Em 25 de fevereiro do ano de 19–, foi noticiado, dentro de um mês, o terceiro roubo de corpos do cemitério municipal de São Miguel. Os cidadãos – em torno de 53 mil – só não ficaram mais pasmos que as autoridades do local. Alma alguma imaginaria uma repetição do ocorrido pela terceira vez em tão pouco tempo, ainda mais numa cidade pequena. A única precaução tomada, porém, foi a intensificação da guarda noturna, já que os três roubos não deixaram pistas; “Nunca vi crime tão perfeito como esses, e nunca nessa cidade houve um escândalo de tamanhas proporções”, pronunciou-se, certa vez, o xerife. A expectativa então nas cabeças de todos os habitantes de Lenora era que não demoraria muito para que o ladrão agisse outra vez, e, quando isso acontecesse, as autoridades esperavam prendê-lo, para o alivio da comunidade. E tamanha fora a surpresa quando um mês se passou e nada a respeito desse assunto fora relatado, o xerife foi a público outra vez para dizer que ele, junto dos oficias, concluíra que a onda de assaltos a cadáveres estava quase chegando ao fim, mas que ainda era bom manter a guarda e esperar mais um mês se concluir.
Este assunto, entretanto, não demoraria a sair da atenção das pessoas que ali moravam, pois, três semanas e meia após o primeiro roubo ao cemitério, ocorreu uma grande explosão em uma casa na Rua Sete, nos subúrbios da cidade. Todos os olhares e notícias voltaram-se à rua obscura no mais pobre bairro do município; voltaram-se para os estreitos e sinuosos caminhos, e chocaram-se ao ver a estrutura e estilo das casas dali – tudo parecia muito antigo, e um jornal escandaloso deu ênfase às “curvas inimagináveis presentes na arquitetura decadente”, mas não recebeu muito crédito, como já era esperado A causa da explosão ou o que fora encontrado no porão da residência nunca foi revelado ao grande público, e depois das investigações feitas, o governo usou de todo seu aparato afim de afogar no esquecimento a temida série de roubo de cadáveres que há tão pouco tempo deixara intrigada a maior parte da população. A causa noticiada para a explosão foi um simples vazamento de gás – este que entrou em contato com uma fonte grande de fogo –, mesmo que isso por si só não fosse suficiente para causar a destruição tal qual a que aconteceu – todavia, esse ponto, na época, não foi sequer questionado.
Sobre o habitante que vivia na antiga residência, pouco foi encontrado. Seu nome e aparência são desconhecidos para o mundo mesmo hoje, e, nos velhos tempos do desastre, isso pouco importou aos investigadores, pois se tornou irrelevante visto os horrores daquele amaldiçoado porão; horrores que não podem ser descritos por palavras humanas e que são sabidos apenas por poucas mentes desvairadas. Relatos de moradores próximos a explosão descreveram o homem como “solitário” e “esquivo”, além de “assustador”, “aterrorizante” e “medonho”. Quase nenhum dos entrevistados vira seu rosto, e aqueles que o viram relutaram em detalhá-lo; quando pressionados o bastante, porém, o máximo colhido foram frases vagas com descrições fantásticas ou extremamente romantizadas. O homem pouco saia de casa – quando o fazia, tinha a intenção ordinária de buscar suprimentos básicos para a vida humana –; foram essas saídas que possibilitaram ao dono da mercearia mais próxima escutar sua voz, privilégio concedido a poucos. Este, contudo, afirmou com a mais plena convicção que “desejaria nunca ter escutado as poucas palavras que aquele amaldiçoado ser pronunciara”. “Eram ásperas e profundas”, disse também, “e não pareciam ser ditas por um instrumento vocal humano”.
Jamais foi divulgado por veículos confiáveis que o misterioso homem tinha algo a ver com os três assaltos aos corpos – estes escolhidos de maneira totalmente aleatória, visto que, em vida, não construíram relação alguma –, mas tornou-se um consenso de toda gente que acompanhou esse caso a certeza deste feito. Isso se deve ao fato de que duas pessoas o viram sair de casa, pouco antes das 4h, nas noites antecedentes ao sumiço dos corpos. Seu vizinho, cujo nome manterei oculto, vira o decorrer destes fatos pelas últimas duas vezes; logo, permaneceu atento às saídas noturnas do taciturno homem, e somente na segunda noite– uma semana depois da primeira que presenciou – permaneceu acordado para ver sua volta. Disse que carregava um saco preto e não acreditava haver em seu interior um corpo humano; como explicação para essa crença, apontou para o tamanho diminuto do saco, e afirmou que nenhuma alma normal caberia nele. A teoria de que o homem era o temido ladrão não é de todo refutada por esse relato, pondo em vista que o assaltante teria tempo suficiente para desmembrar suas vítimas e então compactá-las em um tamanho menor. A volta, em ambas as noites, deu-se às 5h30m, pouco antes do amanhecer. Tudo isso foi mais que confirmado quando uma senhora, que morava em frente à casa destruída, afirmou as palavras do vizinho, e acrescentou ainda que o vira sair na primeira madrugada anterior ao roubo que dera início à famosa série; alegou que foi
uma semana antes de o ver pela segunda vez, o que indica que os roubos estavam programados semanalmente.
Como última prova dessa teoria, uma mulher – que nunca dissera seu nome – declarou ter encontrado o homem quando voltava para casa. Ele, segundo ela, “seguia em direção à parte leste da cidade, numa grande rua cujo ponto final leva ao grande portão do cemitério”. Assustou-se assim que viu seu rosto – descreveu-o como onírico –, e não disse nenhuma palavra sequer. Ele, por sua vez, quando a viu, apressou o passo, como se sua presença o incomodasse.
Passadas algumas semanas da explosão, um senhor de idade dirigiu-se à delegacia no centro de Lenora e alegou, para o total espanto de todos os presentes no momento, ser o pai do misterioso morador cuja vida e casa foram destruídas. Não disse mais que isso, pois falou que iria conversar apenas com as autoridades máximas, e que os cidadãos comuns nada deveriam saber. Seu pedido foi, com muita relutância, aceito, e logo uma reunião fora agendada com o xerife, no dia seguinte.
O encontro foi realizado, então, às escondidas, com o intuito de impossibilitar qualquer comoção a respeito do caso, agora que declinara de maneira satisfatória a curiosidade dos habitantes. Ao termino da oculta conversa, os policiais disseram ter visto algo de lúgubre e assustador no olhar do xerife assim que este saiu do escritório – descreveram uma fronte pálida e olhos vítreos, tremedeiras nas mãos e dificuldade para andar ou permanecer em pé –; o pai do suposto ladrão de corpos não foi visto ali e em nenhum outro lugar posteriormente. No dia seguinte, o xerife não se apresentou ao seu posto; foi encontrado morto na rua de sua casa, as marcas levam a deduzir um enforcamento, porém, uma poça roxa de líquido viscoso encontrada na cena do crime trouxe mais perguntas que respostas às mentes dos investigadores.
Por dois meses que precederam os eventos antes descritos, nada de novo foi revelado. Tudo a respeito destes foram esquecidos, de maneira forçada ou não, já que – dado o espanto depois da descoberta do assassinato do xerife – a mídia fora pressionada a pouco falar acerca do assunto e somente fazê-lo com o propósito de encobrir ou desmentir algum boato propagado na comunidade. Entretanto, um livro fora achado enterrado no quintal dos destroços por um grupo de adolescentes que vestem somente preto, pensam haver mais de dois gêneros, e que gostam de ir a lugares proibidos e “assombrados” para fumar. Quando entregado às autoridades – pela mãe de um deles –,
nada pôde ser estudado, visto que os caracteres que compunham as páginas do pequeno livro eram e são desconhecidos de toda gente.
Diversos historiadores e tradutores famosos foram chamados, mas nenhum foi capaz de reconhecer a escrita presente nas amareladas páginas. As palavras presentes por dentro do livro amarelo – cuja capa fora composta por pele de cobra – foram consideradas indecifráveis; o artefato foi então muito bem guardado na Universidade de São Miguel após um pedido de seu diretor, um dos confiados para sua tradução. E nada mais aconteceu.
II
Um professor, que ficara na biblioteca do prédio por mais tempo que o habitual, a fim de realizar pesquisas de seu interesse, assustou-se subitamente com o estrondoso barulho de pancada vindo do andar abaixo; alguns instantes depois, ouviu o som de vidro quebrando e então escutou ligeiros passos a correr em direção a saída. Não tardou a investigar – mas não o fez de imediato, pois, embora as primeiras pistas não houvessem o deixado amedrontado, os sinistros sons de passos pequenos gelaram sua espinha e fizeram-no relutar mais do que deveria. Quando se viu na porta da enorme biblioteca, pôde ver pequeninas marcas arredondadas no chão – pegadas impregnadas do mesmo líquido roxo viscoso encontrado na cena de morte do xerife. Ao adentrar o cômodo e acender as luzes, percebeu que o livro encontrado nos escombros da explosão fora roubado; ali também se encontrava o estranho liquido, em uma profusão muito maior, porém.
Isso foi prontamente noticiado à polícia, que coisa alguma divulgou. Da cena do roubo nada conseguiram concluir além da força descomunal possuída pelo assaltante devido à derrubada de uma grande porta dupla, que certamente causara o primeiro estrondo escutado pelo professor, e a visível equivalência do espesso líquido ali constatado com o apreendido perto do corpo do antigo xerife – este último ponto foi, em seguida, provado em laboratório.
Sem pistas ou um norte a seguir, as autoridades se viram desamparadas e totalmente confusas. Não encontraram o perseguidor e o esforço feito para ocultar o
sumiço do livro mostrou-se imenso, já que a biblioteca era um dos pontos mais visitados da faculdade, e todos sentiram falta dele. A desculpa dada foi a transferência para outra cidade visando novas investigações e tentativas de tradução. Não foram todos que acreditaram completamente, e excessivas perguntas foram feitas ao corpo docente da instituição de ensino do município e seus diretores – os policiais não deixaram de ser importunados também, e o novo xerife cansou-se de repetir as mesmas palavras para os visitantes e representantes de jornais.
Para inicial desespero das autoridades, noticiara-se um novo roubo de corpos no cemitério municipal, e logo pensaram que a sorte não os ajudava, pois teriam de cuidar de dois importantes casos de uma só vez – algo difícil para as poucas unidades daquela pequena cidade de interior. Porém, com um pouco mais de reflexão, relacionaram o livro escrito pelo homem misterioso, suspeito o responsável pela primeira pequena onda de assaltos a corpos, e o recente sumiço do livro. Perguntaram-se se seria o mesmo responsável pelo assassinato do xerife ou se seria outro alguém com outras intuições; concluíram, entretanto, que toda coincidência tem de ser suspeitada, e puseram-se a investigar. Toda noite, em quatro pontos ao redor do muro do cemitério, policiais foram postos em carros – de maneira furtiva – com o objetivo de perseguir o ladrão caso este ousasse repetir o crime outra vez, algo provável visto que – se o atual assaltante fosse “discípulo” ou influenciado pelo misterioso homem morto na explosão – ele tentaria seguir o mesmo plano de seu antecedente.
Nada, nas primeiras noites, foi visto; nem nas outras que se seguiram; e muito menos nas próximas – nenhum corpo foi roubado num intervalo de tempo de 3 semanas. Generalizou-se o desanimo entre os envolvidos; o desalento sentido equiparou-se à sensação de impotência. O ladrão provavelmente sabia os passos da polícia e se mostrou mais inteligente do que o esperado. Insistiram no plano por mais tempo, em busca de um resultado inesperado; este, infelizmente, não veio. Buscou-se então a redução do número de agentes – dois carros foram retirados, e os outros dois fixaram-se nas principais saídas do cemitério, ao norte e ao sul. Nada adiantou, e, numa última tentativa aflita, recolheram-se os carros e apenas um policial foi realocado nas sombras do grande portão.
Infeliz homem, não esperava o que estava prestes a encontrar. Essa última tentativa, para a surpresa de todos, surgiu efeito. Foi por volta das 4h30m que ele avistou um homem aproximar-se do local. Adentrou-o com cuidado e atento; o rangido do grande portão de ferro – que geralmente é alto e agonizante – quase não foi percebido. O policial
escondeu-se e então esperou. Nenhum som foi ouvido senão o de terra a ser cuidadosamente cavada por longos minutos; o ruído era mínimo e mostrou-se surpreendente a cautela e habilidade do ladrão. Às 5h15 o suspeito deixou o cemitério pelo mesmo lugar por onde entrou, com um pequeno saco na mão. Nesse momento, ao ver a cena, o agente perguntou-se como poderia caber um corpo humano dentro de tão pouco espaço, como afirmara havia muito o homem cujo vizinho teve a casa explodida.
Então, o policial fez a única coisa que era possível naquele momento, seguiu o homem cuidadosamente pelas ruas e ruelas da cidade de São Miguel. O caminho feito foi totalmente confuso, já que caminharam mais por becos do que por ruas em si. O homem não hesitou em qual caminho tomar, mostrado que o conhecia de cor, algo que se mostrou muito difícil para o policial, que em vão tentava lembrar todos os trajetos estreitos realizados pelo suspeito. Seguindo seu senso de direção e conhecimento da cidade na qual nascera, ele já suspeitava qual seria o local para onde o ladrão de corpos estava indo. Não errou; foi com muito medo e relutância que viu o homem espreitar pela sinuosa rua cujas casas tortas e inclinadas amedrontam todos que ali passam. Ele não havia estado ali desde a explosão, tempos atrás, não só por medo, como também por advertência da própria população e de todos os que moravam ali antes e se mudaram após o hediondo episódio.
A rua, como esperava, estava deserta. Nem mesmo os adolescentes que só vestem preto vadiavam por ali. O silêncio era total; escutou somente os abafados passos do homem quando este se dirigiu à segunda casa à direita, em frente à construção que antes fora grande, mas que agora só se viam os escombros – a casa da vizinha que flagrou as andanças do morto na explosão, mas que, como todos, deixou o local às pressas. Não demoraria muito para o sol aparecer e o policial, relutante, anotou o endereço e dirigiu-se o mais rápido possível à delegacia, enquanto suas pernas tremiam.
O ataque foi planejado logo, para apenas dois dias após a descoberta da localização do suspeito. Tudo se realizou de maneira oculta, pois, devido ao extremo mistério do caso e a falta de conclusões, toda gente do município acharia estranha a grande comoção policial com o objetivo de “apenas prender um ladrão de corpos em sua casa”. A entrada seria forçada e silenciosa, mas, depois do acesso ao interior, não se poupariam esforços e força bruta a fim de resolver o que quer que havia de ser resolvido na casa recôndita. Não se sabia o que poderia ser encontrado lá, e, após a morte do xerife, as escritas enigmáticas encontradas no livro de capa amarela – assim como o roubo deste e a volta dos roubos de cadáveres logo depois – e o líquido roxo espesso encontrado nos
locais de ambos estes acontecimentos, todo cuidado era pouco. De acordo com os relatórios da operação, foram enviados os mesmos policiais que investigaram o porão da casa explodida e encontraram terrores inexplicáveis ali – pelo menos todos que mantiveram suas mentes sãs – para não expor outras pessoas a horrores até mais mórbidos
Para a felicidade das autoridades, ninguém descobriu o ataque mesmo depois de este ter sido realizado. A infelicidade, porém, mostrou-se maior que a felicidade. Nada foi encontrado na casa misteriosa, somente marcas de móveis no térreo e andares superiores, provavelmente utilizados pela antiga moradora e retirados quando ela deixou o local. Nada fora encontrado no porão – as marcas ali, entretanto, não correspondiam a móveis comuns, e não foi possível conjecturar que estruturas ocupavam aqueles lugares – nada senão uma nota escrita à mão, deixada no centro do cômodo. O envelope não foi aberto de imediato – ação realizada mais por efeito do medo do que o de dever ou preservação de provas. O homem já havia deixado a cidade há muito; na manhã seguinte a descoberta de sua moradia, e por rotas ocultas, de acordo com testemunhas.
O novo xerife, após ler – sozinho – a nota, nada mais falou sobre o caso. Para a surpresa de todos, deu-o como “encerrado”. Encontraram-no enforcado em seu pequeno apartamento no dia seguinte. O amaldiçoado papel foi então guardado e nunca mais lido. Eis o que dizia:
“Ah, já é tarde demais. O processo, porém, demorará mais algumas décadas para ser concluído. Tudo o que poderia ser feito nessa cidade de São Miguel foi realizado. Estou em experimentos mais avançados, revelados a mim graças ao livro amarelo. Meu pai pode ter feito algum erro pueril, certamente influenciado pelo meu avô – que de toda maneira tentava dissimular seus objetivos –, mas eu fiz corretamente. Escrevo isso para avisar e tranqüilizar-lhes: nenhum cadáver será roubado do cemitério a partir daqui. Não descreverei no que eu os transformei instantes depois de desenterrá-los, se quiserem saber o porquê dos pequenos sacos; vocês não agüentariam. Estou longe e desejo-lhes sorte com os casos seguintes, enquanto ainda lhes resta tempo, pois as oferendas foram feitas, e o tempo será curto até que meu próprio Deus comande sobre suas terras infestas.”
Este assunto, entretanto, não demoraria a sair da atenção das pessoas que ali moravam, pois, três semanas e meia após o primeiro roubo ao cemitério, ocorreu uma grande explosão em uma casa na Rua Sete, nos subúrbios da cidade. Todos os olhares e notícias voltaram-se à rua obscura no mais pobre bairro do município; voltaram-se para os estreitos e sinuosos caminhos, e chocaram-se ao ver a estrutura e estilo das casas dali – tudo parecia muito antigo, e um jornal escandaloso deu ênfase às “curvas inimagináveis presentes na arquitetura decadente”, mas não recebeu muito crédito, como já era esperado A causa da explosão ou o que fora encontrado no porão da residência nunca foi revelado ao grande público, e depois das investigações feitas, o governo usou de todo seu aparato afim de afogar no esquecimento a temida série de roubo de cadáveres que há tão pouco tempo deixara intrigada a maior parte da população. A causa noticiada para a explosão foi um simples vazamento de gás – este que entrou em contato com uma fonte grande de fogo –, mesmo que isso por si só não fosse suficiente para causar a destruição tal qual a que aconteceu – todavia, esse ponto, na época, não foi sequer questionado.
Sobre o habitante que vivia na antiga residência, pouco foi encontrado. Seu nome e aparência são desconhecidos para o mundo mesmo hoje, e, nos velhos tempos do desastre, isso pouco importou aos investigadores, pois se tornou irrelevante visto os horrores daquele amaldiçoado porão; horrores que não podem ser descritos por palavras humanas e que são sabidos apenas por poucas mentes desvairadas. Relatos de moradores próximos a explosão descreveram o homem como “solitário” e “esquivo”, além de “assustador”, “aterrorizante” e “medonho”. Quase nenhum dos entrevistados vira seu rosto, e aqueles que o viram relutaram em detalhá-lo; quando pressionados o bastante, porém, o máximo colhido foram frases vagas com descrições fantásticas ou extremamente romantizadas. O homem pouco saia de casa – quando o fazia, tinha a intenção ordinária de buscar suprimentos básicos para a vida humana –; foram essas saídas que possibilitaram ao dono da mercearia mais próxima escutar sua voz, privilégio concedido a poucos. Este, contudo, afirmou com a mais plena convicção que “desejaria nunca ter escutado as poucas palavras que aquele amaldiçoado ser pronunciara”. “Eram ásperas e profundas”, disse também, “e não pareciam ser ditas por um instrumento vocal humano”.
Jamais foi divulgado por veículos confiáveis que o misterioso homem tinha algo a ver com os três assaltos aos corpos – estes escolhidos de maneira totalmente aleatória, visto que, em vida, não construíram relação alguma –, mas tornou-se um consenso de toda gente que acompanhou esse caso a certeza deste feito. Isso se deve ao fato de que duas pessoas o viram sair de casa, pouco antes das 4h, nas noites antecedentes ao sumiço dos corpos. Seu vizinho, cujo nome manterei oculto, vira o decorrer destes fatos pelas últimas duas vezes; logo, permaneceu atento às saídas noturnas do taciturno homem, e somente na segunda noite– uma semana depois da primeira que presenciou – permaneceu acordado para ver sua volta. Disse que carregava um saco preto e não acreditava haver em seu interior um corpo humano; como explicação para essa crença, apontou para o tamanho diminuto do saco, e afirmou que nenhuma alma normal caberia nele. A teoria de que o homem era o temido ladrão não é de todo refutada por esse relato, pondo em vista que o assaltante teria tempo suficiente para desmembrar suas vítimas e então compactá-las em um tamanho menor. A volta, em ambas as noites, deu-se às 5h30m, pouco antes do amanhecer. Tudo isso foi mais que confirmado quando uma senhora, que morava em frente à casa destruída, afirmou as palavras do vizinho, e acrescentou ainda que o vira sair na primeira madrugada anterior ao roubo que dera início à famosa série; alegou que foi
uma semana antes de o ver pela segunda vez, o que indica que os roubos estavam programados semanalmente.
Como última prova dessa teoria, uma mulher – que nunca dissera seu nome – declarou ter encontrado o homem quando voltava para casa. Ele, segundo ela, “seguia em direção à parte leste da cidade, numa grande rua cujo ponto final leva ao grande portão do cemitério”. Assustou-se assim que viu seu rosto – descreveu-o como onírico –, e não disse nenhuma palavra sequer. Ele, por sua vez, quando a viu, apressou o passo, como se sua presença o incomodasse.
Passadas algumas semanas da explosão, um senhor de idade dirigiu-se à delegacia no centro de Lenora e alegou, para o total espanto de todos os presentes no momento, ser o pai do misterioso morador cuja vida e casa foram destruídas. Não disse mais que isso, pois falou que iria conversar apenas com as autoridades máximas, e que os cidadãos comuns nada deveriam saber. Seu pedido foi, com muita relutância, aceito, e logo uma reunião fora agendada com o xerife, no dia seguinte.
O encontro foi realizado, então, às escondidas, com o intuito de impossibilitar qualquer comoção a respeito do caso, agora que declinara de maneira satisfatória a curiosidade dos habitantes. Ao termino da oculta conversa, os policiais disseram ter visto algo de lúgubre e assustador no olhar do xerife assim que este saiu do escritório – descreveram uma fronte pálida e olhos vítreos, tremedeiras nas mãos e dificuldade para andar ou permanecer em pé –; o pai do suposto ladrão de corpos não foi visto ali e em nenhum outro lugar posteriormente. No dia seguinte, o xerife não se apresentou ao seu posto; foi encontrado morto na rua de sua casa, as marcas levam a deduzir um enforcamento, porém, uma poça roxa de líquido viscoso encontrada na cena do crime trouxe mais perguntas que respostas às mentes dos investigadores.
Por dois meses que precederam os eventos antes descritos, nada de novo foi revelado. Tudo a respeito destes foram esquecidos, de maneira forçada ou não, já que – dado o espanto depois da descoberta do assassinato do xerife – a mídia fora pressionada a pouco falar acerca do assunto e somente fazê-lo com o propósito de encobrir ou desmentir algum boato propagado na comunidade. Entretanto, um livro fora achado enterrado no quintal dos destroços por um grupo de adolescentes que vestem somente preto, pensam haver mais de dois gêneros, e que gostam de ir a lugares proibidos e “assombrados” para fumar. Quando entregado às autoridades – pela mãe de um deles –,
nada pôde ser estudado, visto que os caracteres que compunham as páginas do pequeno livro eram e são desconhecidos de toda gente.
Diversos historiadores e tradutores famosos foram chamados, mas nenhum foi capaz de reconhecer a escrita presente nas amareladas páginas. As palavras presentes por dentro do livro amarelo – cuja capa fora composta por pele de cobra – foram consideradas indecifráveis; o artefato foi então muito bem guardado na Universidade de São Miguel após um pedido de seu diretor, um dos confiados para sua tradução. E nada mais aconteceu.
II
Um professor, que ficara na biblioteca do prédio por mais tempo que o habitual, a fim de realizar pesquisas de seu interesse, assustou-se subitamente com o estrondoso barulho de pancada vindo do andar abaixo; alguns instantes depois, ouviu o som de vidro quebrando e então escutou ligeiros passos a correr em direção a saída. Não tardou a investigar – mas não o fez de imediato, pois, embora as primeiras pistas não houvessem o deixado amedrontado, os sinistros sons de passos pequenos gelaram sua espinha e fizeram-no relutar mais do que deveria. Quando se viu na porta da enorme biblioteca, pôde ver pequeninas marcas arredondadas no chão – pegadas impregnadas do mesmo líquido roxo viscoso encontrado na cena de morte do xerife. Ao adentrar o cômodo e acender as luzes, percebeu que o livro encontrado nos escombros da explosão fora roubado; ali também se encontrava o estranho liquido, em uma profusão muito maior, porém.
Isso foi prontamente noticiado à polícia, que coisa alguma divulgou. Da cena do roubo nada conseguiram concluir além da força descomunal possuída pelo assaltante devido à derrubada de uma grande porta dupla, que certamente causara o primeiro estrondo escutado pelo professor, e a visível equivalência do espesso líquido ali constatado com o apreendido perto do corpo do antigo xerife – este último ponto foi, em seguida, provado em laboratório.
Sem pistas ou um norte a seguir, as autoridades se viram desamparadas e totalmente confusas. Não encontraram o perseguidor e o esforço feito para ocultar o
sumiço do livro mostrou-se imenso, já que a biblioteca era um dos pontos mais visitados da faculdade, e todos sentiram falta dele. A desculpa dada foi a transferência para outra cidade visando novas investigações e tentativas de tradução. Não foram todos que acreditaram completamente, e excessivas perguntas foram feitas ao corpo docente da instituição de ensino do município e seus diretores – os policiais não deixaram de ser importunados também, e o novo xerife cansou-se de repetir as mesmas palavras para os visitantes e representantes de jornais.
Para inicial desespero das autoridades, noticiara-se um novo roubo de corpos no cemitério municipal, e logo pensaram que a sorte não os ajudava, pois teriam de cuidar de dois importantes casos de uma só vez – algo difícil para as poucas unidades daquela pequena cidade de interior. Porém, com um pouco mais de reflexão, relacionaram o livro escrito pelo homem misterioso, suspeito o responsável pela primeira pequena onda de assaltos a corpos, e o recente sumiço do livro. Perguntaram-se se seria o mesmo responsável pelo assassinato do xerife ou se seria outro alguém com outras intuições; concluíram, entretanto, que toda coincidência tem de ser suspeitada, e puseram-se a investigar. Toda noite, em quatro pontos ao redor do muro do cemitério, policiais foram postos em carros – de maneira furtiva – com o objetivo de perseguir o ladrão caso este ousasse repetir o crime outra vez, algo provável visto que – se o atual assaltante fosse “discípulo” ou influenciado pelo misterioso homem morto na explosão – ele tentaria seguir o mesmo plano de seu antecedente.
Nada, nas primeiras noites, foi visto; nem nas outras que se seguiram; e muito menos nas próximas – nenhum corpo foi roubado num intervalo de tempo de 3 semanas. Generalizou-se o desanimo entre os envolvidos; o desalento sentido equiparou-se à sensação de impotência. O ladrão provavelmente sabia os passos da polícia e se mostrou mais inteligente do que o esperado. Insistiram no plano por mais tempo, em busca de um resultado inesperado; este, infelizmente, não veio. Buscou-se então a redução do número de agentes – dois carros foram retirados, e os outros dois fixaram-se nas principais saídas do cemitério, ao norte e ao sul. Nada adiantou, e, numa última tentativa aflita, recolheram-se os carros e apenas um policial foi realocado nas sombras do grande portão.
Infeliz homem, não esperava o que estava prestes a encontrar. Essa última tentativa, para a surpresa de todos, surgiu efeito. Foi por volta das 4h30m que ele avistou um homem aproximar-se do local. Adentrou-o com cuidado e atento; o rangido do grande portão de ferro – que geralmente é alto e agonizante – quase não foi percebido. O policial
escondeu-se e então esperou. Nenhum som foi ouvido senão o de terra a ser cuidadosamente cavada por longos minutos; o ruído era mínimo e mostrou-se surpreendente a cautela e habilidade do ladrão. Às 5h15 o suspeito deixou o cemitério pelo mesmo lugar por onde entrou, com um pequeno saco na mão. Nesse momento, ao ver a cena, o agente perguntou-se como poderia caber um corpo humano dentro de tão pouco espaço, como afirmara havia muito o homem cujo vizinho teve a casa explodida.
Então, o policial fez a única coisa que era possível naquele momento, seguiu o homem cuidadosamente pelas ruas e ruelas da cidade de São Miguel. O caminho feito foi totalmente confuso, já que caminharam mais por becos do que por ruas em si. O homem não hesitou em qual caminho tomar, mostrado que o conhecia de cor, algo que se mostrou muito difícil para o policial, que em vão tentava lembrar todos os trajetos estreitos realizados pelo suspeito. Seguindo seu senso de direção e conhecimento da cidade na qual nascera, ele já suspeitava qual seria o local para onde o ladrão de corpos estava indo. Não errou; foi com muito medo e relutância que viu o homem espreitar pela sinuosa rua cujas casas tortas e inclinadas amedrontam todos que ali passam. Ele não havia estado ali desde a explosão, tempos atrás, não só por medo, como também por advertência da própria população e de todos os que moravam ali antes e se mudaram após o hediondo episódio.
A rua, como esperava, estava deserta. Nem mesmo os adolescentes que só vestem preto vadiavam por ali. O silêncio era total; escutou somente os abafados passos do homem quando este se dirigiu à segunda casa à direita, em frente à construção que antes fora grande, mas que agora só se viam os escombros – a casa da vizinha que flagrou as andanças do morto na explosão, mas que, como todos, deixou o local às pressas. Não demoraria muito para o sol aparecer e o policial, relutante, anotou o endereço e dirigiu-se o mais rápido possível à delegacia, enquanto suas pernas tremiam.
O ataque foi planejado logo, para apenas dois dias após a descoberta da localização do suspeito. Tudo se realizou de maneira oculta, pois, devido ao extremo mistério do caso e a falta de conclusões, toda gente do município acharia estranha a grande comoção policial com o objetivo de “apenas prender um ladrão de corpos em sua casa”. A entrada seria forçada e silenciosa, mas, depois do acesso ao interior, não se poupariam esforços e força bruta a fim de resolver o que quer que havia de ser resolvido na casa recôndita. Não se sabia o que poderia ser encontrado lá, e, após a morte do xerife, as escritas enigmáticas encontradas no livro de capa amarela – assim como o roubo deste e a volta dos roubos de cadáveres logo depois – e o líquido roxo espesso encontrado nos
locais de ambos estes acontecimentos, todo cuidado era pouco. De acordo com os relatórios da operação, foram enviados os mesmos policiais que investigaram o porão da casa explodida e encontraram terrores inexplicáveis ali – pelo menos todos que mantiveram suas mentes sãs – para não expor outras pessoas a horrores até mais mórbidos
Para a felicidade das autoridades, ninguém descobriu o ataque mesmo depois de este ter sido realizado. A infelicidade, porém, mostrou-se maior que a felicidade. Nada foi encontrado na casa misteriosa, somente marcas de móveis no térreo e andares superiores, provavelmente utilizados pela antiga moradora e retirados quando ela deixou o local. Nada fora encontrado no porão – as marcas ali, entretanto, não correspondiam a móveis comuns, e não foi possível conjecturar que estruturas ocupavam aqueles lugares – nada senão uma nota escrita à mão, deixada no centro do cômodo. O envelope não foi aberto de imediato – ação realizada mais por efeito do medo do que o de dever ou preservação de provas. O homem já havia deixado a cidade há muito; na manhã seguinte a descoberta de sua moradia, e por rotas ocultas, de acordo com testemunhas.
O novo xerife, após ler – sozinho – a nota, nada mais falou sobre o caso. Para a surpresa de todos, deu-o como “encerrado”. Encontraram-no enforcado em seu pequeno apartamento no dia seguinte. O amaldiçoado papel foi então guardado e nunca mais lido. Eis o que dizia:
“Ah, já é tarde demais. O processo, porém, demorará mais algumas décadas para ser concluído. Tudo o que poderia ser feito nessa cidade de São Miguel foi realizado. Estou em experimentos mais avançados, revelados a mim graças ao livro amarelo. Meu pai pode ter feito algum erro pueril, certamente influenciado pelo meu avô – que de toda maneira tentava dissimular seus objetivos –, mas eu fiz corretamente. Escrevo isso para avisar e tranqüilizar-lhes: nenhum cadáver será roubado do cemitério a partir daqui. Não descreverei no que eu os transformei instantes depois de desenterrá-los, se quiserem saber o porquê dos pequenos sacos; vocês não agüentariam. Estou longe e desejo-lhes sorte com os casos seguintes, enquanto ainda lhes resta tempo, pois as oferendas foram feitas, e o tempo será curto até que meu próprio Deus comande sobre suas terras infestas.”
chato
ResponderExcluirEu esperava mais, prometeu algo interessante e no final acabou decepcionando.
ResponderExcluirMuito chata e cansativa. 6/10
ResponderExcluirQue grande notícia...
ResponderExcluirEu jurava ser uma estória que vi no blog "Oficina dos Horrores".
ResponderExcluirA creepy não é chata, é bem interessante, vocês que são preguiçosos demais pra apreciar um texto longo (e muito bem escrito).
ResponderExcluirEla me lembrou bastante a música "Santanico", do Matanza :v
Achei a história bem interessante, a proposta foi boa. Mas infelizmente algumas pessoas não se dão o trabalho de ler tudo, pelo fato de ser uma história longa. 9/10
ResponderExcluirContinuem postando mais <3
História boa, mas o final foi um pouco decepcionante. Esperei que no final seria dito o que havia dentro da casa, mas não... Tirando isso, gostei bastante.
ResponderExcluirEsses finais abertos tem seu lado poético, mas quebram uma expectativa de uma maneira que não agrada boa parte do público.
ResponderExcluirPodia ser só mais um lindo entardecer em São Miguel,
ResponderExcluirSe eu não soubesse o que acontece quando a lua está no céu.
Mas quem mora por aqui sabe bem como as coisas são,
Sei que essa noite eles virão,
E não vai sobrar nada de ninguém
Pensei a mesma coisa hahahaha
ExcluirSó eu percebi, que foi totalmente inspirado em HP.Lovecraft? A historiam o jeito de escrever.
ResponderExcluirCheguei a achar que era um conto do proprio, apenas com nomes alterados. Me lembrou bastante The Horror at Red Hook.
Se queria imitar Lovecraft, conseguiu, nota 10.
Agora deveria caprichar mais o final. Lovecraft gostava muito de chocar com o final.
Deveria ter achado uma maneira de fazer o mesmo nessa historia.
Primeira vez que comento no blog. Apesar de terem inúmeras creepys boas, essa deixou pontas em aberto. Sabemos que vez ou outra nao dá pra agradar todo mundo mas, nessa creepy, a quantidade de fatos que poderiam ter sido explorados melhor me impressionou. O problema não é o tamanho, tem creepys muito maiores, mas é como eu afirmei: as pontas em aberto. O autor escreve bem e tem uma imaginação bem fértil, acredito que é um texto que se tivesse sido trabalhado em mais de uma parte, seria uma creepy invejável. Obrigado ao site por disponibilizá-la e obrigado ao autor. Minha dica a quem escreve para o site é que revisem e facam uma releitura crítica antes de mandar. Um 7/10 ou 8/10 essa creepy.
ResponderExcluirA creepy é extremamente bem escrita, gostosa de ler. Entretanto deixou muitas pontas soltas, e o final aberto não ajuda muito. No mais, eu gostei. Só que se o autor explorasse mais, com certeza seria mais cativante.
ResponderExcluirPara que serve esse site?
ResponderExcluirPara que serve esse site?
ResponderExcluirBom, não sei se foi essa a intenção do escritor, mas pelo que eu entendi o homem que furtava os corpos do cemitério, planeja construir, com as partes dos corpos, uma espécie de Frankenstein para dominar o mundo (ou, pelo menos, a cidade de São Miguel), assim como seu pai (o homem que morreu na explosão) e o seu avô tentaram. Isso explicaria a explosão que matou o pai do homem, uma provável mistura de elementos químicos para dar vida ao monstrengo que deu errado, e a frase no final da carta, "o tempo será curto até que meu próprio deus (o tal "Frankenstein") comande sobre suas terras infestas". Essa foi minha interpretação. Embora um pouco cansativa, gosto de creepys com finais dúbios que deixam margem à interpretações. Nota 8/10.
ResponderExcluir"...adolescentes que vestem somente preto, pensam haver mais de dois gêneros, e que gostam de ir a lugares proibidos e 'assombrados' para fumar."
ResponderExcluiris this me