Capítulo 7 - Tem Alguém Chorando Atrás da Porta
Tudo o que eu era capaz de ouvir quando abri os olhos era uma perturbadora e enjoativa música, tão alta que chegava a ser ensurdecedor. Era como aquelas músicas de filmes mudos, como os do Charlie Chaplin ou daqueles desenhos clássicos, como o Pica-Pau ou Tom & Jerry. Minha visão embaçada gradativamente foi ficando clara, revelando uma paisagem macabra em movimento. A janela do carro me permitia ver uma cidade em ruínas. O que aconteceu aqui? O que eu estou fazendo aqui? Era como se uma guerra nuclear houvesse acontecido e tivéssemos voltado ao velho oeste.
O carro parou e a cidade fantasma que antes se movimentava parou junto. A janela agora me permitia olhar o que um dia possivelmente foi uma loja de roupas. A vidraçaria destruída da vitrine e a escuridão da loja faziam com que os intactos manequins que estavam sentados em poltronas desgastadas, como uma família assistindo televisão se destacassem. Seus olhos eram sem brilho e suas faces sem expressão, mas de alguma forma, eu conseguia sentir seus olhos presos em mim, carregados de pavor, como se quisessem correr ou me avisar sobre algo. Perdi-me em meus pensamentos e por um segundo, pude ver meu reflexo na janela. Senti meu coração acelerar e minha expressão ficar como a dos manequins quando me dei conta de que não estava sozinho.
Virei-me instintivamente e então pude ver claramente aqueles que me faziam companhia. A música ficou mais intensa. Haviam dois homens mascarados sentados ao meu lado no banco de trás, um no banco do motorista e outro no carona. Todos me olhavam fixamente, com uma atenção desinteressada, como severos e entediados jurados de um reality esperando o candidato assustado fazer o que estava ali para fazer. Sutilmente, levei lentamente uma de minhas trêmulas mãos à maçaneta da porta do carro, com os olhos presos no homem ao meu lado. Puxei-a bem devagar para que não percebessem minha tentativa de fuga, mas a porta não abriu. Claro! É claro que a porta estaria travada, seu idiota. Todos no carro começaram a rir, exceto o homem ao meu lado, que ergueu o indicador e o balançou de um lado para o outro como quem diz “Não”. Era apavorante assisti-los. Os homens que riam não emitiam som algum, eu não conseguia ouvi-los. Eles se contorciam e reviravam seus olhos que lacrimejavam de prazer, como se estivessem possuídos e ao mesmo tempo tendo um orgasmo. Foi então que percebi que nada mais emitia som, nem mesmo eu. Eu já não conseguia ouvir mais nada. Nada além daquela maldita música que deixava tudo ainda mais perturbador.
- EU QUERO SAIR DAQUI! – Gritei, ou pelo menos tentei; forçando a porta na tentativa de abri-la.
- Ninguém vai te ouvir, garoto! – Pude ouvir meu inconsciente dizer.
Os homens continuavam a rir. O homem ao meu lado continuava a balançar o indicador. A música continuava a tocar. Uma onda de desespero caiu sob mim.
– POR FAVOR, EU QUERO SAIR DAQUI! EU QUERO SAIR! EU QUERO SAIR! EU QUERO SAIR!
Quando o desespero tomou conta de cada célula do meu corpo, gerando uma descarga de adrenalina, nada além de abrir aquela maldita porta importava. De tanto força-la, ela finalmente cedeu, mas não como se tivesse quebrado, mas sim como se tivessem me permitido sair. A porta abriu e eu dei de cara no chão de terra com as mãos agarradas a maçaneta. Recompus-me imediatamente e bati a porta com toda a força que eu tinha para ganhar um tempo e correr dos homens. Mas, antes que eu me levantasse, o som dos homens se espremendo contra a janela do carro prendeu minha atenção neles. A graça parecia ter chegado ao fim. Seus olhos transmitiam seriedade enquanto me observavam rastejar desesperadamente para longe. Um deles, que parecia ser o homem que antes estava ao meu lado, bafejou na janela e com o dedo indicador escreveu no embaçado do vidro: “Corra”. A música parecia ter chego ao seu ápice.
Levantei-me imediatamente e corri, desajeitadamente aos tropeços, em uma direção aleatória, sem nenhum rumo aparente. Uma nova música se iniciou ao longe. Espera ai, espera ai, Matt... Que merda é essa? Algo estranho havia acontecido. A loja, os manequins, a cidade, o chão de terra, o carro, os homens... Tudo... Tudo havia desaparecido. Eu já não estava mais em uma cidade em ruínas, estava em um lugar totalmente diferente agora. Um lugar no qual a escuridão tomava conta. Olhei em volta, mas não consegui ver nada, nenhum sinal, nenhuma silhueta, apenas escuridão total. A música foi ficando mais alta. “TAM” a música fez e algo retangular surgiu a minha frente, emitindo uma forte luz branca. “TAM, TAM, TAM, TAM, TAM”. A sala toda se acendeu. Meu corpo estremeceu. Era uma enorme sala preta repleta de espelhos. A princípio, todos eles refletiam a mim, como câmeras de segurança de uma loja no monitor de um caixa, mas logo os espelhos passaram a mostrar como as enormes telas da Times Square, os homens mascarados. Eles riam loucamente, como riam no carro. A sensação de estar encurralado e incapaz, somados a incerteza do fim de tudo o que estava acontecendo fizeram com que eu chegasse ao meu extremo de pavor. Quando me dei conta, meu rosto estava encharcado de lágrimas e o meu corpo correndo desesperadamente sem um rumo aparente. Ninguém podia me ouvir. Eu não podia me ouvir. Não tinha mais o controle do meu corpo. Os olhos lacrimejantes e carregados de loucura dos homens me perseguiam.
“TAM”, “TAM”, “TAM”. Tudo se apagou. Um silêncio surgiu. Meu corpo parou e meus olhos se prenderam à escuridão atrás de mim, buscando nela alguma razão, algum movimento, qualquer coisa que fosse para voltar a correr. “TAM”... “TAM”... “TAM”... A música retornou mais intensa, como um ziguezague sonoro. O que antes eram espelhos, agora se transformavam em grandes portas brancas de madeira conforme o ritmo da música. “TAM”... “TAM”... “TAM”... Silêncio e escuridão. “TAM”... “TAM”... “TAM”... As portas se abriram trazendo uma fraca luz ao corredor de portas. “TAM”... “TAM”... “TAM”... Os homens saíram delas. “TAM, “TAM”, TAM”. As luzes começaram a piscar. “TAM, “TAM”, TAM”. Agora, cada um dos homens carregava em uma das mãos uma diferente arma branca letal. “TAM, “TAM”, TAM”. Todos eles começaram a correr em minha direção. Uma sinfonia macabra se iniciou. Eu voltei a correr.
Homens mascarados correndo atrás de mim, homens mascarados saindo de dentro de portas a minha frente. Eles apenas esperam que eu passe por eles para se juntarem a multidão enfurecida. É um comportamento estranho, já poderiam ter me pego, mas parece que não é o que eles querem. Estou confuso. Já não sinto mais minhas pernas, não sinto o controle sobre nenhum músculo. Não consigo me imaginar parando de correr, é como se eu tivesse perdido essa habilidade. Os homens não parecem se cansar.
Depois de um tempo, tudo o que estava acontecendo parecia ter entrado em um loop infinito. Até que finalmente o corredor de portas parecia estar chegando ao seu fim. As luzes foram sendo deixadas para trás, dando lugar novamente a escuridão total. Eu continuo a correr, mesmo contra a escuridão. Olho para trás e não consigo mais ver os homens atrás de mim. Toda a luz se foi... Talvez isso signifique o meu fim.
Meu corpo já não aguentava mais tudo aquilo que estava acontecendo. Minhas pernas pararam de funcionar por um momento, fazendo com que eu tropeçasse e mergulhasse na misteriosa escuridão. Vamos, Matt! Levanta! Usei toda a força que me restava para me arrastar no chão e continuar fugindo. Meus cotovelos ardiam, minhas pernas tremiam. Sinto cada centímetro do meu corpo queimar. Meu coração parece querer arrombar minha caixa torácica. Ouço o som de passos frenéticos ao longe, como os de um exército se aproximando. Uns estalos de eletricidade na escuridão acima de mim revelam duas telas. Uma no canto esquerdo e outra no canto direito. Ambas mostram uma seta brilhosa, como aquelas em letreiros de casinos em Las Vegas. Elas dizem: “Siga em frente”. As setas apontam para um minúsculo feixe de luz a minha frente que há dois segundos não estava ali. Os passos atrás de mim ficam cada vez mais altos. Não tenho outra escolha... Eu preciso continuar. Respiro fundo e me ponho de pé, como se estivesse com uma tonelada em minhas costas. Ofegante, me apoio em meus joelhos. Prendo meus olhos no feixe de luz e me arrasto como um zumbi em direção a ele.
O pequeno feixe de luz se torna maior conforme caminho em sua direção. As setas parecem se mover junto comigo, talvez, como um lembrete de que não devo parar. Os passos atrás de mim já estão tão altos que parecem estar dentro da minha cabeça. Olho para trás e agora consigo ver os homens atrás de mim, como uma horda de assassinos há cinco metros de distância. Eles não estavam mais correndo, estavam andando. Era como se estivessem fazendo algum jogo comigo. Vamos, Matt! Tá quase lá... Vamos! Volto meus olhos para frente, mas não havia mais para onde ir. Meu corpo parou imediatamente antes que pudesse dar de cara com o que estava a minha frente. O pequeno feixe de luz havia se tornado uma porta. Uma grande porta branca de madeira que emitia uma forte luz, como as que antes iluminavam meu caminho e cuspiam homens mascarados. As setas agora diziam “Entre”. Não pensei duas vezes. Abri a porta rapidamente e entrei. Quando virei-me para fecha-la, pude ver a multidão que vinha correndo desesperadamente com machadinhas e facões empunhados em minha direção. Bati a porta com toda a força que o pavor podia me proporcionar e me afastei com os olhos atentos a ela. Pude ouvir o alto som da bruta tentativa dos homens de derrubar a porta.
Tolice a minha, não? Ficar aqui parado, observando, esperando os homens que querem me matar derrubar a única coisa que me garante algum tempo ou uma chance de sobreviver. Eu não sei se é a ansiedade junto da curiosidade de ver o que acontece depois ou se é simplesmente o meu inconsciente pronto para morrer. Eu sei que quando essa porta se rachar, eu vou correr. Mas por que não correr agora? Por que o meu corpo não me ajuda?
- Vai ficar tudo bem, filho! – Ouvi uma voz familiar ecoar de longe.
Olhei para trás e de repente percebi algo que não tinha percebido antes. Não tinha mais música tocando, não tinha mais homens batendo na porta. Eu não estava mais na escuridão... Eu estava na minha antiga casa agora.
- Relaxa, tudo vai acabar logo! – A voz continuou a dizer.
A porta que antes me separava dos homens mascarados havia se tornado a velha porta marrom com adesivos de caderno do meu antigo quarto. Eu estava no corredor, que me dava acesso ao banheiro e ao quarto do meu pai. A nostalgia era imensa, o sentimento indescritível. Tenho tantas razões para odiar esse lugar, mas ainda sim, me sinto tão bem aqui. É um sonho? Comecei a caminhar pelo corredor, analisando cada detalhe. As fotografias penduradas na parede, a decoração, o brilhante chão de madeira, o tapete. Cara, eu consigo sentir tudo... Tudo parece tão real... Tudo está exatamente como me lembro! Eu havia entrado em uma espécie de transe. Uma vontade enorme de explorar cada centímetro da casa havia surgido em mim. No entanto, toda a magia se foi quando me aproximei o bastante do banheiro. A luz estava acesa. No fundo, eu sabia o que estava acontecendo. A luz que irradiava por de baixo da porta iluminava o pequeno riacho vermelho que corria do banheiro e descia as escadas. Deixei escapar um suspiro de decepção. Fiquei de frente para a porta, pensando se deveria entrar ou não. O pequeno riacho agora fazia curvas em meus pés. De repente, senti o chão tremer levemente. As paredes começaram a estalar, como se tivesse algo correndo por dentro delas e, então, uma placa, tão brilhosa quanto as setas da escuridão, surgiu em cima da porta. Ela dizia: “Entre”. Resolvi entrar no jogo e mais uma vez obedecer. Levei com receio a minha mão até a maçaneta. Segurei-a, fechei os olhos, respirei fundo e a girei.
Havia um homem sentado em uma cadeira de madeira, de frente para a banheira que transbordava sangue. O homem parecia concentrado naquilo que estava dentro da banheira. Antes que eu pudesse me aproximar ou dizer algo, o som da porta batendo atrás de mim fez com que ele notasse a minha presença. O homem olhou para trás, desinteressado; levantou da cadeira e andou até a mim. Eu já não estava mais entendendo o que estava acontecendo. Ele não era meu pai, mas seu rosto era familiar, eu já vi esse homem antes. Pele branca e cheia de rugas, barba grisalha, cabeça raspada e calva. Seus olhos eram negros e seu corpo medianamente musculoso, devia ter seus quarenta e seis anos. O homem usava uma camisa branca, calça de moletom e seus pés estavam descalços. Ele parou a minha frente, com um sorriso malicioso, quase maligno, enquanto pôs uma das mãos em meus ombros e passou a me analisar, como se já tivesse me visto antes há muito tempo. Trocamos olhares por alguns segundos e então ele simplesmente me deu dois tapas amigáveis no rosto e se retirou sem dizer nada. Olhei pasmo para o homem enquanto ele abria a porta e desaparecia com o fechar dela. Devo ter ficado ali, olhando fixamente para a porta, pensando em tudo o que havia acabado de acontecer por uns dez segundos antes de voltar minha atenção para onde o homem antes estava sentado. Senti um profundo aperto em meu peito. Não era para banheira que ele estava olhando. Aproximei-me, não havia um corpo dentro dela. O sangue que corrompia a água escorria das recém-escritas palavras na parede acima da banheira.
Me perdoe, Ron.
O que tá acontecendo? Quem era aquele homem? Tantas perguntas vieram à mente, mas não tive tempo para refletir sobre elas. A maldita música que antes tocava na cidade voltou a tocar, tão ensurdecedora quanto antes. Pude ouvir o violento som da porta atrás de mim sendo destruída. Virei-me para trás em um salto. A forma como tudo estava acontecendo rápido, fez com que eu sentisse um desespero que nunca havia sentido antes. A sensação de estar encurralado em um maldito beco sem saída a beira da morte é apavorante a outro nível. Meu corpo congelou e tudo o que fui capaz de fazer enquanto os homens mascarados se aproximavam de mim, movimentando-se como macacos e gargalhando como se tivessem vencido o próprio jogo, foi chorar desesperadamente e gritar, suplicando como se fosse mesmo fazer alguma diferença. Mas, eu já não podia mais me ouvir, ninguém mais podia. O homem mais próximo de mim levou sua machadinha ao alto e parecia ter posto toda a sua força no movimento em meia-lua que fez com a machadinha em direção ao meu rosto. Meus olhos se fecharam automaticamente no ultimo segundo.
- Não! – Deixei inconscientemente escapar como um suspiro, abrindo novamente os olhos após minhas mãos involuntariamente estapearem o meu rosto em o que me pareceu uma tentativa de protegê-lo da porra de uma machadinha afiada. Genial!
- Tá tudo bem, filho? – Ouvi uma voz familiar perguntar ao longe.
Olhei em volta, os olhos entre abertos. A claridade da TV não me permitia enxergar mais do que cílios e um fundo embaçado. Eu estava deitado no que parecia ser um sofá. Sentei-me e busquei por um canto escuro para encarar até que a minha visão voltasse ao normal.
- Ei, Matt? – A voz havia ficado mais clara para mim, calma e grave, era o tio Lincoln. – Tá tudo bem? Fala comigo...
- Oi, tio... – Respondi, sonolento, com os olhos fixos no pouco de escuridão que cobria meus pés. – Tô legal, foi só um... Você sabe... Pesadelo e tudo mais...
- Ah, que bom, filho... – Tio Lincoln sorriu. Olhei para ele e sorri também. Mas, por alguma razão, seu sorriso parecia falso e triste. Seus olhos estavam avermelhados e úmidos, como se tivesse chorado por horas. Havia também uma garrafa de uísque quase vazia ao lado de um copo de vidro cheio pela metade em cima da mesinha à frente do sofá em que ele estava sentado. – Você quase me matou de susto!
- Mas e o senhor, tio? – Perguntei, analisando-o. – Você tá bem?
- Tô sim, filho! – Ele forçou um sorriso. – É só esquecermos a parte que acabei de assistir aquele filme sobre... Aquele cachorro, lembra? Que perde o dono e depois fica esperando ele por um tempão na saída do trabalho... Sabe qual estou falando?
- Sim, claro!... – Sorri. – O filme é bem triste mesmo...
- Nem me fala! Vou te contar um segredo, mas não conta para ninguém, muito menos para sua tia... – Tio Lincoln, passou a sussurrar como se alguém estivesse nos observando. – Essa merda me fez chorar igual uma garotinha! – Ele deu uma rápida e baixa gargalhada. Seu hálito estava carregado de álcool e isso me deixou bastante preocupado com ele. Normalmente, o arsenal de bebidas do tio Lincoln servia apenas de enfeite de móvel. Em todos esse anos, nunca o vi tomar se quer uma gota.
- Seu segredo tá seguro comigo! – Sorri e ele também, um sorriso um pouco mais verdadeiro agora.
- Bom, acho vou subir e tentar dormir um pouco! – Tio Lincoln se levantou do sofá e me deu um amigável tapinha no ombro. – Ah, acho melhor você ir dormir no seu quarto, esse sofá não me parece o lugar mais confortável do mundo para se dormir.
- Tá bom, pai! – Disse, lançando um sorriso a ele. Pude sentir um sincero sorriso se abrir em seu rosto antes que começasse a subir as escadas. Essa tinha sido a primeira vez que eu havia o chamado de pai, e mesmo que tenha sido só de brincadeira, parecia ter tido um efeito positivo sobre ele.
Peguei o controle da TV e deitei-me novamente no sofá. Fui passando os canais, não havia nada de interessante passando, então deixei no Cartoon Network mesmo, que era o meu canal favorito, apesar da minha idade. Deixei os comerciais aleatórios que estavam passando como plano de fundo e tateei os bolsos procurando pelo meu celular. Eram três e quarenta e cinco da manhã. Nenhuma mensagem, nadinha. Não me lembro em que momento do dia me deitei aqui no sofá e morri até às três da manhã, nem mesmo de qual foi a última coisa que fiz antes de dormir, mas sabe quando você tem a sensação de que desapareceu por um milênio e quando olha em volta percebe que ninguém sentiu a sua falta? Pode parecer meio dramático, mas é assim que estou me sentindo. Larguei o telefone de lado e voltei a minha atenção para a TV. Coincidência ou não, estava passando Tom e Jerry.
[...]
Eram seis horas da manhã quando o relógio despertou. Levantei-me da cama e fui em direção ao banheiro. Antes de chegar totalmente perto da porta, pude ouvir alguns ruídos estranhos vindo do lado de dentro. Aproximei-me lentamente, encostei o ouvido na porta e foquei toda a minha atenção no ruído. Havia alguém chorando atrás da porta e considerando que a tia Cassie estava trabalhando a esse hora, só podia ser o tio Lincoln. Ouvi o som da torneira sendo ligada e disparei para as escadas que levavam para o andar de baixo, onde também havia um banheiro.
Escovei os dentes, tomei um banho e comecei a me arrumar para a escola. Depois de estar pronto, fui até a cozinha, abri a geladeira, peguei uma caixa de leite e um pedaço de bolo que havia sobrado da festa surpresa e me sentei na mesa de jantar. Fiquei sentando lá, alternando entre o telefone e o nada por uns cinco minutos antes do Dave mandar uma mensagem.
@Dave: O Senhor supremo das Trevas
- Sinto muito informar a todos vocês, mas hoje, meus caros amiguinhos, não vai ter aula! Sejam eternamente gratos por eu ter acordado cedo, tão cedo ao ponto de descobrir isso antes que vocês pudessem pensar em acordar. Tenham um ótimo dia de faxineiras e escravas hoje! Beijo na bunda!
@Math(Você)
- Que droga, me arrumei atoa!
@Dave: O Senhor supremo das Trevas
- Que peninha! Huehuehueheuhe
- Parece que alguém não vai ver a pitanguinha hoje! Não morra, jovem!
- Dave estará sempre aqui para consolar seu solitário coração!
@Math(Você)
- Será mesmo que não vou ver? u.u
@Dave: O Senhor supremo das Trevas
- É um mistério!
@Math(Você)
- Vou voltar a dormir! Tchauzinho, “senhor das trevas”...
Joguei o telefone em cima da mesa e fui até o sofá. Sentei-me, peguei o controle da TV e liguei no noticiário. A essa hora da manhã não costuma passar nada muito interessante, a TV se resume em programas rurais e de culinária. Ouvi o som do tio Lincoln descendo as escadas enquanto um papagaio reclamava do quanto estava com fome na TV.
- Sério? – Tio Lincoln perguntou, com um sorriso debochado enquanto se sentava ao meu lado.
- Sério! – Respondi, lançando um sorriso e revirando os olhos.
- Quer carona para escola? – Perguntou, um tanto desinteressado.
- O Dave disse que não vai ter aula hoje... – Respondi, como quem espera que não pensem que estou mentindo. – E o senhor? Vai trabalhar?
- Não, não... – Respondeu, sem me questionar a razão de não ter aula. – Pedi que adiantassem as minhas férias para poder ficar com a sua tia durante a gravidez.
- Entendo... – Balancei a cabeça positivamente e voltei minha atenção para o papagaio, que agora estava satisfeito. Enquanto isso, a apresentadora do programa estava passando por debaixo de uma mesa, revirando os olhos como se estivesse tendo um orgasmo pela primeira vez.
- Preciso ir comprar umas coisas para o quarto da Caroline, quer ir comigo? – Tio Lincoln perguntou, direcionando seus olhos a mim. Parecia um pouco mais interessado do que quando me perguntou sobre a escola.
- Claro, quero sim! – Sorri para ele.
- Certo! – Disse o tio Lincoln. – Vou só pegar as chaves do carro e ai nós metemos o pé!
- Beleza! – Respondi, tentando demonstrar certo entusiasmo. Desliguei a TV e fui para o lado de fora da casa esperar o tio Lincoln.
Recostei-me no carro do tio Lincoln que estava estacionado em frente a casa e passei a observar as pessoas que estavam dentro do meu campo de visão. Haviam duas pessoas correndo, um homem e uma mulher. Um cara saradão passeando com seus grandes e assustadores cachorros. Um senhor de terno, gravata e toda aquela vestimenta clichê de alguém que trabalha em um escritório, aparentemente indo trabalhar. Duas menininhas e um garotinho indo a escola acompanhados de uma moça relativamente atraente. Tinha o carteiro, entregando cartas de casa em casa e, por fim, uns idosos do outro lado da rua, sentados em suas cadeiras de balanço, parecendo apenas observar a graça e existência da vida. Honestamente, não há muito mais a se dizer, era só mais uma manhã comum na Rua 708.
- Vamos? – Tio Lincoln perguntou, trancando a porta da casa e destravando as do carro com o controle que ficava preso as chaves.
- Vamos! – Assenti, entrando no carro pela porta do carona.
Chave na ignição, motor ligado, a viagem havia começado e junto com ela um silêncio mega embaraçoso. Olhei para um lado, olhei para o outro, encostei a cabeça no acolchoamento do banco, desencostei, olhei meu celular, guardei meu celular. É tão agoniante o momento em que você percebe que não tem a menor intimidade com as pessoas que moram com você. Vamos, Matt! Diga alguma coisa!
- Posso ligar o rádio, tio? – Perguntei, como quem quer quebrar o silêncio.
- Claro, filho! Pode sim! – Tio Lincoln respondeu, enquanto pegava uma grana que estava guardada no para-sol do carro, quase como se fosse uma grana super secreta. Havia umas fotos coladas ali também, fotos que eu nunca havia visto antes. Tinha uma dele com a tia Cassie na formatura do ensino médio dos dois; dele com o meu pai e uma moça, no que parecia ser uma festa de natal e outras da época que ele estava na faculdade. Olho para foto dele com meu pai e me pergunto o que fez com que eles se afastassem tanto, pareciam muito próximos.
Liguei o rádio e fui passando as estações, buscando por algo que complementasse o meu desconforto e me fizesse sentir como em um clipe musical. Parei quando ouvi Pumped up Kicks do Foster The People e a deixei tocar.
- Essa é boa! – Tio Lincoln comentou, aumentou o som e passou a batucar o volante no ritmo da música.
- Com certeza! – Sorri e comecei a batucar junto.
- All the other kids with the pumped up kicks… - Tio Lincoln começou a cantar. Não consegui segurar a gargalhada com as caras e bocas que ele fazia. – You'd better run, better run, out run my gun! – Ele olhou para mim e começou a gargalhar também. – Vamos, garoto! Canta junto!
- Não mesmo! – Eu não conseguia parar de rir!
- All the other kids with the pumped up kicks! – Tio Lincoln continuou a cantar. Suas caretas eram impagáveis. – You'd better run, better run, faster than my bullet! All the other... Ah, que merda, cara! Mas já? – Suas caretas se tornaram uma expressão cômica de profunda decepção quando percebeu que aquele era o último refrão e a música havia chegado ao fim. – Amo essa música!
- Deu pra notar – Assenti, voltando a gargalhar com os flashes de sua performance, que estavam em retrospectiva em minha mente como uma espécie de “melhores momentos do tio Lincoln”.
- Ah, qual é, garoto! – Tio Lincoln resmungou, forçando indignação. – Se você nunca cantou feito um idiota na frente de alguém a sua vida ainda não valeu a pena!
- Claro! – Gargalhei. – Então quer dizer que o senhor, com essa cara e esse bigodão curte um karaokê e tudo o mais?
- Claro que não, também não é pra tanto! – Tio Lincoln sorriu. – Essa é a primeira vez que eu canto na frente de alguém, na verdade...
- Ah, sim! Agradeço pela honra! – Devolvi o sorriso. – E olha só como isso é ótimo! Isso significa que a sua vida valeu a pena!
- Eu espero que sim... – Seu sorriso descontraído havia imediatamente se tornado um sorriso reflexivo. Tem algo errado com o tio Lincoln, mas talvez ainda seja cedo e inconveniente demais para perguntar.
[...]
Entramos em várias lojas, andamos por horas e horas em vários corredores relacionados a crianças em geral, mas no fim de tudo, o tio Lincoln não levou nada muito incrível. Encomendou um berço e voltamos pra casa com o banco de trás cheio de fraldas. Me pergunto se não é um pouco cedo para isso.
- Vocês já tem certeza se é menina mesmo? – Perguntei
- Na verdade, não... – Ele sorriu como quem fosse explicar algo que soaria idiota. – Sua tia acha que já que temos você, devemos concentrar nossos pensamentos em uma garotinha agora. Ela acredita que se fizermos isso, o corpo dela vai entender o recado. Você sabe que eu não sou muito ligado nessas coisas, tanto é que comprei um berço sem nenhum adereço muito sugestivo ao sexo da criança, mas ela tem uma explicação mais convincente sobre isso e eu não sou louco de contrariar uma mulher grávida. – Gargalhou.
- Entendi – Respondi, segurando o riso. – Gosto da ideia de ter uma irmãzinha. Caroline é um bom nome, a propósito. Foi você quem escolheu?
- Foi sua tia, como já deve ter previsto. – Respondeu, com um sorriso que já antecipa que ele não teve nenhuma influência em nada que foi resolvido para a pequena Caroline. – Mais uma vez, sua tia disse que toda Caroline que ela conhece é incrivelmente linda, então... Você já deve imaginar o resto...
- Sim! – Gargalhei. – Como está se sentindo com isso? – Perguntei – Eu sei que você me considera um filho e tudo o mais, mas qual é a sensação de ter um filho de verdade?
- É animador na mesma medida em que é assustador, entende? – Respondeu, pensativo. – Fico me perguntando se vou ser um bom pai, se estou pronto para isso. A razão de sua tia e eu nunca termos tentado foi o fato de acharmos que nunca seriamos bons pais. Sempre fomos bem aventureiros e não queríamos abrir mão daquilo, nem por no mundo pessoas como nós ou que acabassem sofrendo por ter pais como nós. Consegue entender o que estou dizendo?
- Acho que sim... – Assenti. – Mas, o que mudou? – Perguntei.
- Ficamos velhos – Gargalhou. – E teve você, é claro. Você apareceu em nossas vidas e mudou tudo de forma que fez com que nós considerássemos ter um “novo Matt”, do zero. Mas, ainda assim, Caroline não foi algo que planejamos totalmente, ela só aconteceu. Falamos sobre em uma noite e alguns meses depois sua tia me deu a notícia.
- Entendo... – Comecei a dizer. – Não acho que deveriam se preocupar com isso. Vocês são ótimos comigo, são pais incríveis! A pequena Caroline ou, sei lá... O “Matt, do zero” tem muita sorte por terem vocês como pais... E eu também! – Sorri.
- Vai com calma, garoto! – Tio Lincoln deixou escapar um sorriso. Seus olhos cintilavam. – Não vai querer me fazer chorar, vai?
- Talvez... – Sorri e o que antes era um pequeno sorriso de canto de boca no rosto do tio Lincoln se estendeu a um sorriso de orelha a orelha.
Um silêncio se iniciou a partir dali, mas já não era mais tão embaraçoso. Éramos apenas “pai” e “filho” curtindo uma boa música em uma viagem de volta para casa.
“… Son my only son…”.
“… Filho, meu único filho…”.
“...I will never run you away…”
“... Eu nunca vou fugir para longe de você...”.
[...]
O intenso sol do meio-dia estava acima da nossa casa aquele dia. Ele brilhava forte dando um curioso contraste na casa e no gramado.
- Bem-vindo ao forno! – Tio Lincoln disse, estacionando o carro em frente ao portão da garagem onde sempre costumava estacionar. Sempre achei curioso o fato de termos uma garagem e o carro ficar do lado de fora.
- Olha só o cara que tem um ar-condicionado reclamando do calor... – Disse ao vento. – Imagina só se ele tivesse que dormir em um quarto com um ventilador de teto vagabundo
- Ah, não seja tão dramático, garoto! – Gargalhou, tirando a chave da ignição e saindo do carro.
- Enquanto eu estiver dormindo em um forno aquecido pelo cara lá de baixo, eu serei o rei do drama! – Disse, forçando uma cara feia.
- O cara lá de baixo? Sério? – Tio Lincoln soltou uma gargalhada de deboche enquanto procurava as chaves da porta da frente no seu chaveiro cheio de chaves. – Essa é nova para mim...
- Sabe o que não é novo pra mim? O calor, tio Lincoln! – Eu disse, tão dramático quanto um ator de novela mexicana. – Ah, o calor! Meu velho e inconveniente amigo...
- Meu deus, garoto... – Tio Lincoln revirou os olhos e entrou em casa.
- Que isso, ateu? – Disse, fazendo a cara de safadão do Dave. Tio Lincoln lançou um olhar de como quem diz “Sério?” e foi até a geladeira. – Quer saber? Eu juro que paro de perturbar com o lance do calor se me fizer um grande favor!
- Lá vem... – Tio Lincoln fechou a geladeira e me lançou um cômico olhar cerrado. – Manda o papo, garoto!
- Eu preciso que me responda uma coisa... – Comecei – Talvez várias...
- Tá legal, garoto... – Ele havia entrado no modo “sério”; parecia curioso. – Sem enrolação, manda o papo.
- Promete que vai responder tudo? Sem mentiras? – Perguntei, tentando não deixar as coisas sérias demais, quebrar a tensão que parecia ter se iniciado.
- Prometo... – Respondeu, cruzando os braços e recostando na geladeira. Sua voz havia ficado mais grave de tão sério. Respirei fundo.
- Hoje eu reparei uma coisa que nunca havia reparado antes... – Comecei a formular a minha primeira pergunta. – Vi que tem uma foto do meu pai no seu carro. No começo, quando passei a morar com você e a tia Cassie, confesso que achei estranho não ter nenhuma foto de vocês dois, dá família ou sei lá, uma foto só dele aqui em casa, mas com o tempo eu meio que havia entendido o porquê, ou pelo menos, acho que entendi. Meu pai me disse uma vez algo sobre vocês terem sido próximos em algum momento da vida e isso me veio em mente quando vi a foto. Mas... Não é dele que eu quero falar, quer dizer... Pelo menos, não nessa primeira pergunta. – Sorri, totalmente inseguro e começando a me arrepender de ter tocado no assunto. – Tô passando por um momento da minha vida em que muitas dúvidas que eu tinha no passado acabaram se tornando o centro das atenções da minha mente. Eu sei... Demorou um tempão pra perguntar, mas... Vi que tinha uma mulher na foto com você e o meu pai... E isso me fez pensar que talvez ou com certeza, você tivesse conhecido a minha mãe. Você a conheceu?