabilidade destas linhas serem lidas por mais alguém são mínimas...
Vou continuar escrevendo... porque se algum dia esse inferno acabar, aquele que
tiver a oportunidade de ler esse "diário", irá tomar conhecimento de
minhas descobertas, assim como do sentimento de terror que tomou conta de mim.
Continuando... cheguei em casa naquele dia por volta das
18:00 hs, e apesar de ser antevéspera de Natal minha rotina não mudara; banho,
jantar e computador até a hora de dormir. As tradições da data em questão já
haviam sido abandonadas há muito pela minha família, era cada um na sua,
portanto, o Natal era apenas mais um feriado. Mas naquela noite em especial
recebi a visita do meu primo, ela estava a caminho de uma balada quando
resolveu parar e me convidar a acompanhá-lo. Meu primo e eu tínhamos quase a
mesma idade, ele era apenas alguns meses mais novo que eu, mas ao contrário de
mim, havia saído da puberdade demasiadamente cedo. Entrou no meu quarto
dizendo: - Vamos, levanta daí, põe uma roupa "da hora" e vamos zuar.
Você está de férias mesmo, não tem hora para acordar amanhã.
Na minha cabeça já havia me decidido a não ir, mas fitava o
chão em silêncio buscando as melhores palavras para dize-lo sem parecer muito
grosseiro. Findei por dizer que o dia no trabalho havia sido muito puxado, e eu
estava muito cansando. Depois de mais algumas tentativas frustradas de me
convencer do contrário, ele se despediu, e foi em direção a saída. Fui
acompanhá-lo até o portão. Enquanto esperava ele entrar no carro e dar a
partida para ir embora pude ver meus pais e três das minhas tias no final da
rua, do lado oposto para aonde meu primo se dirigia. Digo três tias pois no
mesmo terreno onde fica a casa onde moro, existe ainda uma outra casa, onde
vivem quatro tias minhas, irmãs de minha mãe, todas "solteironas",
portanto, elas vivem na casa da frente, eu e meus pais vivemos na casa dos
fundos.
Como se aproximavam rapidamente, decidi esperá-los ao
portão, até porque estava curioso. Quando cheguei em casa do trabalho minha tia
Cláudia, a única pessoa em casa, havia me dito que todos haviam saído para o
velório de um rapaz, vizinho nosso, que havia morrido naquela tarde, mas não
soube, ou não quis me dar mais detalhes. Quando todos entraram, fechei o portão
e os acompanhei pela porta principal, me despedi de minhas tias que ficaram na
casa da frente e segui para a casa dos fundos com meus pais. Uma vez trancada a
porta de nossa casa perguntei descaradamente, sem disfarçar meu tom de curiosidade
acerca do assunto: - Quem morreu? O que aconteceu?
Meu pai fingiu não ouvir a pergunta, mas minha mãe
respondeu: - Foi o William, filho da Cleide. Você lembra que ele gostava de
fazer trilha com aquela moto barulhenta dele... Pois é, hoje no comecinho da
manhã ele saiu com alguns amigos para fazer a bendita trilha e sofreu um
acidente. Ainda curioso, perguntei sobre detalhes do acidente e ela continuou:
- Dizem os amigos que estavam com ele que logo na primeira parte da trilha ele
acabou ficando para trás. Eles seguiram em frente e pararam próximo à uma
clareira para esperar por ele; como ele estava demorando, um deles resolveu
voltar pela trilha para ver se o amigo precisava de ajuda, se a moto havia
atolado ou alguma coisa parecida. Ele disse ter encontrado o William esticado
no chão, sem o capacete, com ferimentos profundos pelo corpo. Como ela
interrompeu a narrativa, questionei:
- E aí?
- E aí, que eu não sei de mais nada.
- Como assim!! Retruquei.
- Não ia ficar questionando os pais dele acerca do assunto.
- E como ficou o corpo?
- Foi caixão fechado. Parece que o negócio foi feio.
- Quem foi que o encontrou? Perguntei
- Foi o Matheus, filho da Enid. Conhece?
Achava engraçado esse jeito quase medieval de minha mãe se
referir a fulano ou beltrano citando o nome de seus pais. Respondi
afirmativamente que o conhecia. Como o assunto havia se encerrado, e ambos
pareciam cansados, voltei para o meu computador, ainda curioso. O Matheus era
um ex-colega de trabalho, pela manhã inventaria uma desculpa qualquer para
falar com ele.
Engraçado... Como a morte me fascinava... Antes disso tudo
acontecer, passava horas lendo livros e contos de terror, vendo séries e
filmes, buscando sentir "aquele arrepio", e quando finalmente
conseguia encontrar algo que me assustava ou me causava medo, passado o
primeiro impacto, minha reação era sempre cair na risada, pois no fundo eu
sabia que aquilo não podia me ferir... Saudades daquele tempo que e o terror e
o medo ficavam limitados a minha imaginação fértil e a tela do computador...
Daria qualquer coisa para as coisa voltarem ao normal.
Ainda era noite do dia 23 de dezembro, olhei no relógio do
computador que marcava 23:00 horas, já cansado e entediado de ficar fuçando na
internet, resolvi ir dormir. Desliguei o computador, desativei o alarme do
celular que estava programado para despertar normalmente no sábado, e antes de
desligar o celular dei uma última olhada no Whtat's App. As únicas mensagens
novas eram do grupo do trabalho. Alguns colegas que ainda mantinham ligações
com o Mateus souberam do falecimento do William e estavam comentando sobre.
Infelizmente o Mateus não estava no grupo para esclarecer maiores dúvidas. Como
não tinha nada a acrescentar na conversa, permaneci calado, mas uma mensagem em
meio a tantas me chamou a atenção; uma das participantes do grupo dizia que
pelo menos mais quatro corpos foram encontrados em situação semelhante naquela
mesma tarde. Desliguei o celular e fui me deitar pensando no assunto.
Será que os ferimentos do William não foram causados pelo
acidente?? Será que alguém matou ele?? E se alguém o matou... será que esse
mesmo alguém deixou mais quatro corpos para trás?? A contagem de corpos me
parecia muito alta para um único assassino, mas se o que a Jéssica disse sobre
as condições dos corpos serem as mesmas, a probabilidade de serem casos
diferentes, todos seguindo o mesmo "modus operandi" eram mínimas.
Pensei se poderia ser um assassino em série, mas nunca havia escutado ou lido
sobre um assassino em série que mata cinco no mesmo dia, e em plena luz do dia.
Foi quando parei para pensar que não sabia de detalhes sobre nenhum dos casos,
que era besteira continuar pensando nisso. Tinha sim que falar diretamente com
o Mateus se quisesse satisfazer minha mórbida curiosidade. Limpei minha mente
de pensamentos o máximo que pude e acabei pegando no sono.
Ficou claro que além de fã de terror eu gostava também de
seriados e romances policial.
Na manhã seguinte, despertei no horário costumeiro; maldito
relógio biológico que não me deixa dormir nem cinco minutinhos a mais. Depois
de ficar aproximadamente 20 minutos virando na cama, decidi que era melhor me
levantar. Meus pais ainda dormiam, portanto, se eu quisesse tomar café da manhã
teria que me virar. Olhei na dispensa... sem café, na geladeira... um golinho
de leite. Merda... pensei comigo mesmo... vou ter de ir na padaria. Não sou
tipo que levanta de manhã, põe uma roupa e está pronto para sair; nesse
quesito, meu pai costumava me comparar com minha mãe por causa do tempo que eu
levava para me arrumar. Vendo que não tinha como fugir da tarefa, segui a mesma
rotina que faria para ir ao trabalho, e rumei para a padaria.
Quando passei pela casa das minhas tias tive a ideia de ver
se elas já estavam de pé, assim evitaria a caminhada até a padaria. Parei em
frente a porta que ainda estava fechada, olhei pela janela para só para ver
todas as luzes apagadas. Sem esperanças, segui o caminho até a padaria.
Ao chegar no estabelecimento que funcionava também como um
"mercadinho" peguei os itens que queria na prateleira e fiz o pedido
de frios e pães no balcão. Enquanto aguardava o balconista separar meu pedido,
notei que o mesmo estava mais preocupado em assistir televisão do que cumprir
sua tarefa. Não o culpava, afinal, se eu tivesse de madrugar em pleno sábado,
véspera de natal, para trabalhar, eu também estaria puto da vida. Mas as coisas
passaram dos limites quando ele abandonou completamente meu pedido, aumentou o
som da TV, e chamou outra funcionária para ver o que passava no que parecia ser
um dos muitos noticiários que eram transmitidos pela manhã. Estava prestes a
chamar-lhes a atenção quando as palavras da jornalista na TV prenderam a minha:
- É uma verdadeira carnificina!!! Temos notícias de corpos
mutilados vindos de todos os cantos do Brasil. A Secretária Nacional de
Segurança Pública está ativando as Forças Armadas em todo o país, isso inclui
os reservistas, para auxiliar no que estão chamando de rebelião civil. Segunda
os últimos boletins, as mortes são ações coordenadas de facções que pretendem
tomar o controle do país.
O que eu acabara de ouvir me fez estremecer, e não foi o
fato de estarem convocando os reservistas para o serviço militar; eu sabia que
devido a minha idade e pelo fato de eu ser filho único as chances de eu ser
convocado eram mínimas, mas sim por que me fizera lembrar do que havia sido comentado
na noite passada no grupo de Watts App do trabalho. Levei a mão no bolso
buscando o celular, mas notei que o havia esquecido em casa. Chamei a atenção
dos balconistas para o meu pedido, mas eles ainda estavam entretidos na TV que
agora mostrava um mapa das rebeliões pelo país. Tive de gritar mais duas vezes
para conseguir alguma atenção. Finalmente, virou-se desculpando-se e continuou
a separar meu pedido. Acabou tocando no assunto:
- Você viu que merda?? Em plena na véspera de Natal.
- Ouvi um pouco. Mas o que está acontecendo?? Perguntei
tentando conseguir alguma informação.
- Uma série de assassinatos pelo país. Estão dizendo que
começou ontem e se intensificou durante a
noite.
- Ouvi falar de rebeliões??
- É o que estão dizendo. Pelo fato dos ataques estarem
focados em determinadas regiões. Mas eu não acredito neles não.
- Não acredita?? Porque?? Perguntei
- Primeiro, porque estão acontecendo simultaneamente pelo
país inteiro. E segundo, porque os ataques estão ocorrendo também fora do país.
- É?? E como você sabe disso?? Não ouvi a jornalista
comentar nada sobre ataques fora do país.
- A TV pode não pode não ter dito, mas a patroa tem um filho
morando no Canadá e ainda ontem ela comentou que o país estava em estado de
alerta por causa de uma série de assassinatos brutais.
- Ouviu falar de algum ataque pelas redondezas?? Sondei,
tentando confirmar a informação do grupo do trabalho.
- Ouvi alguns boatos sim, mas nada confirmado.
Como meu pedido já estava pronto não quis prolongar a
conversa, agradeci o rapaz, peguei minhas coisas em cima do balcão e fui para o
caixa pagar. Enquanto efetuava o pagamento um rapaz se aproximou da menina que
me atendia e disse para que ela fechasse o caixa depois de terminar com último
cliente da fila, disse ainda que ele iria baixar as portas e esperar na porta
social para liberar a passagem para os clientes; a menina questionou o motivo,
no que ele respondeu: - Só estou obedecendo as ordens do patrão, mas parece que
ele está com medo dos ataques que a televisão anunciou. Notei que a menina
ficou assustada e comentei: - Bom... parece que você ganhou um dia de folga.
Não obtive resposta. Meu cartão "enroscou" algumas vezes,
aparentemente eles estavam com problemas nas linhas ou na internet, mas foi
tempo suficiente para os funcionários baixarem e trancarem todas as 5 portas de
aço do estabelecimento. Eles estavam realmente com muita pressa. Ao passar pela
portinhola em uma das portas de aço, o funcionário me aconselhou: - Cuidado
moço, só Deus sabe o que está acontecendo por aí afora. Não disse nada, apenas
acenei positivamente com a cabeça e tomei o caminho de casa.
No caminho para casa pensava sobre as novas informações. Na
minha cabeça, as rebeliões lideradas pelas facções faziam sentido, até porque
não é novidade nenhuma o poder que essas organizações adquiriram com o passar
dos anos, tudo isso graças a negligência de nossos governantes acomodados. O
que não fazia sentido eram os alvos dos ataques; era de se esperar que eles
atacassem militares, políticos e não civis. Pensava na possibilidade de William
ter sido vítima deles, o que definitivamente não fazia sentido algum. E
finalmente, se o que o balconista dissera sobre os ataques no Canadá fossem verdade
então a teoria das "facções" iria por água abaixo.
Elaborava novas teorias em minha mente, quando gritos me
chamaram a atenção. Eles vinham de uma casa um pouco mais a frente, pareciam
gritos de mulher, porém, bem mais graves do que se esperaria de uma voz
feminina. Fui me aproximando, seguindo meu caminho natural para casa quando
percebi os gritos se intensificando, por precaução, cruzei para o outro lado da
rua. Quando estava quase em frente à casa de onde partiam os gritos os mesmos
pararam, e pude ver o estreito portão automático se abrindo. Com muita
dificuldade, quase aos trancos devido ao pouco espaço, o motorista conseguiu
tirar o carro de dentro da garagem. Quando finalmente a porta do motorista se
abriu, vi sair de dentro um adolescente, de no máximo 16 anos, parecia
assustado, branco como a neve. Largou a porta do carro aberta com a chave na
ignição e correu para dentro da casa.
Nesse momento eu parei em frente à casa do outro lado da rua
para observar a cena que se desenrolava, admito que mais por curiosidade do que
por desejo de ajudar. Vi então o adolescente sair carregando com muita
dificuldade uma mulher na faixa dos 45 anos de idade que julguei ser sua mãe. A
mulher tinha ferimentos por todo o corpo, alguns deles envoltos em trapos e panos
de prato na tentativa de estancar o sangramento. Ainda com muita dificuldade o
rapaz conseguiu abrir a porta da frente e acomodou a senhora no banco do
carona, se esforçava tentando acomodá-la em uma posição mais confortável,
quando finalmente estava satisfeito correu para a portão e gritou algo que não
pude compreender muito bem. Segundos depois partiu em direção ao carro
novamente, ficou segurando a porta de trás aberta como se esperasse alguém
entrar no veículo.
E justamente quando achei que não podia ficar mais estranho,
vi sair de dentro da casa um senhor de aproximadamente 50 anos de idade,
carregando uma mulher que aparentava ter no máximo 25 anos; deduzi que fossem o
pai e possivelmente a irmã do garoto. Diferente da primeira senhora a sair da
casa que mal se aguentava em pé sozinha, essa tinha as mãos e os pés amarrados
com o que me pareceram ser dois lençóis, e ainda o que me parecia ser uma
fronha de travesseiro servindo de mordaça. Percebi neste instante que era ela a
autora dos gritos guturais que ouvira a pouco, e compreendi o porquê de eles
cessarem tão abruptamente. Apesar de completamente imobilizada a mulher lutava
com todas suas forças para se libertar, tanto que o senhor usava o máximo de
suas forças para conseguir arrastá-la até o carro, e mesmo assim tinha que
desviar de eventuais movimentos que a mulher fazia com a cabeça que mais se
assemelhavam a tentativas de golpe tentando acertar o homem.
Quando chegaram à porta do carro o homem empurrou o menino
que caiu de bunda no asfalto e lá ficou, paralisado. O homem tentou colocar a
mulher no carro, mas a mesma se debatia com todas as forças que tinha e se
recusava a entrar no veículo, em meio a essa luta o homem empurrou a cabeça da
mulher contra a chapa do carro com muita força; pareceu não ter surtido efeito
algum, pelo contrário, só serviu para a irritar ainda mais. Vendo que não
conseguiria nada com isso, o homem tornou a agarrá-la por trás imobilizando
seus braços, apertou-os com tanta força que posso jurar ter ouvido o estalar de
um osso seguido de um grito abafado pela mordaça, e então o homem se jogou de
costas no banco de trás do carro levando consigo a mulher que ainda se debatia.
Estava em transe, não sabia o que fazer, não sabia se corria
ou se tentava ajudar de alguma forma, não conseguia pensar com clareza, no
final, não fiz nada, fiquei apenas parado observando, indiferente...
Ouvi pela primeira vez a voz do homem chamando pelo garoto
que ainda estava sentado no asfalto. O grito pareceu acorda-lo de seu transe. O
mesmo se levantou e foi até a porta aberta do banco de trás. Pude ouvir o
diálogo que se seguiu aos gritos:
- Fecha a porta do carro Fábio!!! Você vai ter de dirigir
até o hospital.
- Mas pai, eu mal aprendi a dirigir
- Não tem jeito, você não vai conseguir segurar sua irmã no
estado que ela está agora. Fecha a porta e entra no carro. Agora!!!
- Mas pai...
- Tua mãe vai morrer moleque!!!! Vai logo!!!
- Eu vou chamar o senhor Juca!!!
- Não adianta. Ele está viajando. A maioria de nossos
vizinhos estão viajando, e os que ficarão devem estar muito assustados para
meter a cara para fora, caso contrário os covardes já estariam aqui para nos
ajudar.
Esse último comentário feriu mortalmente meu orgulho.
Justamente eu era um dos que estavam apenas observando o ocorrido, incapaz de
tomar alguma atitude. Pensava no que eu poderia fazer, mas nem carta de
motorista eu tenho, nunca vi necessidade nem utilidade, uma vez que ninguém em
casa tinha um carro ou tinha condições par manter um. Pensei em me oferecer
para ajudar a segurar a mulher, afinal, não podia ser tão difícil com ela
amarrada da forma que estava, mas nesse instante eu me lembrei do estado em que
a senhora sentada no banco do carona se encontrava... se aquela mulher foi
capaz de deixar a própria mãe à beira da morte, o que ela não faria comigo... O
medo mais uma vez me paralisou. Então notei o portão atrás de mim se abrindo...
Vi passar por mim um senhor já de idade, na faixa dos
setenta e poucos creio eu. Ele foi em direção ao carro, abraçou o menino
enquanto conversava com o pai. Vi ele recuar por um instante ao colocar os
olhos na filha do casal, mas se manteve firme enquanto mantinha o diálogo.
Outro portão se abriu, de dentro saiu uma mulher vestindo baby-doll que partiu
em direção ao ocorrido. Nos limites do seu portão notei dois meninos que
aparentavam ter entre 10 e 15 anos respectivamente, assustados, tanto quanto eu
ou mais. Olhei para as casas vizinhas procurando novos sinais de intervenção,
mas todas as janelas e portas estavam lacradas. A maioria deveria ter ido
viajar como disse o homem ou estavam assustados demais para sequer colocar a
cara na janela. Se fosse esse o caso, não os julgava.
A reunião não durou muito. Pouco tempo depois a mulher se
afastava da cena amparando o menino que agora se desmanchava em lágrimas; seu
choro era tão dolorido que fez meus olhos umedecerem. Eles entraram na casa da
mulher, seguidos pelos dois meninos que mencionei antes. O senhor correu em
minha direção, passou por mim como se eu não existisse e tornou a entrar em casa.
Não ficou nem um minuto lá. Saiu de posse de uma carteira que deveria conter
seus documentos, fechou a porta de trás do carro e sentou no lugar do
motorista; ajeitou a senhora no banco do carona, que agora parecia ter perdido
completamente a consciência, ajeitou o cinto de segurança em torno dela, baixou
o portão da casa que ainda estava aberto e saiu com o carro; não cantando pneu
como era de se esperar, mas com uma calma e uma habilidade invejável.
Passado o ocorrido o silêncio tomou conta do lugar. Aos
poucos, portas e janelas ao longo da rua começaram a se abrir. "Ora-ora,
ao menos não sou o único covarde por aqui" - pensei. Esse pensamento não
fazia com que eu me sentisse melhor, muito menos esquecer que não fui capaz de
fazer nada ante o que acabara de acontecer. Aos poucos fui saindo do transe que
o medo me colocara, parei por alguns instantes olhando para uma mancha de
sangue do outro lado da rua, e mecanicamente retomei o caminho de casa. Pude ainda
escutar o grito de uma senhora do alto de uma janela: - Psiu, você menino!!!
Você viu o que aconteceu??? Apenas ignorei, continuei meu caminho de cabeça
baixa. A lembrança do choro do rapaz encheu meu peito de angústia e meus olhos
voltaram a lacrimejar.
Caminhei lentamente pelo resto do caminho tentando
"digerir" o ocorrido. Enquanto me aproximava do portão saquei a chave
do meu bolso me preparando para abri-lo, quando virei a chave notei que o mesmo
já estava aberto. Estranhei o fato, lembrava-me claramente de tê-lo trancado, e
enquanto o trancava novamente atrás de mim pude ouvir claramente um choro de
mulher vindo da casa de minhas tias. Meu coração acelerou, abri vagarosamente a
porta tentando sondar o que se passava. No sofá que fica na área de fora, perto
do corredor que ligava as duas casas, pude ver duas de minhas tias fazendo
companhia para outra tia minha que não morava com a gente, ela era a mãe do meu
primo que me visitou na noite anterior, pude constatar ser ela a dona dos
lamentos que ouvi ainda no portão. Mal me avistaram e uma das minhas tias já
disparou:
- Aonde você estava criatura??
- Fui à padaria comprar algumas coisas.
- E porque não avisou ninguém??
Ignorei esta última pergunta. Minhas atenções estavam
voltadas para a mãe do meu primo no meio das duas que chorava compulsivamente.
Correndo o risco de parecer óbvio demais, perguntei: - Aconteceu alguma coisa??
Aos soluços, a mãe do meu primo me perguntou:
- O Davi... ele saiu de casa ontem... disse que ia passar
aqui e te pegar... para vocês saírem juntos...
Antecipando a pergunta, respondi: - Sim, de fato ele esteve
aqui, me fez o convite para acompanhá-lo, mas eu estava cansado do trabalho e
acabei recusando. Ela continuou:
- Ele disse para aonde ele ia??
- Não, não disse exatamente para aonde ia. Disse apenas que
ia "zuar" por aí.
Uma de minhas tias retrucou: - Porque eu não vi ele então??
- Porque vocês estavam no velório do William, aliás, ele
saiu momentos antes de vocês chegarem.
Mas a tia Cláudia o viu, inclusive o
recebeu ao portão. Onde ela está?? Perguntei.
- Ela está dormindo. Aquela não acorda nem com bomba.
Não precisava ser um gênio para compreender a situação. Meu
primo tinha passado da conta noite passada e estava de porre em algum motel por
aí, sabe-se Deus com quantas garotas. Esbocei um leve sorriso enquanto o
imaginava narrando mais uma de suas aventuras sexuais. Mas então me lembrei do
noticiário que relatava os ataques, e uma leve onda de preocupação tomou conta
de mim, meu semblante se fechou.
Uma terceira tia adentrou no recinto com o telefone na mão
resmungando: - Já tentei os dois números umas dez vezes e só da caixa postal.
Como nenhuma delas comentava nada sobre os ataques, pressupus que elas não
estavam a par da situação. Pensei bem se valia a pena comentar sobre isso
naquele momento, e pelo estado que a mãe do meu primo se encontrava achei
melhor guardar essa informação. Depois da morte do meu tio, dois anos atrás,
esse meu primo, filho único assim como eu, havia se tornado a razão de viver
dessa minha tia; alimentar sua angústia com notícias que nem eu mesmo sabia se
eram verdadeiras não me parecia correto, acabei por me manter em silêncio. É
claro que mais cedo ou mais tarde ela acabaria descobrindo, mas tinha
esperanças que meu primo desse as caras em breve como ele sempre fazia. Não que
fosse um hábito para ele passar noites fora de casa, mas quando o fazia sempre
deixava avisado, só que dessa vez não foi assim, daí a preocupação de sua mãe.
Tentando ajudar de alguma forma, disse:
- Vou tentar contato com alguns amigos em comum. Quem sabe
algum deles não está com ele.
Uma de minhas tias retrucou: - Se você tivesse ido com ele
ao invés de ficar em casa naquele computador você saberia onde ele está.
Passaram ao menos meia dúzia de repostas mal-educadas pela
minha cabeça, lancei um olhar fulminante para essa minha tia, pronto para descarregar
todo a ira que aquele comentário desnecessário, para dizer o mínimo, despertou
em mim, mas no caminho vi o rosto abatido da mãe do meu primo. Em respeito a ela,
me calei, me virei e desci para a casa dos fundos sem dizer mais nada.
Entrei em casa e meus pais ainda dormiam, preparei meu café
com as coisas que comprei na padaria e guardei o restante em seus devidos
lugares. Quando terminei de comer fui para o meu quarto, liguei o computador
antes de qualquer coisa, enquanto esperava carregar o sistema as palavras de
minha tia ecoavam na minha cabeça, um sentimento de frustração tomou conta de
mim, no fundo eu me arrependia de não ter dito o queria e agora isso estava me
corroendo por dentro. Mordi minha mão enquanto pensava nas coisas que gostaria
de ter dito para ela; essa era a maneira que descarregava minha frustração, era
tão comum que já havia uma marca permanente nas costas da minha mão. Não
suportando mais a dor da mordida, soquei a mesa do computador soltando um grito
abafado... fechei os olhos e respirei fundo... Era como se tivesse tirado um nó
da minha garganta.... Pensei comigo mesmo "dia desses vou acabar com um câncer
por causa disso"...
O sistema já estava carregado, mas eu não sabia por onde
começar. Decidi que o facebook seria um bom lugar para dar início a minha busca
por informações. Fazia tempo que eu não acessava qualquer rede social, como eu
disse antes, eu não era muito sociável, e isso incluía também minha vida
virtual. Logei na minha conta e procurei pelo perfil do meu primo; em sua
última atualização no início da noite anterior, ele postou uma foto no carro
com mais dois amigos com a seguinte legenda "indo para a zueira com os
amigos". Infelizmente eu não conhecia nenhum dos rapazes. Li os
comentários buscando mais informações e encontrei justamente o que procurava; o
comentário de uma garota dizia "também quero!!! Aonde vocês estão
indo??" E meu primo respondeu "naquela chácara perto da gruta, tenho
certeza que você se lembra da última vez que estivemos lá, eu não esqueci
nenhum detalhe rs!" E pôr fim a menina respondeu com "carinhas de
envergonhada". Esbocei um leve sorriso, pois isso ia de encontro a minha
teoria, o que tirou um pouco da preocupação acerca dos ataques, tinha certeza
que ele estava bem e apareceria a qualquer momento. Pensando em partilhar essas
informações com as minhas tias liguei a impressora e imprimi a foto em questão
e os comentários; acessei também o perfil da menina que comentou o post e
imprimir uma de suas fotos para ver se alguma de minhas tias a conhecia, uma
vez que eu também nunca havia visto a garota.
Terminada as impressões, levei as fotos para as minhas tias
e as entreguei nas mãos da mãe do meu primo que tomava um copo de chá. Ainda
tremendo um pouco, ela pousou o copo em cima da mesa e pegou as fotos de minha
mão. Eu olhava para sua face enquanto ela via as fotos e lia os comentários,
notei que assim como eu, esboçou um leve sorriso ao ler a resposta do Davi para
a garota no post. Fiquei feliz, ao menos isso serviu para aliviar um pouco de
sua angústia. Ela disse conhecer um dos rapazes da foto, e disse também
conhecer a garota do comentário, disse ainda que tinha amizade com a mãe do
rapaz em questão e mais tarde entraria em contato com ela. Perguntei se ela
sabia do lugar ao qual meu primo se referiu, e ela disse que conhecia sim, era
uma chácara particular que ele e os amigos alugavam de vez em quando para dar
festas, lembrou inclusive de ter o telefone do local em algum lugar, disse que
procuraria e tentaria ligar para falar com ele. Me agradeceu pelas informações,
eu apenas disse: - Não por isso. Mas a verdade é que por dentro eu estava
radiante, me sentia um detetive desses de séries de TV.
Sem mais nada para fazer por ali, e com a sensação de dever
cumprido, desci para minha casa e voltei para o computador. Só que desta vez
foquei em pesquisar a respeito dos ataques que à TV estava noticiando. Dei uma
olhada em alguns sites de notícias mais famosos e todos diziam a mesma coisa:
"rebeliões por todo o país deixam mortos e feridos", mas não
acrescentavam muito ao pouco conteúdo que TV noticiou; sem fotos, sem
entrevistas, sem especialistas comentando sobre o assunto, coisas típicas que
se esperam ver na TV quando uma calamidade acontece. Relembrando a informação
que o balconista me passou sobre ataques no Canadá, acessei alguns sites
gringos, em especial os do país em questão; e de fato, todos noticiavam mortos
e feridos sobre circunstâncias brutais, unicamente diferenciando as causas.
Assim como no Brasil, o mapa de vítimas no Canadá era bem disperso, com focos
em todo o país; nas regiões metropolitanas a polícia dizia estar organizando
uma força tarefa para caçar uma seita ritualística que seria responsável pelos
assassinatos, já no interior e nas áreas menos povoadas os jornais atribuam as
mortes a ursos da região. O mesmo acontecia ao redor do mundo em países como
EUA, Inglaterra, Espanha, Colômbia, Venezuela, Argentina, Chile e tantos outros
que pude lembrar e tinha o mínimo de conhecimento da língua para compreender um
pouco o que estava sendo transmitindo.
Meu lado curioso aflorou, e como os meios de comunicação
tradicionais não estavam comentando muito sobre o assunto, decidi recorrer a
blogs e fóruns focados no bizarro e no sobrenatural que estava acostumado a ler
nos momentos de ócio. Acessei todos os sites que conhecia, mas nenhum deles
tinha uma atualização, uma nota sequer sobre o assunto. Até pensei em acessar a
deepweb, mas desisti depois de ver alguns tutoriais, achei muito trabalhoso.
Lembrei então do meu celular e do grupo do trabalho; será que eles tinham mais
informações?? Liguei o celular e abri o aplicativo. Havia duas conversas não
lidas, uma do meu primo que eu abri imediatamente acreditando que fossem
notícias a respeito do seu "sumiço"; ao abrir a conversa, vi de
imediato uma self dele abraçado com duas garotas, vestindo apenas lingires e
com a seguinte legenda: "Olha o que você perdeu mané!!!" Dei uma
risadinha e pensei comigo mesmo, "mas que belo filho de uma puta". O
horário de envio da foto no aplicativo marcava 23:55. Isso me tranquilizou
ainda mais com relação ao seu "sumiço".
A outra conversa era do grupo do trabalho, devia ter quase
cem mensagens não lidas, a grande maioria enviadas durante a madrugada, todas
elas relatando supostos ataques. As primeiras mensagens falavam das notícias
que a TV transmitia acerca das rebeliões, mas algumas mensagens abaixo
começaram a aparecer "detalhes fantasiosos". Participantes falavam
que acordaram no meio da noite escutando conversas ininteligíveis, alguns
alegavam vir das ruas, outros que ouviam nos apartamentos vizinhos, todos
diziam que parecia uma língua estrangeira. Outros alegavam ter visto grupos de
arruaceiros correndo pela rua, passavam correndo como loucos sem direção
alguma, todos juntos, uma participante disse que corriam tão rápido que em
alguns momentos pareciam dar saltos a grandes distâncias. Mas o detalhe que
mais me chamou a atenção foi o áudio de um participante que alegava ter ouvido
urros e gritos terríveis, quase inumanos, e ao abrir a janela para verificar
donde vinham, se deparou com o que ele dizia ser um mendigo arrastando um
cachorro, o mendigo arremessava o pobre animal de um lado para o outro,
segurando-o pelas patas e batendo sua cabeça contra o asfalto, o garoto que
narrava a cena disse que um determinado momento ouviu os últimos ganidos do
bichinho, nesse momento sua voz embargou e ele interrompeu a narrativa por um
momento; a retomou em outro áudio no qual descrevia que após constatar que o
animal já não se mexia, o homem se debruçou sobre ele arrancando pedaços de
carne com os dentes e cuspindo-os ao lado do cadáver do animal, depois de um
minuto repetindo o processo, se levantou e saiu arrastando a carcaça do que
sobrou do cachorro. Disse ainda em um terceiro áudio que fez uma ligação anônima
para a polícia, e observou pela janela quando uma viatura encostou próximo a
poça de sangue que ficou quase em frente à casa dele. Ficaram lá alguns
instantes conversando pelo rádio e passaram a seguir o rastro de sangue com a
viatura em baixa velocidade.
Não sei definir exatamente a razão pela qual esse áudio
mexeu tanto comigo. Sempre tive uma afeição muito grande por animais, e só não
tinha um cão ou gato em casa por que minhas tias proibiam, e como morávamos de
favor no quintal delas, não estava disposto a arrumar encrenca. Ouvir que um
pobre cãozinho, provavelmente abandonado ou perdido pelas ruas de noite,
encontrou seu fim de maneira tão cruel nas mãos de um " verdadeiro
animal" me causou uma angústia indescritível. Talvez fosse a emoção com qual
o rapaz narrou a cena; diferente das curtas mensagens cheias de erros de
português que mais pareciam brincadeiras de mal gosto, sua voz embargada nos
momentos mais críticos da narrativa tocou fundo todos os outros participantes.
Mas acredito que no fundo, a cena descrita por ele me fizera lembrar do
episódio que eu mesmo presenciará mais cedo enquanto voltava da padaria, mais
do que isso, me fizera lembrar de toda minha fraqueza e incompetência ante o
ocorrido.
Tentando apagar essas ideias de minha mente continuei
rolando as mensagens que agora se resumiam a comentários sobre os áudios acima
citados. Uma das últimas mensagens era de poucos minutos atrás, depois de um
hiato de horas desde a última mensagem. Se tratava de um vídeo com o ícone de
download esperando para ser baixado, com a seguinte legenda: "gente, olha
que tenso esse vídeo que eu acabei de fazer... não sei o que dizer... só deus
para nos proteger numa hora dessas". Curioso, cliquei no ícone para baixar
o vídeo e depois de um tempo recebi uma mensagem de erro no download, cliquei
novamente... o mesmo erro... chequei meu sinal de wifi que estava cheio e
cliquei novamente no botão... nada... o mesmo erro de download, voltei então minhas
atenções para o PC pensando em acessa-lo no navegador e notei o sinal de
exclamação no ícone de rede perto do relógio, olhei no meu modem e a luz do
cabo piscava me alertando que a internet havia caído. Tentei então acionar o 3G
do celular, mas depois de tentar baixar o mesmo vídeo três vezes sem sucesso,
lembrei de verificar meus créditos, e é claro que estavam zerados. Frustrado e
curioso, sem internet no primeiro dia das minhas férias, me reclinei na
cadeira, ora olhando para o teto, ora olhando para a luz piscante do modem na
esperança de que ela estabilizasse.
Devo ter ficado assim por cerca de quinze minutos, pensando
no que fazer; quando me lembrei de que tinha ficado de ir falar com o Mateus
sobre a tarde do dia anterior e pegar detalhes do que aconteceu com o William.
Aproveitava então para ver se ele tinha internet na casa dele, assim eu poderia
baixar o vídeo no meu celular. Olhei no relógio do PC que marcava nove horas da
manhã e julguei que a essa hora ele já deveria estar acordado e de pé. Sai do
meu quarto em direção a cozinha e notei que meus pais já haviam se levantado e
estavam tomando café da manhã ao som de músicas gospel que minha mãe adorava, e
meu pai odiava. Junto deles uma de minhas tias, a mesma que quase me fez
explodir horas atrás com seus comentários desnecessários, se encarregava de colocá-los
a par das últimas notícias sobre o meu primo. Passei por eles com um simples
"bom dia", desejoso de não me desgastar ainda mais com minha tia, e
fui em direção à rua. Já na rua, notei o silêncio típico de feriados,
geralmente podia-se ouvir o movimento frenético da avenida que passava abaixo
de nossa rua, no entanto, tudo que se ouvia hoje era o som do vento balançando
as folhas das frondosas árvores que ornavam a rua. Gostava de momentos como
esse, por alguns instantes me faziam sentir como a última pessoa no mundo.
Parei por alguns instantes para curtir o momento, até que um alarme de carro
disparou tirando-me do meu transe.
Fui em direção a casa do Matheus que ficava quase de frente
para a nossa, já próximo do portão vi que sua mãe passava pela porta principal
com uma sacola de nylon na mão provavelmente de saída para as compras. Quando
se aproximou do portão, a cumprimentei:
- Bom dia, dona Enid.
- Bom dia, Alexandre.
- Vim conversar com o Mateus, ele está??
Voltando o olhar para o chão e exalando um suspiro respondeu
desanimadamente: - Está no quintal dos fundos, cobrindo a moto dele.
Naquele instante não compreendi sua atitude, mas vendo que
estava claramente indo às compras, decidi alertá-la sobre o fechamento precoce
da padaria.
- A senhora talvez não saiba, mas a padaria fechou as portas
mais cedo hoje.
- Entendo que é véspera de natal, mas não são nem meio-dia.
Estranhou ela.
- Ficaram com medo dos ataques que a TV noticiou mais cedo.
A senhora ficou sabendo??
- Mais do que eu gostaria...
E talvez porque notasse a interrogação no meu rosto,
continuou: - O Mateus vai te explicar melhor. Sabe me informar se os outros
comércios estão abertos??
- Não senhora, infelizmente não sei dizer.
Pedi licença e entrei pelo portão social, ela saiu pelo
mesmo portão trancando-o por fora. Lembrando dos acontecimentos que eu
presenciara mais cedo, à alertei: - Se cuida dona Enid. Ela fez um leve aceno
com cabeça, e seguiu seu caminho.
Me encaminhei em direção ao corredor lateral do lado externo
da casa que levava ao quintal dos fundos. Lá chegando vi o Mateus terminando de
cobrir sua moto como a dona Enid me dissera. Como ele não notou minha presença
ali, eu disse em voz alta:
- Está aposentando ela??
Ele se virou com um olhar de espanto em um rosto pálido e
ficou me encarando em silêncio. Notando o clima estranho no ar, talvez por
tê-lo surpreendido com a minha aproximação sorrateira, tentei me justificar:
- Encontrei com a sua mãe saindo para ir às compras, ela
disse que você estava aqui atrás e me deixou entrar. Tudo bem cara??
Ele continuou arrumando a capa da moto nos mínimos detalhes
sem emitir uma única palavra. Percebi nesse instante que havia algo errado; sua
personalidade alegre e gentil que tanto cativara os clientes na loja durante o
período em que compartilhamos o ambiente de trabalho, estava agora envolta em
pesadas sombras. Conseguia compreender parte das razões por de trás dessa
mudança, afinal, há menos de um dia, ele havia encontrado o corpo do amigo e
provavelmente acompanhado seus últimos momentos. Achei melhor mudar minha
abordagem e não tocar no assunto do acidente envolvendo o William. Acessos de
empatia como esses não eram do meu feitio; principalmente quando algo que me interessava
estava em jogo, nesse caso, era a minha curiosidade mórbida que eu desejava
satisfazer. Mas eu aprendi a gostar do Mateus, pelo fato de sermos vizinhos,
nos habituamos a fazer juntos o trajeto do trabalho para casa, e apesar de eu
fazer mais o tipo "estranho de poucas palavras", ele desembestava a
falar e falar sobre os mais variados assuntos, enquanto eu apenas respondia com
monossílabos do tipo "pois é" ou 'que saco". No fundo eu até que
gostava dos monólogos dele, acho que posso dizer que ele foi um dos poucos
amigos que tive depois de terminado o colégio. Tentei uma nova aproximação:
- Cara, estou sem internet em casa. Me passa a senha do
wifi, por favor??
- A internet caiu faz uns vinte minutos.
- Puta merda. Igual lá em casa...
Após alguns momentos de silêncio constrangedor, durante os
quais ele continuou a arrumar a capa da moto, eu retomei o diálogo:
- Encontrei sua mãe no portão...
Ele interrompeu: - Você já disse isso
- Eu sei. O que eu ia comentar é que ela me pareceu um pouco
abatida. Aconteceu alguma coisa com ela??
Ele respondeu secamente: - Ela está assim desde que eu
recebi a convocação para servir no controle das rebeliões.
Essa notícia me pegou de surpresa. Eu já tinha ouvido sobre
a convocação dos reservistas, mas não esperava que já estivessem sendo chamados
tão cedo. Ainda me recuperava do choque da notícia quando ele me interpelou:
- Você não foi convocado??
- Sou filho único,
se lembra??
- Filho de uma mãe sortudo de uma figa.
Tentando amenizar a situação, brinquei: - Se você deixar, eu
posso me casar com a sua irmã, daí então você passa a ser o homem da casa, uma
vez que seu pai já não tem condições de trabalhar, você poderia alegar que sua
família depende de você.
Ele imediatamente respondeu: - Nos seus sonhos talvez, minha
irmã não é para o seu bico.
- Cara, eu só queria te ajudar. - Repliquei
- Sei...
Perceptível abatimento se fez notar na sua última resposta,
então perguntei: - Você está com medo??
E a resposta foi: - Depois do que eu vi ontem, poucas coisas
me assustam nesse mundo.
A conversa havia atingido o ponto que eu queria. Como a
iniciativa de tocar no assunto partiu dele, subentendi que ele estava disposto
a falar sobre, então, perguntei:
- Você se refere ao que aconteceu ontem durante a trilha??
- Sim. - E você ficou sabendo que fui eu quem encontrou o
corpo do William??
- Sim, eu soube. Disse tentando disfarçar minha curiosidade.
- E se eu bem conheço você, imagino que você queira saber
dos detalhes. Certo??
- Surpreendido pela colocação, retruquei: - Julgas me conhecer
tão bem assim??
- O suficiente. - Se bem me lembro, durante os nossos papos
no trajeto do trabalho para a casa, os únicos assuntos que lhe empolgavam a
manter um diálogo, eram aqueles relacionados ao sobrenatural e a morte.
- Sério. Era tão escancarado assim?? Resmunguei
constrangido.
Ele sorriu discretamente, e respondeu:
- Sim..., mas tudo
bem. É exatamente por você acreditar "nesses lances" que eu me sinto à
vontade para lhe contar a versão completa do que aconteceu ontem... Com a única
condição de que esses fatos não cheguem aos ouvidos de minha família e tão
pouco ao conhecimento dos pais do William.
Estava começando a ficar com medo. Sua última frase veio
carregada com uma frieza que fez os pelos do meu braço se arrepiarem. O que
poderia ter acontecido de tão grave?? Intimamente, começava a me perguntar se
eu queria seguir em frente e saber detalhes do ocorrido. Ainda repassava os
pensamentos na minha cabeça quando o Matheus perguntou:
- Você acredita mesmo naquelas coisas que você me falava??
- Gosto de ler sobre o assunto, mas isso não faz de mim um
expert, para dizer a verdade, sou cético com relação a maioria das coisas com
que tenho contato. Para mim é um hobby, gosto da adrenalina que o medo causa.
Só isso.
- Mesmo assim, você parece ter a mente mais aberta em
relação ao assunto que qualquer um que eu conheça. Além do mais, compartilhar
isso com mais alguém vai me tirar um peso das minhas costas, e se por acaso
algo me acontecer algo durante as rebeliões, não quero carregar esse arrependimento
comigo.
Fiquei em silêncio, não sabia o que dizer. O Matheus então
aproveitou para começar sua narrativa...
Autor: Alexandre Barbosa