25/10/2016

O chão é de lava

ATENÇÃO +18 ANOS! NÃO RECOMENDADO PARA MENORES E/OU PESSOAS SENSÍVEIS POIS POSSUI CONTEÚDO DE CUNHO ADULTO E/OU CHOCANTE! 

Quando eu era criança, eu costumava brincar de “O chão é de lava” com meu irmão Greg. Eu não gostava muito, Greg era muito mais atlético que eu. Mais velho também. Ele dava graciosos passos e saltos maravilhosos, muito além do que meu corpo rechonchudo conseguia fazer. Quando eu caía e perdia o jogo ele se regozijava e então nós íamos jogar outra coisa.
Meu vizinho, Sr. Calyton, sempre nos observava do outro lado da cerca que separava nossos quintais. Mamãe dizia para a gente ficar longe dele, mas ela não podia impedi-lo de nos observar enquanto brincávamos. Ele parecia inofensivo, apenas um pouco estranho. Nós não dávamos muita atenção a ele. A tarde inteira, ele observava a gente apostar corridas ou jogar bola por aí, somente deixando seu posto atrás da cerca se ele queria buscar mais bebida. De vez em quando Greg dizia “Olá Sr. Clayton” e dava um exagerado aceno. Sr. Clayton apenas sorria estranhamente e olhava para o chão. Para ser honesto, eu me sentia meio mal pelo homem.
Numa tarde do fim de junho, logo depois que nós voltamos da escola e um dia depois do aniversário de 15 anos de Greg, ele e eu estávamos brincando de luta na lá fora. Nós fazíamos aquilo frequentemente. Mesmo ele sendo mais velho e mais alto, por causa do meu peso extra, nós tínhamos mais ou menos o mesmo peso. Ele ainda era muito mais forte e ágil, então ele sempre vencia. Depois de outra vitória do Greg, eu estava no chão enquanto ele se vangloriava. Enquanto eu esperava ele me deixar em paz, eu olhei de relance para o lado. Eu podia ver o Sr. Clayton observando a gente, com muita atenção. Seu ombro direito estava se movendo pra trás e pra frente. Mesmo tendo só 11 anos eu tinha uma boa ideia do que ele estava fazendo.
 “Vamos para dentro”, eu disse para o Greg. O tom da minha voz estava bem diferente do que Greg estava acostumado, então ele percebeu que tinha algo errado e deixou que eu me levantasse. Eu não contei para ele o que eu tinha visto.
Sr. Clayton não estava em seu quintal alguns dias depois daquele episódio. Enquanto eu estava relutante em sair para brincar lá fora, eu continuava dizendo a mim mesmo que o cara era inofensivo. Não somente isso, mas Greg com certeza poderia dar uma surra nele caso ele tentasse qualquer coisa. Então as coisas voltaram a normalidade, com o Sr. Clayton reassumindo sua posição atrás da cerca, mais tarde naquela semana.
Depois do final de semana do 4 de julho, Greg estava com alguns dos seus amigos em casa. Dion e seu irmão Rob. Dion era legal, mas Rob era um idiota completo. Um valentão. Eu odiava quando ele nos visitava porque Greg sentia que precisava impressionar ele. E era isso que estava acontecendo. Nós quatro subimos na casa da arvore em ruinas que já estava na propriedade antes de a gente se mudar pra cá. A coisa estava destruída. Estavam faltando algumas tabuas no chão e incontáveis aranhas tinham feito do lugar sua casa. Ainda assim, por alguma razão, lá estávamos nós.
Rob estava se gabando sobre ter feito algo com alguma garota no final de semana. Greg e Dion estavam rindo enquanto eu estava lá sentado, entediado pensando em outras coisas. Algum deles teve a brilhante ideia de fazer uma competição de levantamento de peso usando um dos galhos que estavam acima da nossa cabeça. Rob tirou sua camisa para mostrar seu corpo musculoso, incitando os outros dois para fazerem o mesmo. Todos eles fizeram seus levantamentos, previsivelmente Rob venceu. Depois de zoar eles por serem tão fracos, ele voltou sua atenção a mim.
“Vá em frente, “ ele zombou. “É a sua vez, “
Eu disse a ele que não queria. Os outros começaram a me provocar até eu desistir e tentar fazer o levantamento. Obviamente eu não consegui. Todos eles riram.
 “Vamos lá, tire sua camisa! ” Disse Rob rindo. Eu fiz, com alguma relutância. Quando Dion e Rob viram meu corpo rechonchudo, eles começaram a dar risadinhas. “Tente de novo! “ Rob gritou. Enquanto eu tentava levantar o galho, eu senti uma dor explodindo nas minhas costas. Rob tinha me dado um tapa o mais forte que conseguia. Eu gritei em protesto, mas ele continuou batendo nas minhas costas e no meu peito enquanto Dion e Greg olhavam sem protestar. Assim que Rob parou, ele disse, “agora olha essas marcas de mão aparecerem. “
Eles assistiram. As marcas surgiram, minha pele estava ficando vermelha enquanto eles riam maniacamente.
 “Hey Steve, “ disse Greg. “O chão é de lava. “
Eu disse a ele que eu não queria brincar e comecei a descer da árvore. Rob bloqueou a saída. “Você vai brincar, ” ele me informou.
Eu fui ordenado a pular sobre o buraco no meio das tabuas. Não tinha jeito que eu ia conseguir fazer aquilo. Eu sabia das minhas capacidades, e aquilo não estava dentro delas. Os três garotos gritavam para que eu fizesse aquilo. Eu fiquei parado no lugar. Foi então que meu irmão começou a me bater. Não foram tapas. Foram socos. Ele bateu nas minhas costas e chegou perto do meu ouvido e disse, “apenas faça, seu bebe maldito. ”
Enquanto eu tentei me manter em pé, eu comecei a chorar. Depois de alguns minutos, Greg ficou entediado de bater em mim. Eu me enrolei num canto enquanto Rob voltou ao assunto da garota que ele esteve no final de semana. Enquanto eles riam e perguntavam típicas perguntas obscenas, eu soluçava pateticamente. Rob olhou para seu relógio e disse que era muito mais tarde que ele achava. Ele e seu irmão desceram pela escada que rangia e foram embora.
Greg seguiu eles, me deixando sozinho na casa da arvore. Eu fiquei lá por uma hora, fervendo de raiva. Ainda faltavam umas 3 horas antes de mamãe voltar do trabalho. Se eu tivesse que esperar lá até ela voltar, que fosse. Eu não queria ver meu irmão.
Sr. Clayton ficou encarando a entrada da casa da arvore enquanto eu sentei com as minhas pernas balançando. Greg voltou uma hora depois. Ele subiu as escadas e me empurrou de costas no chão, eu o encarei enquanto a madeira lascada entrava nas minhas costas ainda machucadas.
 “Você me fez passar vergonha na frente dos meus amigos, seu pedaço de merda, “ ele disse em um chiado. “Seu maldito viadinho, seu fracote de merda. “
Ele me cercou como se fosse me bater de novo. Então eu notei onde ele estava. Eu chutei ele nos joelhos o mais forte que podia. Ele tropeçou para trás. Ele caiu pelo buraco nas madeiras faltando no chão, batendo seu queixo na madeira enquanto caia, estilhaçando seus dentes. Eu ouvi uma batida alta quando ele chegou no chão abaixo de nós.
Eu desci a escada com cuidado. Assim que eu cheguei ao chão, eu fui até meu irmão. Seu rosto era uma mistura de sangue e cacos de dente, que caiam de sua boca na grama.
 “Eu não consigo me mexer, “ ele arquejou. “Minhas pernas. Meus braços. “
Eu chutei ele no peito. “Eu achei que o chão fosse lava, seu desgraçado. “ Eu sussurrei. “Por que você não pulou? “ Eu chutei ele de novo.
Meu vizinho nos observando do outro lado da cerca, seu ombro direito se movendo furiosamente enquanto ele encarava nossos corpos sem camisa. Eu sorri.
 “Ele é todo seu. “ Eu informei Sr. Clayton. 

Enquanto eu caminhava até a casa, eu olhei sobre meu ombro a tempo de ver meu vizinho pulando a cerca. 
E ai gente? Vou tentar trazer mais posts essa semana (afinal, estamos quase no Halloween!). Como sempre, comentem o que acharam! E se tiverem sugestões, podem deixar nos comentários. Até a próxima.

Edit: Coloquei uma mensagem de aviso no inicio do post. Compreendo que nem todo mundo irá achar a creepy interessante. Não tenho como agradar a todos.

23/10/2016

Monstros Em Meus Ombros - Capítulo 5

Capítulo 5 - A Tarde da Jogatina

Já era quase hora do almoço quando cheguei em casa. Gih e Jon ainda estavam aqui, exaustos. A casa estava brilhando, nunca a tinha visto tão limpa antes. Vinny e Gabe já haviam ido embora bem antes de todos acordarem. Tia Cassie, por incrível que pareça não estava brava comigo, somente questionara o porquê de ter chego tão cedo em casa. E por fim, tio Lincoln já estava no trabalho, onde costumava passava a maior parte do tempo. O dia estava perfeito.

@DaveSenhorDasTrevas: Eae seus cuzões! Seis horas aqui em casa. Não esqueça da pitanguinha, Matt!

@Matt (você): Tá legal! Hahahaha

@Matt (você): Como esquecer?

@GiihNeves: Pitanguinha?Que merda é essa? kkkkkkkkkkk

@Jonathan: Jesus...

@Matt (você): Dave e esses apelidos! Hahahahaha

@GiihNeves: Matt, pega suco pra mim lá na cozinha? Por favorzinho!

@Jonathan: Aproveita e pega um pedaço de bolo pra mim!

@Matt (você): Vocês estão a menos de 1 metro de distância de mim, caras! Porque não falam comigo pessoalmente? Euem...

@Jonathan: Affs...





- Alicia vai vir pra casa no final de semana... – Disse Jon, desligando o telefone. – Lembra dela, Matt?

- Alicia? – Perguntou Gih, curiosa. – É gostosa?

- Nossa, Giovanna... – Jon revirou os olhos. – É a minha irmã.

- Eca, deve ter cara de Margareth – Gih forçou uma cara de nojo. Gargalhei.

- Ela não estava na faculdade? – Perguntei a Jon. – Qual o curso mesmo?

- É, psicologia – Respondeu. – Esse é o último ano dela.

- Incrível – Sorri. – Lembro dela toda empolgada nas férias do ano passado, contando pra nós como o primeiro ano dela tinha sido incrível e cansativo. Sinto falta dela...

- Pois é, eu também. – Jon sorriu.

Alicia era a irmã mais velha de Jon. Antes de Cassandra aparecer, ela era a garota na qual eu fantasiava momentos escrotos, como uma corrida em câmera lenta no gramado. Ela foi embora há uns quatro anos para cursar psicologia em uma faculdade fora do estado. Todo ano, nas férias, ela vem pra cá visitar a família dela, foi numa dessas que eu a conheci. Embora fosse mais velha, sempre foi muito legal comigo e com Jon. Antes de Gih aparecer, Alicia era sem duvida alguma, minha melhor amiga.

- Ela me disse que aprendeu umas coisas sobre regressão! – Comentou Jon. – Lembra que éramos loucos para fazer isso?

- Uau, eu lembro! – Respondi, surpreso. – Ela já fez isso com alguém?

- Sim, sim! Ela disse que aparentemente havia funcionado duas vezes, com duas mulheres diferentes! – Jon parecia entusiasmado. Ele amava essas coisas. – Uma delas narrou durante a regressão, que estava em um lugar extremamente evoluído tecnologicamente. Havia duas criaturas estranhas lá, mas ela não sentia medo. Pelo contrário, a mulher disse ter sentido como se não visse aqueles seres a muito tempo e que encontra-los fez com que ela sentisse uma felicidade inexplicável, como se estivesse com muita saudade e nem se quer sabia quem eles eram.

- Que foda! – Se tudo aquilo fosse verdade, era mesmo incrível. Não acho que Alicia iludiria tanto o Jon. – Espero que ela faça uma sessão com a gente.

- Eu também, cara! – A expressão de excitação de Jon não mudou nem por um segundo.

- Galera, o papo tá maneiro, tá irado! – Disse Gih. – Mas cadê o meu suco? Vamos regredir ao passado onde eu o peço no grupo?

- Já que estamos regredindo a isso, eu quero o meu bolo também. – Disse Jon. Ele e Gih olharam para mim. – O que tá esperando, Matt?

Revirei os olhos, mas eles mereciam um favorzinho. Graças à festa "surpresa" deles, eu tinha um "encontro" hoje à noite.

[...]                      

"... Você a matou! Você a estuprou! Matou os filhos dela!...".

- Eu amo essa parte! – Comentou Jon – Meu deus do céu! É agora!

- Eu nunca vou engolir o final desse episódio! – Eu disse, com desprezo.

"... Ellia Martell! Eu a matei! Eu a estuprei! Matei os filhos dela!...".

- Magnifico! – Os olhos de Jon cintilavam. – Nunca me canso de ver esse episódio!

- O que eu perdi? – Disse Gih, bocejando enquanto se espreguiçava.

- Eu não acredito que você dormiu durante o episódio! – Disse Jon, indignado.

- Prefiro assistir A Usurpadora – Respondeu Gih, debochando. – Já viram a hora, seus cuzões?

- Cinco e quarenta... – Respondi, olhando o relógio. – A tarde passou voando!

- Pois é – Jon assentiu – E nem terminamos a temporada...

- Bom, vou ali rapinho trocar de roupa, beleza? Beleza! – Anunciei, enquanto me retirava do quarto.

Caminhei em direção à porta do banheiro que ficava ao lado do quarto da tia Cassie e tio Lincoln. Senti minha visão escurecer e a cabeça queimar durante o percurso. A princípio, achei a sensação estranha e por um segundo fiquei preocupado, mas logo levei em consideração que fiquei deitado por mais ou menos seis horas assistindo a quarta temporada de Game Of Thrones com Jon. Quando cheguei à porta, parei a frente dela por alguns segundos. Respirei fundo, girei a maçaneta e entrei.

A visão inicial que se tem ao entrar no banheiro é a pia, o armarinho e o espelho. Aproximei-me da pia, olhei-me no espelho por alguns segundos. Nossa, que cara de derrotado! pensei. Liguei a torneira e lavei meu rosto. Em seguida, peguei uma toalhinha que ficava pendurada ao lado do armarinho e me enxuguei. Quando voltei meus olhos para o espelho, dei um passo para trás. Meu coração acelerou.

O espelho não refletia a mim, pelo menos, não o Matt de dezesseis anos com pelos na cara. O espelho refletia a mim quando criança. Meu reflexo usava um pijama listrado verde e branco. Suas roupas e seu rosto estavam chapiscados de um vermelho vivo que claramente não era ketchup, tinta guache  ou canetinha. Era sangue.

Seus olhos estavam fixos em mim, faiscando de ódio. Um maligno sorriso surgiu no canto de sua boca enquanto levava o indicador ao meio dela. "Shh...". Fechei meus olhos imediatamente.

- Acorda, Matt! É só mais um pesadelo!... – Disse a mim mesmo, trêmulo e ofegante. – Anda caralho! Acorda!

Respirei fundo como quem estava convencido de que tudo tinha acabado e me permiti abrir os olhos. Nunca estive tão errado.

Minhas pernas ficaram trêmulas com o que vi. Perdi as forças que me mantinham de pé e despenquei no chão. Não era um pesadelo.

Arrastei-me desesperadamente para longe do espelho, parando apenas quando uma parede me impediu de ir mais além. O pequeno Matt ainda estava lá, com o indicador no meio de seu maligno sorriso, mas tinha algo diferente agora. Ele não estava mais sozinho, atrás dele, com as mãos em seus ombros, estava o homem mascarado de meus pesadelos.

Gentilmente, o homem puxou pelos cabelos a cabeça de Matt para trás, deixando a mostra toda a região de sua garganta. O pequeno Matt continuava sorrindo, seus olhos ainda fixos em mim.

O homem então direcionou os olhos a mim também. Seu olhar penetrante me dava calafrios. Com a mão que estava livre, o homem procurou algo em seu bolso. A expressão de seus olhos mudaram quando encontrou o que procurava, como se estivesse sorrindo por de baixo da máscara.

Meu corpo travou totalmente. Eu não era mais capaz de mover nenhum músculo, nem mesmo fechar meus olhos. Tudo o que eu sentia era meus órgãos internos latejarem. Meu coração lutar contra minha caixa torácica, uma angustia, um pavor. O homem não tirou os olhos de mim nem por um segundo quando levou a velha navalha de meu pai até a garganta do pequeno eu. "Shh..." emitiu, soltando os cabelos do pequeno Matt e entrelaçando o braço na garganta dele, levando o indicador até a inexistente boca da máscara. Delicadamente, o homem levou a mão até o queixo de Matt e o forçou para cima, voltando a deixar à mostra sua garganta.

- Não... – Meus lábios nem se quer se mexeram, nenhum som saiu de mim. Lágrimas  se formaram e despencaram de meus olhos.

Fui obrigado a assisti-lo forçar e puxar lentamente a velha navalha de meu pai, rasgando e fazendo sangue escorrer da garganta do pequeno Matt. Seu maligno sorriso ficou mais intenso quando seu sangue começou a jorrar para todos os cantos de seu pequeno mundo invertido, como se aquilo lhe desse extremo prazer.

Pude ouvir o som de seu corpo se chocar ao chão quando o homem o soltou. Parecia que ele estava mesmo ali, no mesmo mundo, na minha frente. Seu corpo sumiu do meu campo de visão, deixando-me a sós com o homem mascarado.

Nossos olhares se cruzaram e nos encaramos por alguns segundos até que ele reclinou a cabeça como um cachorrinho que olha atentamente para seu dono e  levantou a mão esquerda, começando a escrever gentilmente no espelho com o dedo indicador que estava encharcado com sangue do pequeno Matt. A mensagem deixada no espelho fez meu corpo estremecer.

Feliz... Aniversário... Rôn.

A campainha tocou.

A minha atenção foi totalmente tirada da frase profanada no espelho. Cassandra! pensei. Voltei rapidamente meus olhos para o espelho novamente, mas estava tudo normal agora, tudo havia sumido. Senti um pequeno alivio, mas não era o bastante para ficar totalmente bem. Foi uma experiência extremamente nova e assustadora, nunca sonhei acordado antes.

Recompus-me e corri para atender a porta, mas antes que pudesse por o meu pé no degrau para descer a escada, notei que tia Cassie já tinha o feito.

- Olá, você deve ser a Cassandra! – Ouvi tia Cassie dizer, mais simpática do que de costumava ser. Ouvir sua voz fez com que eu me sentisse mais seguro com relação a tudo o que tinha acabado de acontecer. – Matt falou muito sobre você!

Ai... Meu... Deus! Não! O que ela vai pensar de mim?!

- Sério? – Cass perguntou. Pude sentir no tom de sua voz um inconsciente e doce sorriso. – Depois a senhora me conta tudo!

- Pode deixar! – Tia Cassie gargalhou. – Matt! Sua namorada está aqui te esperando!

Deus, Maria, José, Jesus... CRISTO! Onde eu aperto para sumir desse mundo? Que vergonha!

Corri de fininho de volta para a porta do meu quarto para respondê-la, não queria que pensassem que estava na escada ouvindo a todo aquele breve papo. Ter que entrar naquele assunto mais tarde com Cass seria embaraçoso demais.

- O quê?! – Tentei ser o mais cínico possível.

- Sua namorada! – Tia Cassie ousou repetir as mesmas palavras. MEU DEUS! Nem quero imaginar como está a cara da Cassandra nesse momento. – Ela tá aqui te esperando!... Não a faça esperar mais!... Desça logo!

- MEU DEUS DO CÉU, TIA! – Gritei constrangido, correndo degraus abaixo. – Ela não é... Oi Cass!

- Oiiiii, Matt! – Cassandra acenou, com a mesma empolgação de sempre.

- Que cara é essa, meu filho? – Perguntou tia Cassie, franzido a testa com certa preocupação.

- Estou legal, tia – Forcei um sorriso. – É que acabei dormindo e levantei no susto!

- Dorminhoco! – Estava claro que tia Cassie não havia engolido aquela história, mas fez-se de boba porque sabia que quando eu estivesse pronto para conversar sobre meus problemas, eu conversaria.

 - Tudo pronto pra irmos? – Cass perguntou.

 - Sim, sim! Só espera aqui um minutinho, tá legal? – Respondi, correndo os degraus de volta para o meu quarto.

Sei que é estranho e super clichê dizer isso, ainda mais por conhecê-la há tão pouco tempo, mas cara... Nunca vi Cassandra tão linda.

Ela usava uma jaqueta preta de couro. Uma camisa branca cuja estampa era a logomarca de uma banda gospel famosa. Um jeans azul bem escuro e um all-star preto. Seu penteado estava diferente do de costume. Lembra da Angelina Jolie em O Procurado? É exatamente assim que está! (em uma versão mais curta, é claro). Ela estava perfeita.

- Quem é? – Perguntou Jon. – Meu deus, que cara de derrota!

- É a Cassandra, vamos logo! – Respondi, trocando apressadamente de camisa.

- Calminha ai, louco apaixonado! – Debochou Gih, levantando da cama.

- Vão lá em baixo e... Sei lá... Só tentem interagir com ela, tá bom? – Pedi, correndo pra fora do quarto.

- Tá bom... – Gih e Jon resmungaram.

Sorri para eles, lancei um joinha e então corri em direção ao banheiro.

Ao estar de frente para a porta, meu coração apertou. O receio de entrar lá dentro e ver tudo aquilo de novo fez meu corpo estremecer. Vamos, Matt! não pode deixar essas coisas afetarem a sua  vida permanentemente. Se você se entregar a loucura, será um louco. Precisa ser forte! Não seja um viadinho! pensei. Respirei fundo, girei lentamente a maçaneta e entrei. Estava tudo normal do lado de dentro. Sem o pequeno eu, sem o homem mascarado, sem espelho sujo de sangue. Senti um grande alivio. Caminhei em direção a pia e então me dei conta ao olhar para o espelho que tinha vestido a camisa que Gih me deu de aniversário. Cassandra parecia gostar dela, essa lembrança fez com que um inconsciente sorriso brotasse em meu rosto.

Escovei os dentes, penteei o cabelo, limpei meus óculos, vesti uma calça jeans preta e coloquei meu all-star azul-escuro.

- Vai dar tudo certo! – Sussurrei, olhando para meu reflexo no espelho. O horroroso e velho Matt de dezesseis anos com pelos na cara, que costumava estar sempre ali, durante as manhãs de atraso e os momentos de insegurança. Ele sorriu docemente enquanto saía em direção ao corredor para se juntar a Cassandra, Gih e Jon.

- Até que enfim! – Resmungou Jon

- Partiu! – Anunciou Gih.

Cassandra sorriu para mim enquanto me aproximava dela. Nos despedimos de tia Cassie e esbarramos com o tio Lincoln chegando do trabalho quando abrimos a porta da saída. Ele me chamou em um canto da sala e me entregou uma nota de cinquenta reais.

- Divirta-se, garoto! – Sussurrou.

- Valeu, tio! – Sorri, sussurrando como ele. Ele sorrii de volta, dando um amigável tapa em meu ombro.

Juntei-me novamente aos meus amigos do lado de fora e então partimos em direção a casa do Dave.

Gih e Jon andaram na frente em uma distância considerável de Cassandra e eu durante todo o caminho até a casa de Dave. Cass me contara como foi seu dia, do quanto gostava da banda que estava estampada em sua camisa e do quanto admirava o "gordo antipático" do vocalista. Cass é muito empolgada e extrovertida, o que é ótimo de assistir. Embora tivesse dito amar o bom e velho rock, parecera bem eclética com relação à música. Dançara e cantara praticamente todas (dos mais variados gêneros) que tocaram nos bares, casas ou carros de som nos quais passamos perto durante o percurso.

- Isso são horas, cachorras? – Disse Dave, forçando indignação, parado na entrada de sua casa, apontando o indicador para o relógio. – Estão A-TRA-SA-DOS!

- Tudo culpa do Matt... – Disse Jon, revirando os olhos enquanto entrava na casa de Dave.

- Fala ai, cuzão – Gih cumprimentou Dave e entrou.

- Olá senhor Cachorrão! – Dave me cumprimentou e se direcionou a Cassandra. – E a senhora é...?

- Cassandra! – Ela respondeu, empolgada. Estendendo a mão a Dave para um aperto de mãos.

- Eu sei! – Dave sorriu e fez a cara de safadão para mim. – Só fingi que não sabia pra você não descobrir que o Matt vive falando de você. Seja bem-vinda ao meu templo, senhora Cassandra!

– Obrigada, senhor Dave! - Cassandra gargalhou, mandando um doce olhar para mim.

- Ignora esse cara! – Sorri sem graça e revirei os olhos. Segurei a mão dela e mandei um olhar do tipo "Valeu, babaca!" para Dave sem que ela visse enquanto entravámos. Dave levantou os braços em comemoração e fez movimentos aleatórios e agitados como um bonecão do posto em silêncio, que significava do jeito dele, algo como: "Ah, moleque! Aleluia!".

Dentro da casa de Dave, Vinny e Gabe já estavam jogando contra Paul e Ed, que até então são amigos exclusivos do Dave, pois nenhum de nós os conhece muito bem. Fora eles, não havia ninguém que não fosse do meu ciclo de amizade na Tarde da Jogatina.

- Nossa, como você é chato cara! – Reclamou Gabe, aparentemente se direcionando a Paul. – Me deixa levantar!

- Em uma luta dessas de verdade, você deixaria o cara que quer estraçalhar seus órgãos, estraçalhar seus órgãos? – Respondeu Paul, debochando e gargalhando em seguida. Paul venceu Gabe.

Flawless Victory

- Vai tomar no seu cu! – Gabe estava mesmo irritado.

- Próximo! – Disse Paul, dando um aperto de mão personalizado em Ed, que além de sua dupla, parecia ser seu melhor amigo.

Paul era negro, cabelos totalmente raspados, olhos castanhos escuros e tinha o porte físico, as roupas e a arrogância de um jogador de futebol americano, daqueles que aparecem em séries adolescentes de TV norte-americanas que retratam um fantasioso e perfeito ensino médio, com líderes de torcida e toda aquela palhaçada.

- Matt e a Pitanguinha são os próximos! – Anunciou Dave.

- Pitanguinha? – Cassandra gargalhou.

- Coisas do Dave... – Sussurrei pra ela, contendo o riso.

Me sentei no sofá e Vinny me entregou o controle que estava com ele enquanto ia na cozinha pegar um pedaço de pizza. Vi o controle que estava com Gabe jogado no chão e o peguei para entregar a Cassandra que sentou ao meu lado logo em seguida.

- Sabe como jogar? – Perguntei, sussurrando pra ela.

- Está me zoando, senhor Matt? – Cass se aproximou de meu rosto, encostando seu nariz ao meu e com um sorriso malicioso, sussurrou. – Eu sou a rainha desse jogo!

- Tá legal então!... – Um inconsciente e constrangido sorriso nasceu no canto da minha boca.

Cassandra escolheu o personagem: Reptile.

Eu, o Scorpion.

Paul, o Kabal,

e Ed, o Sub-Zero.

ROUND ONE: FIGHT!

A primeira luta foi entre Paul e Cassandra. Paul jogava muito bem, o que fez com que Cassandra levasse uma surra e perdesse a primeira rodada. Mas, pelo menos ela conseguiu dar uns golpes, diferente de Gabe.

- Olha só isso, Gay-be! A garota joga melhor do que você! – Paul, implicou.

- Boa! – Cassandra deu um sorriso convencido, ajeitando-se no sofá. – Me aguarde na próxima rodada! Eu vou jogar sério!

- Há – Paul debochou e novamente voltou a implicar com Gabe. – E sabe perder melhor também!

- Vai se foder, seu viado! – Gabe berrou da cozinha. Paul gargalhou.

Agora era a minha vez de lutar contra Ed. Não sei se ganharia com toda a pressão que auto-coloquei em mim para impressionar Cassandra, mas... não podia arregar, não é mesmo?

- Boa sorte, amigão! – Paul sussurrou para Ed, como se aquilo valesse a vida de alguém. Ed assentiu com a cabeça e sorriu.

- Pronto? – Ed me perguntou.

- Sempre! – Respondi, convencido. Cassandra soltou uma risadinha maligna e convencida enquanto esfregava aos mãos, como se a minha vitória fosse certa.

Ed era alto e magricelo, sua pele era morena, seu rosto era recheado de cravos e espinhas e os cabelos castanhos e brilhosos estavam penteados ao estilo "boneco Ken". Ele usava uma camisa do Breaking Benjamin, bermuda jeans e os pés estavam descalços.

Comecei a partida apertando loucamente as combinações de teleporte, somados a um combo e teleporte... de novo.

- Boa! – Cassandra estava vidrada no jogo, batia rápidas palminhas quando eu parecia me sair bem. Ela era a única a expressar qualquer tipo de reação perante a luta, o resto das pessoas estavam ocupadas demais em seus particulares e paralelos papos, apenas esperando sua vez de jogar. Exceto, é claro, quando Cass esboçava alguma reação. Todos paravam por um segundo, olhavam para ela e voltavam a fazer o que estavam fazendo.

Repeti o processo umas três vezes, mas não demorou muito até Ed sacar meu padrão de golpes, o que possibilitou que os defendesse e revidasse em combos ainda mais frenéticos que nem me permitiam tocar o chão. Ed certamente era um viciado.

- Merda, merda, merda!... – Cassandra sussurrou.

Quando chegamos ao que parecia a etapa final da luta, consegui me recompor e ficou claro que nossa habilidade era equivalente. Estávamos a um golpe da vitória, quem acertasse, ganharia. Ed então resolveu que era a hora de finalizar a luta em alto estilo usando o X-Ray que segurou pacientemente durante toda a batalha. Foi seu maior erro.

- Merda! – Ed deixou escapar.

- Acaba com ele, Matt! – Cassandra se levantou num pulo, caindo rapidamente de volta ao sofá, cruzando as pernas. Seus olhos cintilantes estavam grudados na tela enquanto sussurrava para si mesma. – Vai, vai, vai!

Desviando do ataque especial e afundando os direcionais e botões do controle, revidei usando a corrente do Scorpion que foi o suficiente para mata-lo.

Paul e Ed me aplaudiram e Cassandra saltou do sofá, com os braços no ar em comemoração.

- Que vença o melhor agora! – Cassandra disse, provocando Paul.

- Só porque o namoradinho ganhou a primeira luta, não significa que vai ganhar a rodada. – Paul revirou os olhos. Nem ousei olhar para a cara de Cassandra quando ele usou a palavra "namoradinho".

Agora éramos eu e Paul.

Paul entrou frenético, usando a super corrida de Kabal. Ele não parecia preocupado com a derrota. Cassandra havia tirado uma boa parte da barra de vida dele, mas Paul estava convencido de que venceria e então decidiu brincar. Saber que só mais um golpe me mataria parecia tê-lo deixado super tranquilo. Defendi seu ataque e revidei com socos e chutes, mas ele conseguiu bloquear. Minhas mãos começaram a transpirar. Ele usou novamente a corrida. Defendi e usei teleporte, acertando finalmente um combo completo, deixando a barra de vida de Paul em um estado crítico. A partida agora era decisiva.

- Acaba com esse, idiota – Cassandra sussurrava para si. Roendo as unhas, sem piscar, nem tirar os olhos do jogo. Cass era uma pessoa muito imersiva.

Paul não parecia ter se abalado. Insistiu em usar novamente a super corrida, mas foi a última vez. Seus movimentos já tinham se tornado previsíveis. Defendi, fazendo com que Kabal desse um salto para trás, o que fez Paul perder o controle do personagens por alguns milésimos. Antes que Paul recuperasse o controle do personagem, afundei os gatilhos do controle e usei o X-Ray. Ele não conseguiu escapar.

Paul assistiu com desgosto o meu personagem (Scorpion) quebrar cada um dos ossos e esmagar com os pés a caixa torácica de seu personagem (Kabal), deixando clara a sua derrota na primeira rodada.

- TOMA ESSA, SEU MANÉZÃO! – Berrou Cassandra, com uma expressão de satisfação no rosto. – Parece que alguém se ferrou, não é mesmo?

- Ai, ai... – Disse Paul ao vento, como quem já estava ficando irritado com Cassandra. Nem se quer tirou os olhos da tela.

Scorpion: WINS

- Foi uma boa luta cara, parabéns pra nós!– Sorri para Paul e Ed.

- Parabéns pra nós! – Ed sorriu de volta. Ele era um cara legal, no fim das contas.

- Ainda não acabou, amiguinhos! – Paul disse, mirando um olhar vingativo junto de um maligno sorriso a Cassandra. – Mas, parabéns para nós! – Ele revirou os olhos por um segundo, mas logo deu um sorriso amigável. – Todos nós!

- "Ai... ai..." – Cassandra fez uma imitação de Paul e mostrou a língua como uma criança debochadaem seguida.

Antes que a segunda rodada pudesse começar o telefone de Cassandra tocou.

- Me desculpa, Fry! Esqueci totalmente! – A expressão de Cassandra mudou instantaneamente, enquanto levantava do sofá. – Estou indo agora mesmo!

- Tudo bem? – Perguntei para ela.

- É o ensaio da banda! – Cassandra respondeu, indo em direção à saída da casa de Dave, acenando em despedida para todos. – Tenho que ir agora! Nos vemos amanhã na escola, tá bom?

- Eu vou com você, lembra? – Perguntei, dando um sorriso sem graça.

- Ah, é mesmo! – Cassandra sorriu, sentindo-se uma boba, dando um tapa em sua testa. – Tô louca! Desculpa... Agora vamos logo, senhor Matt!

- Tchau, galera! – Anunciei, deixando o controle em cima do sofá e me juntando a Cassandra na saída. – Daqui a pouco estou de volta!

- Não demore, quero minha revanche ainda hoje! – Disse Paul, sorrindo. – E avisa pra apressadinha, que dessa vez ela conseguiu escapar sem cumprir as promessas!

- Pode deixar! – Gargalhei.

[...]                      

- E então...? – Perguntei para Cassandra, enquanto caminhávamos. – Curtiu a "Tarde da Jogatina"?

- Com certeza! – Respondeu, com empolgação. – Vocês fazem isso sempre?

- Ah, sim... – Respondi – Quase sempre, na verdade...

- Entendo! – Ela sorriu – Me chame, sempre!

- Pode deixar! – Sorri de volta.

- Fry vai me matar! - Comentou, acelerando o passo enquanto olhava a hora em seu celular.

- Relaxa, nem tá tão atrasada assim... – Eu disse, olhando então a hora no meu celular. - Está bem cedo, na verdade...

- Eu sei, mas o ensaio começaria mais cedo hoje e eu acabei me esquecendo disso... – Respondeu. – Mas... Vamos, distraia minha mente, senhor Matt!

- Tá legal... – Sorri. – Hmm... esse é o nome dela mesmo?

- Como assim? – Perguntou, franzindo o cenho.

- "Fry"... Esse é o nome dela mesmo? – Sorri, como se aquele fosse um nome estranho. – "Fry"... "Fry"... "Fry"... é um nome engraçado de dizer!

- É só um apelido! – Cass gargalhou. – É coisa de uma história que acompanhamos na internet...

- E "Fry"... seria, sei lá... uma espécie de bicho nessa história? – Caçoei.

- Não... – Gargalhou novamente. – É só uma personagem muito parecida com ela...

- Ah, sim... – Assenti com a cabeça,  tentando conter o riso. – "Far Fry"... Que droga!

- Quê? – Gargalhou mais ainda. – Que merda é essa?!

- Nada... Não é nada... – Eu disse, deixando então uma gargalhada escapar. Não sei por que estávamos rindo daquela forma, mas era legal ver Cass daquele jeito. – "Far Fry"... Meu Deus!

- Isso não faz o menor sentido! - Disse Cass, ainda gargalhando.

 - Eu sei... - Eu disse, me recompondo. - Mas me conta! Que raio de história é essa?

- A Procurada! – Respondeu, recompondo-se, mas ainda sorrindo como alguém que está super chapado. – É um romance... "super clichê", você vai dizer... Mas não tô nem ai, adoro!

- Ainda bem que me poupou de dizer isso... – Sorri. – Talvez eu pare pra ler, talvez...

- Aposto que vai adorar! - Me olhou, com aquele sorriso que me lembrava a "cara de safadão" do Dave.

- Claro! – Respondi, usando pela primeira vez na minha vida a "cara de safadão". Ela desatou a gargalhar. Não sei se isso é bom ou ruim... espero que seja bom. - Adoro um romance, amiga!

- Nossa, arrasou! - Disse Cass voltando a gargalhar. - Ai, ai... Me conta sua história, senhor Matt! – Pediu, ofegante como quem acabou de rir bastante.

- Como assim? – Perguntei, confuso.

- Sei lá... de onde você veio?... – Perguntou. – Mora por aqui desde sempre?

- Não, na verdade não... – Respondi. – Me mudei pra cá faz três anos...

- Motivo? – Perguntou.

- Prefere a versão resumida ou estendida da história? – Sorri.

- Distraia minha mente, senhor Matt! – Ela sorriu, revirando os olhos. Acho que aquilo significava "versão estendida".

- Se prepara! – Comecei. – É uma história trágica!

- Me surpreenda! – Ela sorriu. – Aposto que não mais trágica do que as que eu tenho para te contar!

- Meu pai tentou me afogar em uma banheira quando eu tinha treze anos. Meu tio Lincoln disse para mim no hospital depois que acordei três dias depois do ocorrido que o meu pai tinha se arrependido do que fez e por isso se matou logo depois que havia me considerado morto. – Eu disse, forçando uma cara séria, para deixa-la chocada.

- Nossa... – A expressão dela mudou imediatamente. – Tá... você venceu!

- Eu sei! – Gargalhei, mas ela não.

- Isso tudo é sério mesmo ou você só tá zoando com a minha cara? – Perguntou, séria. Ela olhava fixamente pra mim, como se estivesse imaginando como eu poderia ser eu, caso tudo o que disse fosse mesmo verdade.

- É sério... – Forcei seriedade. Eu não me importava com o assunto, mas às vezes me esqueço que as pessoas costumam se chocar com essas coisas.

- Nem sei o que dizer cara... – Ela parou de andar, caminhou para mais perto de mim e me abraçou forte.

- Não precisa dizer nada... – Sorri. – Um abraço é mais que o suficiente!

- Como consegue? – Perguntou. Estar abraçado com ela no meio da rua enquanto conversávamos me lembrou a noite da "festa surpresa".

- O que? – Perguntei.

- Não se importar... – Ela disse.

- Não é que não me importe... – Respondi. – Só acho que se eu ficar remoendo todas essas coisas, vou acabar ficando louco, mas do que já sou...

- Você não é louco! – Ela olhou pra mim.

- Eu ouço vozes e vejo coisas, Cass... – Eu disse. De todas as pessoas que conheço, só Gih sabia sobre as vozes. Nem mesmo tio Lincoln ou tia Cassie sabiam. Eles achavam que a história das vozes fosse alguma loucura do meu pai, sempre o acharam louco. Deixei que pensassem assim, não queria arriscar que me levassem a hospitais psiquiátricos ou me tratassem diferente por isso. Cass me causava uma paz inexplicável e isso fez com que eu me sentisse a vontade para falar sobre o assunto, mais até do que me sentia com Gih. Eu sabia que ela não me trataria como um louco.

- Uau... – Cass pareceu surpresa. Não surpresa do tipo "Que cara louco", mas do tipo "Incrível, conte-me mais sobre isso". – E o que elas dizem?

- Bom, antes de o meu pai morrer... – Respondi. - Elas diziam coisas como: "Mate ele", "Fique longe dele", "Não o obedeça", "Não deixe que toque em você", "Ele é um monstro"... E essa é só uma versão censurada do que elas diziam...

- E o que elas dizem agora? Nesse momento? – Perguntou, parecia ter se arrepiado.

- Nada... desde que ele morreu nunca mais as ouvi. – Respondi – Só tenho tido pesadelos à noite ou durante qualquer cochilo. Meu pai está em todos eles, sempre me matando de alguma forma... Mas isso é  até compreensível... pode ser algum trauma inconsciente e tudo o mais

- Já foi em algum médico? – Perguntou

- Não... – Respondi. – Nunca gostei de como isso soa...

- Eu entendo... – Disse Cass, em um tom triste e misterioso. – Eu também não...

- Como assim? – Perguntei. Senti um aperto no peito... Acho que ela contaria a história dela agora.

- Sou tão louca quanto você! – Começou a dizer. - Não sei se posso dizer com toda certeza que ouço vozes, mas sabe?... Em um belo dia, do ano passado, Cassandra chega em casa depois da escola, se joga na cama e liga para a sua melhor amiga. Antes que sua melhor amiga pudesse atender, por alguma razão, Cassandra começa a chorar loucamente. Ela levanta da cama, larga o telefone lá e vai até a cozinha da vó dela. Pega um potinho preto que sempre estava em cima do armarinho de louças e um copo d'gua. Ela vai para o banheiro, tranca a porta, senta no box e dissolve o que estava dentro do potinho na água. Respira fundo, luta contra o choro e vira o copo até não restar uma gota de água. Cassandra apaga e acorda uma semana depois em uma cama de hospital, cheia de tubos no corpo.

- O que tinha no potinho? – Perguntei, angustiado.

- Veneno de rato... – Ela desgrudou o rosto de meu peito e sorriu para mim. Seus olhos estavam lacrimejantes.

- Suicídio? – Perguntei, chocado. – Você e suicídio são coisas que não fazem sentido na minha cabeça... Não combinam...

- É... Meu caro, Matt...O que transparecemos ser não importa! – Ela sorriu. – Não importa se você é a garota feliz e meiga, a barraqueira que todos odeiam ou a garota popular que todos querem ser, no fim de tudo... só nós mesmos conhecemos os monstros que carregamos em nossos ombros.

- Faz sentido... – Forcei um sorriso, mas mesmo sem poder ver meu rosto, sabia que era um sorriso triste que havia saído. – Quer falar sobre o motivo de tudo que aconteceu?

- Um dia, senhor Matt... mas não hoje... – Ela saiu de meu abraço e então voltamos a caminhar.

Sabe, existe um bloqueio em mim que não me permite acreditar... associar Cass a situações do tipo. É impossível olhar pra ela e imagina-la chegando a esse nível extremo de desespero. Seu sorriso tão lindo e puro, seu rosto tão perfeito... Ela certamente não carregava marcas do passado em seu olhar. Mas, ela tem razão... Não importa o que transparecemos ser, no fim... Só nós mesmos conhecemos os monstros que carregamos em nossos ombros.

15/10/2016

Monstros Em Meus Ombros - Capítulo 4

Capítulo 4 - Um Corpo na Escuridão

Ao fim da festa tudo o que restara eram corpos cansados e ofegantes caídos no gramado. Olhos focados ao céu e inconscientes sorrisos no rosto.

Tia Cassie e tio Lincoln já haviam caído no sono em seus quartos. Os vizinhos já tinham ido embora depois de meia hora de festa, provavelmente por tio Lincoln tê-los educadamente expulsado por já estar cansado. Amy desapareceu, provavelmente foi embora enquanto eu estava ocupado demais prestando atenção em Cassandra. Gabe e Vinny estavam aos roncos de baixo da mesa de jantar na cozinha. Jon estava no meu quarto, provavelmente jogando e reclamando do quanto o meu computador era lento. Dave estava bêbado no banheiro, falando coisas sem sentido ao telefone, provavelmente era a ex-namorada dele, Julie. E no gramado, do lado de fora da casa, olhando para os céus, estava Gih e eu.

- Hoje foi incrível – Comentei

- Foi sim! – Gih assentiu.

- Sabe... Eu estava aqui pensando... Acho que vou chamar a Cassandra pra sair – Eu disse, decidido por fora e inseguro por dentro. – Alguma sugestão, miss lésbica?

- Sei lá, cara! Ela já tá tão na tua que eu acho que nem precisa fazer muito esforço – Respondeu, desinteressada.

- Você tá viajando, cara! – Disse constrangido, dando um amigável soco em seu ombro.

- Pode crer que estou – Respondeu ela. Parecia estar totalmente chapada com aquele sorriso bobo, olhos lacrimejantes e bocejos frenéticos. Ela apagaria a qualquer momento.

- Amanhã... Quero dizer... Hoje!... É terça-feira... Talvez eu convide-a para a "Tarde da Jogatina" – Eu disse. – Acha que soaria estranho por ela ser uma garota? Eu sei que você também é e você vai, mas você é você, né?... Hm... Gih?

Seu silêncio desinteressado foi substituído pelo som de seus roncos guturais. Olhei para ela, estava desligada. Fico me perguntando se ela ouviu alguma coisa do que eu disse antes de apagar. Desatei a sorrir e voltei minha atenção para o céu. O clima estava surpreendentemente agradável. Meu corpo estava em ecstasy e eu me sentia inexplicavelmente bem.

Os passarinhos já iniciavam seu canto, o som da manhã se aproximando me levou de volta ao meu momento com Cassandra. Lá estava ela, novamente dominando meus pensamentos como na "pista de dança". Como chama-la para sair? Será que ela aceitaria? Será que tudo aquilo que rolou na festa foi um mal entendido e ela simplesmente é daquele jeito com todo mundo? O que será que ela achou de mim? E se ela estiver chateada por eu não tê-la levado em casa como Jon disse? Droga... Falta menos de uma hora até o sol nascer completamente e logo a verei na escola, sem a resposta para nenhuma dessas perguntas. A ansiedade é tão grande que me tira o sono.

- Gih, acorda! – Disse, balançando-a na grama. – Temos menos de uma hora para se arrumar para a escola!

- Que? Escola? – Disse Gih. Sua mente ainda parecia dormir. – Eu não vou não, tá louco? E nem acredito que você vai... Vou ficar aqui e ajudar seus tios a arrumar a casa... Vá dormir, cara...

- Mas e a Cassandra? – Eu disse, transparecendo certa decepção. Não queria ir sozinho para a escola, mas também queria muito ver Cassandra. É uma decisão muito difícil.

- Ela é a sua amada, não minha. – Gih voltou a roncar.

- Tá, tá bom – Disse revirando os olhos.

- Ei, o que tá fazendo? – Resmungou ela. Nem se deu o trabalho de abrir os olhos.

Arrastei Gih pelos braços para dentro da casa e a coloquei ao lado de Gabe e Vinny de baixo da mesa de jantar da cozinha. Ela certamente vai odiar acordar ao lado de dois "machos". Corri para o meu quarto para pegar meu uniforme. Jon estava lá, deitado em minha cama, coberto dos pés a cabeça, tão morto quanto Gih. Nem ousarei acorda-lo de seu sono de beleza. Jon não era a pessoa mais bem humorada do universo e esse mau humor era elevado a mais de oito mil ao acorda-lo. E ao julgar por ontem, hoje certamente não era um bom dia para acorda-lo.

Com o uniforme em mãos, o banheiro era o meu próximo alvo. A porta não estava trancada, mas também não queria ser aberta. Empurrei e empurrei, mas ela não abria mais do que cinco centímetros.

- O que foi porra?! – Aquela voz bêbada e irritada certamente era de Dave – Me deixa dormir em paz!

- Eu tenho que me arrumar para a escola, Dave! – Continuei a empurrar a porta. – Abre essa porta, cara!

- Escola? Hoje?! – Ele pareceu ter ficado sóbrio ao se dar conta que ainda era uma terça-feira. – Eita porra!...

Preparei-me para uma última empurrada, mas antes que meu corpo se chocasse contra a porta, ela se abriu. Entrei com tudo tropeçando no corpo de Dave que estava deitado no chão e cai sentado no box.

- Tá de sacanagem, né cara? – Eu disse, puto da vida.

- Foi mal... – Cantarolou enquanto saía correndo do banheiro usando apenas uma cueca branca com bolinhas pretas.

Imediatamente, tranquei a porta e corri de volta para o box. Peguei meu celular e coloquei uma música aleatória para marcar o tempo que eu poderia demorar no banho. Comecei a me despir e joguei minhas roupas para longe. Todo aquele pressa e ansiedade fizeram com que o meu corpo nem sentisse o quanto a água do chuveiro estava gelada.

"... There's a place I see you follow me... Just a taste of all that might come to be..."

"... Existe um lugar no qual eu vejo você me seguir... É só um vislumbre de tudo o que poderia ser...".

Eu estava lá, de baixo do chuveiro. A água caindo em minha cabeça. A música tocando e tudo o que vinha em minha mente eram flashes de Cassandra e eu correndo em câmera lenta em um campo florido. Um em direção ao outro, de braços abertos, prontos para um abraço. Isso é tão ridículo que me fez chegar à deprimente conclusão de que talvez eu esteja começando a me apaixonar... Ah, que vergonha de mim.

Depois que a música chegou ao fim, minha mente incomodada com o silêncio me trouxe de volta à realidade. Meu tempo no banho havia se esgotado. Hora de me vestir, escovar os dentes e partir.

Andei na ponta dos pés em direção a saída para não acordar a galera. A casa estava uma zona. Tia Cassie iria surtar quando acordasse e faria com que todos que ainda estivessem ali arrumassem toda aquela bagunça. Provavelmente, levarei alguns puxões de orelha mais tarde por ter ido à escola. Tia Cassie com certeza irá dizer que a minha ida foi parte de um plano friamente calculado de fugir das minhas responsabilidades com a arrumação pós-festa. Fui até a porta, girei a maçaneta e dei uma última olhada para trás antes de sair. Toda aquela bagunça e silencio me trouxeram certa nostalgia.

Já do lado de fora da casa, fui rapidamente até a minha bicicleta. Abri o cadeado e a soltei. Era sem dúvidas uma bela manhã. O sol finalmente havia nascido completamente e brilhava suavemente. O frio estava extremamente aconchegante e a forte ventania que balançava todas as árvores da vizinhança trazia uma melodia relaxante. O efeito das sombras das árvores somadas á iluminação do sol causavam um efeito incrível no clima e no asfalto. Por fim, coloquei meus fones de ouvido, montei na bicicleta e pedalei a caminho da escola.



- Ah cara, essa não! – Meu coração acelerou. – Merda, merda, merda!...

O trajeto até a escola tinha sido exatamente o mesmo que faço á três anos. Vi as mesmas pessoas, passei pelos mesmos lugares. Mas sabe quando você não está totalmente pronto para uma coisa e o universo parece conspirar para que tudo aconteça quando você está totalmente despreparado? Pois é...Foi exatamente o que aconteceu comigo.

Foram três malditos anos passando pela mesma lanchonete e nunca, em circunstancia alguma, vi Cassandra se quer passar por ali. Mas sim! Lá estava ela. Toda linda e sorridente saindo da lanchonete. O que eu faço? Passo direto e finjo que não a vi? Paro e faço companhia até a escola? Ou que tal só acenar e sair pedalando loucamente? Droga... Só espero que ela não me veja.

- Ei, Matt! – Uma voz meiga e feliz gritou.

Merda, Cassandra me viu.

- O-Oi, Cass! – Respondi, parando a bicicleta ao lado dela que estava acenando para mim.

- Como é que você tá? – Perguntou de braços abertos.

- T-To bem... E... Você? – Eu não conseguia disfarçar o quanto estava nervoso. Abracei-a forte.

- Estou ótima! – Ela sorriu. Desta vez nosso abraço foi o convencional de duração menor que cinco segundos.

- Está indo para a escola? – De todas as perguntas idiotas que eu poderia fazer, essa foi com certeza a mais idiota. Ela está com uniforme, idiota. Para onde mais estaria indo?

- Na verdade, sim! – Ela sorrira balançando a cabeça positivamente enquanto franzia o cenho. – E você?

- Ah, acho que sim – Cocei a cabeça e sorri.

- Então... Que tal descer da bicicleta e me fazer companhia até lá? – Ela sugeriu.

- Ah, claro! – Por que eu não havia tomado essa atitude por conta própria? Droga! – Mas e ai? Deu tudo certo com o seu pai ontem?... Chegou bem em casa?

- Sim, sim... Foi tudo tranquilo! – Ela respondeu, sorrindo como sempre sorria. – E você? Curtiu bastante sem mim?

- Um pouco – Sorri. – Mas confesso que a festa ficou um pouco sem graça depois que você foi embora.

- Aposto que sim! – Ela disse, com um olhar convencido. – Eu sou o brilho de toda festa, querido!

- Pode crer que é – Olhei para ela e revirei os olhos. Um silêncio constrangedor se iniciou enquanto caminhávamos. – Mas e ai? Que tal falar mais sobre você, senhorita Cassandra: A louca dos abraços longos?

- Louca dos abraços longos? – Ela gargalhara – Faça perguntas! Eu trabalho melhor com elas, senhor Matt: O louco das camisas fofas. – Sorri para ela.

- Hm, tá legal... Vejamos... – Eu não fazia ideia do que perguntar. – Quantos anos você tem?

- Dezessete... – Respondeu. – E você?

- Dezesseis.

Droga, ela é mais velha do que eu!

- Hm, quem diria? – Ela pareceu surpresa. – Matt ainda é um bebezinho!

E lá se vão as minhas chances...

- E a senhorita Cassandra é uma velha caquética, uau! – Revirei os olhos novamente. Ela riu.

- Mande mais perguntas, vamos! – Ela parecia empolgada.

- Tá legal, vamos nessa então... – Eu estava começando a me sentir mais a vontade perto dela. Não que normalmente eu ficasse nervoso perto de garotas, mas, era diferente com ela. Por algum motivo eu sentia uma desagradável necessidade de tentar impressiona-la. Mas é óbvio que eu parecia um idiota tentando fazer isso. – Quais são seus planos para o futuro?

- Hm, eu não sei... – Ela fez uma careta. – Terminar a escola e depois viajar o mundo com um mochilão e algumas garrafinhas de água. É um dos meus maiores sonhos!

- Uau... Incrível! – Sorri para ela. Viajar o mundo a fora era com certeza um dos meus sonhos também. – Aceita companhia?

- Ora, ora! O senhor Matt estaria disposto a viver tais incríveis aventuras comigo? – Ela forçou uma cara de desconfiança.

- Talvez... – Eu disse. – Garanto que irei com uma condição, lady Cass!

- E qual seria tal condição, sir Matt? – Respondeu ela, com o ar de importância de uma lady.

- Visitaremos primeiro o Reino Unido! – Falei com a entonação de um sir. Acho que preciso largar um pouco essa vibe de Game Of Thrones. – Para que meus ouvidos possam contemplar aquele maravilhoso sotaque de perto.

- É uma ótima escolha, sir Matt – Ela sorrira enquanto fazia uma reverencia – Seu desejo é uma ordem!

Não sabia mais o que dizer, não conseguia pensar em nenhuma forma de fazer com que aquele assunto rendesse mais. Minha mente havia dado um branco total. Cara, ela é tão linda! Por mim tudo bem ficar aqui só olhando para ela, sem dizer uma palavra, pra sempre! Mas, certamente ela acharia isso estranho. O que é que esse cara estranho tá olhando?

- Que foi? – Perguntou, fazendo uma careta e dando um sorriso sem graça.

- Ah... Nada, não é nada – Sorri constrangido voltando à realidade. Seu esquisito!

- Tudo bem então... – Ela sorrira, franzindo o cenho. – Mas e então? Você é da minha turma agora?

- Como assim? – Perguntei confuso.

Puta merda! Estávamos na escola, como eu não percebi isso? Olhei ao meu redor e então notei que não estávamos só na escola, mas também na porta da sala dela. Todas as garotas, inclusive Amy, estavam encarando nós dois. A garota e o intruso.

- Hmmmm, Cassandra trouxe o namorado para apresentar paras as amiguinhas! – Gritou uma garota de cabelos bem curtos e cacheados que usava óculos de armação vermelha. Cassandra revirou os olhos e riu enquanto me mandava um olhar que para mentes mais otimistas (o que certamente não era o meu caso) poderia significar duas coisas: "Ignore essa vaca" ou "Gosta da ideia de ser meu namorado? Pois, eu gosto!" Amy também revirou os olhos, mas com certa indignação e ódio e passou a olhar para a paisagem que a janela lhe permitia olhar.

- Eu preciso entrar agora, tá legal? – Ela disse,com a mesma carinha fofa de quando teve que ir embora da minha festa. – Nos vemos no intervalo?

- Ah, claro... Tudo bem! – Respondi, com certa tristeza na voz. Forcei-me a sorrir, na intenção de ignorar toda a esquisitice que havia acabado de acontecer. – Espero que sim!

Cassandra era melhor do que eu em ignorar as minhas esquisitices. Antes de finalmente entrar na sala, ela viera mais perto de mim de braços abertos e me abraçara forte, como costumava fazer. Iria mencionar a "Tarde da Jogatina", mas acabei deixando pra lá. Ela já havia entrado na sala e eu não queria chamar mais atenção para mim ou para ela.

Quando o sinal da escola tocara, o que significava que todos os alunos deveriam estar em suas respectivas salas, rapidamente corri para a minha. Não havia muitas pessoas lá, uns sete ou nove alunos no máximo e nenhum deles fazia parte do meu ciclo de amizade. Todos que faziam parte deste ciclo estavam na minha casa e, ao julgar pela hora, já devem estar ouvindo os berros da tia Cassie. Nem mesmo o professor ou professora havia chego ainda (Não faço ideia de que matéria teria aula hoje. A única coisa que sei, é que nas terças-feiras saio da escola depois do intervalo graças aos últimos e inexistentes tempos de artes, cujo professor nunca apareceu, deixando assim os tempos vagos e mandando todos para casa mais cedo).

Sentei-me em uma carteira vazia perto da janela que dava vista para a quadra da escola. É tão estranho e desconfortável sentar aqui sozinho, sem Gih, sem Jon. Normalmente, quando algum deles resolvia não ir à escola, eu logo arrumava alguma desculpa para não ter que vir também. Pois já previa que tudo seria exatamente assim, embaraçoso. O que as pessoas estariam pensando? "Nossa, olha só o louco dos pesadelos sozinho, deve ter matado os próprios amigos." E as coisas ficam ainda mais embaraçosas quando não se tem o que fazer. Não há uma aula para se prestar atenção. Não há coisas no quadro para se copiar. Não há amigos para conversar. Então, no fim, quando você se da conta, está olhando para as pessoas que estão interagindo e internamente reclamando sobre o quanto queria estar em qualquer outro lugar.

Dez minutos se passaram e eu já estava cansado de alternar entre "o cara que observa a paisagem" e "o cara que finge estar dormindo". Resolvi que o melhor a se fazer era pegar o caderno e fazer alguns rabiscos. Lembrei que Jon e eu estávamos pensando seriamente em começar a escrever uma HQ, com isso, comecei a bolar uma história qualquer. Talvez eu me inspirasse o bastante para escrever algo legal e depois ele poderia ilustrar, caso o interessasse.

Era uma noite escura, as ruas estavam vazias e tudo o que Vick e Calebe conseguiam ouvir enquanto cambaleavam bêbados era a canção dos grilos que irradiava por todos os cantos. O relógio de seus celulares marcava meia-noite. Eles ansiavam ficar ainda mais bêbados enquanto procuravam por uma loja de bebidas de esquina que estivesse aberta naquela madrugada de domingo. Enfiando, despreocupados, em suas bocas o gargalo de uma garrafa de vinho barato que tinham em mãos e levando a última dose que restara na garrafa até suas gargantas. Eles nem se quer repararam no corpo que estava recostado na parede logo à frente. O corpo estava trêmulo e quando os dois garotos chegaram perto o bastante para finalmente a atenção de seus olhos ser chamada para o pé iluminado pela fraca luz do único poste da rua. O corpo revelou ser um homem. Sua pele era aparentemente negra, seus cabelos longos e frisados. Seu torso magricelo estava despido e usava apenas uma bermuda jeans apertada cuja cor não podia ser identificada devido ao escuro. Ele acordara aparentemente assustado ao ouvir o som do arrastar dos pés de dois jovens bêbados que se aproximavam. O mendigo reclinou-se de forma que era possível ver sua coluna refletir através de sua pele de tão magro. Parecia estar tão bêbado quanto eles. Os garotos retrocederam um passo e mantiveram-se parados enquanto encaravam o mendigo que agora também os encarava.

 Caleb tremia de pavor por temer ser atacado por um mendigo enquanto estava em seu estado indisposto e vulnerável. Enquanto Vick, que era mais ousado cumprimentara-o com um "Eaê maluco". O som da voz de Vick fez com que o homem levantasse e caminhasse desajeitadamente na direção deles. Entrando totalmente na fraca luz do poste, revelou para os dois garotos, um rosto assustador. Calebe arregalara os olhos e Vick tirara seu sorriso debochado do rosto. O homem estava furioso, tão furioso que rosnara para os garotos enquanto...

- Turma 2002! – Todas as conversas paralelas foram interrompidas, tudo ficou em silêncio e todos passaram a prestar atenção na figura autoritária de postura militar que estava parada na porta de entrada da sala. Era Selyna, a inspetora. – O professor Benjamin não virá dar aula hoje, o que significa que todos vocês estão liberados. Por favor, desçam até o pátio e tomem o rumo da casa de vocês! Agradeço a atenção de todos.

Selyna parecia ter saído das forças especiais da Rússia. Cabelos curtos e brancos, pele bronzeada e cheia de rugas. Ela era gigante, acredito que seja até maior que o tio Lincoln. Seus olhos eram negros, sem brilho, parecia que ela tivera sido obrigada a assistir a cada um de seus companheiros (a) de guerra ser brutalmente assassinados pelo exército inimigo. Mas falando sério, todos sabem que ela não é e nunca foi um soldado de verdade e muito menos tinha vindo da Rússia, mas ainda sim, todos tinham medo dela. Tinham medo da forma como ela olhava, da forma como ela falava, da forma como ela sorria. Ela era mesmo assustadora. Existem boatos que alguns alunos espalham, de que ela estrangulou o ex-marido até a morte com as próprias mãos após ele ter dado um tapa em seu rosto durante uma discussão.

Juntei-me aos alunos que iam em direção aos corredores com o rabo entre as pernas na presença de Selyna. Ainda faltavam três horas para o intervalo e então uma dúvida agoniante me veio em mente: Ir embora ou esperar o intervalo para ver a Cassandra? Droga... É uma escolha difícil, muito difícil. Se eu for para casa agora, terei que aturar tia Cassie berrar em meus ouvidos e serei forçado a me juntar ao mutirão de arrumação da casa (o que honestamente, não estou nem um pouco a fim de fazer). Se eu ficar na escola, verei Cassandra por mais quinze minutos e poderei finalmente convida-la para a "Tarde da Jogatina". Entretanto, nem tudo são flores. Terei de esperar três horas (o que seria ou será horrível) e embora isso possa soar meigo para algumas pessoas, há uma grande chance de Cassandra achar tudo isso muito esquisito e considerar a possibilidade de que estou obcecado por ela. Cara, isso não seria nada legal. Ela pode achar que espera-la por três horas seja um ato psicótico e desesperado de perseguição. É... Isso certamente destruiria todas as minhas chances com ela, se é que tenho alguma.

- Ei, cuzão! – Alguém sussurrou. Alto o bastante para ser ouvido na China.

- O que é que você tá fazendo aqui, cara? – Sorri aliviado, era Dave. Não ficarei aqui sozinho e poderei dizer a Cassandra que só estava fazendo companhia ao Dave caso ela pergunte se eu sou louco por tê-la esperado por três horas. Obrigado, Deus!

- Sabe como é... Depois que sai do banheiro fui correndo pra casa me arrumar. – Ele estava ofegante e a roupa toda amarrotada. – Perdi muita coisa?

- Ah, não... Na verdade, já estamos até liberados. - Respondi

- Que merda... Sério? Por quê? – Ele parecia mesmo desapontado, o que era estranho. Dave não era muito fã da escola.

- O Benjamin não veio hoje – Respondi. – Por que tá tão desapontado cara? Você costuma ser o cara que grita "Graças a Deus" quando temos algum tempo vago.

- Ah, cara... Sabe como é... Tinha planos de chamar a Julie pra conversar – Ele respondeu, parecia bem triste.

- Entendo... – Forcei uma cara triste e dei um amigável tapa no ombro dele. – Mas se te consola, não tenho planos de ir embora, então... Podemos fazer companhia um ao outro enquanto você a espera.

- AH, MOLEQUE! – Ele abriu um sorriso de orelha a orelha – Tá esperando aquela pitanguinha da festa?

- É, por aí... – Revirei os olhos.

- Hmmm, cachorrão mesmo! – Ele disse, enquanto fazia o que intitula "cara de safadão". É quando ele sorri mordendo os lábios com os dentes amostra e inclina a cabeça enquanto foca os olhos dele em você. Balancei negativamente a cabeça com vergonha e sorri.

- O que tá rolando com você e a Julie? – Forcei seriedade para que ele pudesse se abrir, afinal,ficaríamos um bom tempo aqui. – Não tinham terminado?

- Longa história, bro! – Respondeu. Pareceu desconfortável com a minha pergunta. – Vamos procurar um lugar pra sentar. Ficar aqui em pé tá foda já.

Dave era o cara mais brincalhão e doido do meu grupo de amigos. Ele nunca demonstrou nenhum tipo de tristeza antes. Toda vez que contava histórias sobre seus problemas em casa, ele transformava toda a história em uma grande piada, não importando o quão trágica ela fosse. Normalmente, ninguém acreditava nele, pois achavam que ninguém seria capaz de brincar com coisas do tipo. Já fizemos todo o tipo de brincadeira (algumas até poderiam ser consideradas pesadas) com Dave, mas ele nunca pareceu se incomodar. Isso fez com que nós dois nos tornássemos amigos próximos. Éramos dois caras com histórias trágicas que faziam piadas sobre suas próprias tragédias. Mas isso era algo particular nosso, já que nossos amigos não gostavam dessa nossa "qualidade". Ele era um pouco mais baixo que eu, pele morena, corpo atlético, olhos castanhos claros, cabelos raspados nas laterais e um topete.

Sentamos em um dos banquinhos que ficam no pátio da escola. Dave pegou o telefone dele e colocou Snuff do Slipknot para tocar. A música até que combinou com o clima. A iluminação do lugar, as árvores balançando dramaticamente do lado de fora e o frio aconchegante proporcionaram uma vibe triste, mas que era legal de sentir.

- Uau cara, cê tá na merda mesmo! – Sorri para ele, mas ele não sorriu de volta.

- Já pensou em morrer, cara? – Ele me perguntou enquanto olhava fixamente para o chão.

- Ah, bom... Algumas vezes – Respondi surpreso. Nunca pensei que Dave me perguntaria algo assim. – Mas penso nos vídeo games que serão lançados no futuro e chego à conclusão de que ainda vale a pena continuar vivo.

- Eu estou falando sério, cara... – Ele respondeu, ainda olhando para o chão.

- Eu também, cara... – Respondi triste. – Mas, por que a pergunta?

- Sei lá, cara... – Ele olhou para mim. – Já sentiu como se estivesse enjoado da vida? Como se o mundo não tivesse mais nada de novo para conhecer? Como se por mais que você não se sentisse feliz no passado, suas memórias fazem com que o presente seja ainda pior, pois não é como o passado e você sabe que o passado nunca voltará a ser o presente?

- Confuso, cara... – Eu entendia o que ele queria dizer. – Mas olha só, você ainda não fez todas as coisas que o mundo pode te proporcionar. Já usou LSD, por exemplo? Eu também não! Então imagine quantas coisas você ainda não comeu, não usou, ou não fez, mas que você poderia acabar fazendo caso vivesse mais uns trinta anos!

- É... Mas, cara... – Ele começou a dizer.

- "Mas..." nada, mano! – Eu o interrompi – Eu aposto que essa não é a primeira vez que cogita morrer e eu também aposto que muita coisa incrível aconteceu depois e que com certeza você pensou "porra, ainda bem que eu não fiz nenhuma besteira daquela vez". Dessa vez não é diferente. Você ainda vai fazer muita loucura nesse mundo, meu amigo!

- É... Você tem razão, mano – Algumas lágrimas caíram de seus olhos, mas ele sorriu e rapidamente as limpou.

- Eu sei, eu sou o fodão mesmo – Sorri para ele. – Tudo isso é por causa da Julie?

- É... Por aí... – Ele voltara a olhar para o chão.

- Francamente, hein? – Revirei os olhos – Um galã como você pensar em suicídio por causa de uma garota?

- Não é por causa da garota, cara – Ele olhara para mim com os olhos se enchendo de lágrimas novamente. – É por causa de toda a agonia, dor, a porra do vazio que fica. É como se meus órgãos internos estivessem cortados e latejando. Às vezes eu sinto uma fraqueza no corpo e uma falta agoniante de ar. Toda essa sensação não para nem se quer por um segundo. Nada é capaz de distrair a minha mente, nada alivia a dor, nadinha mesmo. A melhor parte do dia é quando estou na escola com você e o resto do grupo, mas esse momento não dura o dia inteiro. Entende o que eu quero dizer? Quando me dou conta já estou em casa, deitado na minha cama, olhando para porra do teto e coisas assim vem à mente. Entende?

- Acho que sim, cara... – Fiquei triste pelo Dave e ainda mais triste por não saber o que dizer e nem como ajuda-lo. – Vai ficar tudo bem, cara...

- Eu espero que sim... – Ele limpou os olhos, sorriu e tentou fingir ser o Dave de sempre. – Já é oficial o lance com a pitanguinha do cabelo colorido?

- Claro que não... – Sorri constrangido

- Cê gosta dela, né moleque? – Ele fez a "cara de safadão" – Tá na sua cara!

- É, acho que sim! – Balancei a cabeça negativamente enquanto sorria. – Não acredito que eu disse isso em voz alta.

- Por que não chama ela para vir com a gente hoje? – Perguntou Dave.

- Ir para onde? – Perguntei,confuso

- A Tarde da Jogatina,ué – Ele revirou os olhos como se fosse óbvio.

- Ah, eu estava pensando em fazer isso mesmo – Respondi.

- Então é melhor você fazer logo! – Ele fez a "cara de safadão" de novo.

- Como assim? – Por que diabos ele está fazendo essa cara?

- Olha ela ali, porra! – Ele apontou para o bebedouro – Corre lá, viado!

Meu coração acelerou. Cassandra estava lá, sozinha, enchendo um copinho de alumínio no bebedouro e tudo o que eu conseguia pensar era em me esconder.

- Acho que eu não estou pronto para isso. – Olhei para Dave – Melhor deixar para lá...

- Se você não levantar essa bunda dai em dez segundos para ir falar com ela... – Dave me olhou com a cara de safadão –... Eu mesmo chamo!

- Você não faria isso – Olhei para ele com desconfiança.

- Ah, é mesmo? – Ele fez uma assustadora e maléfica versão da cara de safadão – Ei, Pitan...!

- Tá legal, tá legal – Eu o impedi antes que fosse tarde. – Eu vou!

- Ah garoto! – Ele sorriu – Boa sorte!

Levantei, me virei para Dave, mostrei meu dedo do meio e caminhei em direção a Cassandra.

- Olá, senhorita Cassandra! – Acenei.

- Olá, senhor Matt – Ela fez uma reverencia. – Não era pro senhor estar na sala de aula?

- Acho que sim. – Sorri – Mas o professor não veio e minha turma já foi liberada.

- Hm, o que faz aqui então? – Ela fez uma careta que parecia ter a mesma intenção da cara de safadão do Dave.

- Faço companhia ao Dave – Respondi imediatamente – Ele tá esperando alguém...

- Ah sim, entendi. – Ela respondeu pensativa – Tenho que te perguntar uma coisa...

- Ah, sério? – Respondi,nervoso – Eu também...

- Hmmm... Você primeiro! – Ela deu um sorriso malicioso.

- Não mesmo... – Respondi com o mesmo sorriso. – Você primeiro!

- Que tal irmos ao mesmo tempo? – Ela sugeriu

- Por mim tudo bem... – Sorri.

- Três... – Começou ela.

- Dois... - Continuei.

- Um!... – Falamos ao mesmo tempo.

- Quer ir na "Tarde da Jogatina" comigo? - Sorri constrangido.
- Quer ir assistir ao ensaio da minha banda? – Ela disse empolgada.

- Ensaio da sua banda? – Perguntei confuso.

- Tarde da Jogatina? – Ela perguntou, também confusa. – Conte mais sobre!

- Ah, é que toda terça-feira meus amigos se reúnem na casa do Dave para jogarmos vídeo game. Seria legal se você fosse, poderia ser da minha equipe no Mortal Kombat.

- Que máximo! – Ela parecia empolgada com a ideia – Que horas?

- Depois da escola... – Sorri para ela – Tudo bem pra você?

- Certo! Passo na sua casa quando estiver pronta. – Ela sorriu. – Mas às sete e meia tenho de ir para o ensaio, ok?

- Perfeito! – Não conseguia conter a minha alegria. Ela aceitou sair comigo!

- Preciso voltar pra sala agora. – Disse ela, levantando seu copinho em um brinde ao ar enquanto se retirava a caminho de sua sala. – Nos vemos mais tarde, senhor Matt!

- Nos vemos mais tarde, senhorita Cassandra! – Acenei em despedida.

Quando me virei para trás, Dave começou a fazer sinais com as mãos que significavam que ele queria saber se tudo havia dado certo. Fiz joinha com as duas mãos junto de um sorriso de orelha a orelha e ele saltou do banquinho em comemoração, como um torcedor na arquibancada após seu time marcar um gol.

- ESSE É MEU GAROTO! – Ele berrou. Tudo o que fiz foi sorrir constrangido enquanto me retirava do pátio para que ninguém soubesse que era a mim que ele se referia.

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Esse foi o quarto capítulo de um livro que está sendo escrito pelos autores Matheus Ramos e Rômulo Fernandes, intitulado "Monstros em Meus Ombros". Ele entrou em contato conosco para que pudêssemos trazer a história pro blog para que vocês possam nos dizer o que acharam até então. Aguardem os próximos capítulos em breve, e se gostaram, comentem! Só assim saberemos se vocês estão gostando dos contos e/ou séries que estamos postando. A qualidade do nosso blog depende muito da sua opinião!