Carne enlatada, vegetais, ração, plantas; inclusive sobras das minhas refeições. Eu tentei de tudo e ainda não sabia como alimentá-la. Ela rejeitava tudo que eu oferecia, chutava o prato para longe e às vezes até cuspia na comida. A cada dia que passava, ela ficava mais magra e desnutrida, contribuindo para que eu ficasse louco de preocupação.
Eu estava desnorteado, até certo dia descer ao porão e flagrá-la alimentando-se de um gato. O desafortunado felino deve ter entrado no recinto empoeirado por alguma das pequenas janelas e encontrou um destino trágico nas mandíbulas dela. Então eu finalmente compreendi o que realmente agradava seu paladar.
Desde aquele dia, habituei-me a trazer para ela alguns gatos que eu capturava pela vizinhança, mas de início, ela não gostou muito. O fato é que ela preferia devorar filhotes, ainda vivos. Conforme ela comia os pequenos animais, ficava menos anêmica e desnutrida. Só depois de uma semana que ela começou a nutrir um gosto por gatos já adultos.
Fiquei muito aborrecido da vez em que fui levar para ela um siamês adulto com as patas amarradas. Quando cheguei ao porão e liguei a lâmpada, vi que ela já estava devorando um rato cinzento e velho.
Eu gritei com ela, tentando fazê-la entender como era difícil capturar os gatos da vizinhança sem ser visto, mas eu só recebia grunhidos como resposta. Mesmo ela não tendo demonstrado qualquer sinal de compreensão, eu lhe entreguei a refeição e posteriormente não desci ao porão por dois dias inteiros.
Admito que fiquei bastante preocupado durante as noites em que não a visitei, mas ela teria de aprender a ter empatia e consideração pela mão que a alimentava, fosse pelo amor ou pela dor.
Repentinamente, ouvi sons de engasgamento e asfixia na terceira noite e corri para o porão para ver o que se passava naquele mausoléu empoeirado. Ela parecia estar quase regurgitando algo e golpeava fortemente a coleira pela qual estava presa. Agachei-me ao seu lado e retirei a coleira pesada de seu pescoço. Naquele momento, estava presa apenas às correntes amarradas aos seus pés.
Ela pôs a mão sobre o abdômen e finalmente regurgitou. Seu vômito trazia consigo secreções asquerosas, sangue e os restos do que antes eram gatos e ratos vivos.
Tive a oportunidade de observá-la melhor quando retirei os tecidos sujos que cobriam seu corpo imundo e ferido. Incrivelmente, eu notei que em nenhum momento ela havia defecado. Depois de terminar de vomitar, ela me encarou com olhos tristes e carentes enquanto murmurava sons animalescos e sem sentido.
Naquele momento, uma tristeza pesada assolou meu coração, pois senti pena dela, sozinha e aprisionada em um lugar miserável. Ela merecia compaixão e até muito mais do que isso. Eventualmente, para satisfazê-la, nos beijamos e transamos como animais selvagens durante toda a madrugada. Em seu mais intenso orgasmo, seu corpo regozijou tremulamente em um êxtase sobrenatural e seus gemidos roucos e animalescos pareciam ser uma obra-prima da natureza oculta sobre sua pele lodosa e repleta de fungos e feridas, fazendo até balançar as teias de aranha sobre nossos corpos nus.
Para minha infelicidade, nosso sexo foi interrompido quando, em um surto de excitação, ela cravou os dentes podres e afiados em meu ombro. Com o susto, eu recuei e retornei a prendê-la à coleira. Abandonei o porão com o ombro esquerdo sangrando e ardendo excruciantemente.
Passei o resto da noite sem conseguir dormir e lembrando o sorriso malicioso que marcou o rosto dela quando percorreu seus lábios ensanguentados com a língua. Ainda tenso e aborrecido, saí para fumar e sentei-me na calçada de casa, às 05h. Posteriormente, capturei um cachorro meio doente que descansava debaixo de uma árvore no final da rua.
Ela adorou a surpresa. Devorou o animal como se fosse um banquete soberbo. Ao término da refeição, gemeu como se tivesse tido um orgasmo e vomitou os restos do cão.
Depois daquele banquete, ela passou a rejeitar gatos. Seu paladar estava se tornando mais refinado e exigente. Eu soube que estaria encrencado, pois satisfazer sua gula seria muito mais difícil, uma vez que cada vez mais ela exigiria algo maior.
E do mesmo jeito, ela continuava a vomitar por todas as noites. Não conseguia digerir por completo suas refeições e regurgitava de volta tudo que empurrava garganta abaixo. Eu estava ficando um pouco irritado com o fato de que ela devorava e expelia de si os animais por pura diversão. O que despertou minha curiosidade foi como ela estava ficando cada vez mais forte e corpulenta.
Mas o que me incentivou a tomar nota destes acontecimentos foi a noite em que eu lhe trouxera um filhote de porco ainda vivo, pois esta era a única condição que a fazia aceitar os banquetes.
Eu empurrei o animal na direção dela enquanto o suíno emitia um guincho de pavor e resistia com todas as suas forças. Ela agarrou o animal com uma voracidade tão grande que acabou devorando a metade meu dedo anelar no processo.
Meu grito ecoou por todo aquele recinto bolorento. Eu a amaldiçoei enquanto ela apenas se preocupava em saborear a refeição para posteriormente vomitá-la. Subi diretamente para o banheiro e tratei do meu dedo mutilado.
Passei dias sem visita-la desde então. Retornei ao porão apenas quando achei necessário e tive uma surpresa que me gelou a alma.
Ela não estava mais lá. A coleira e as correntes que antes prendiam suas pernas haviam sido arrancadas da parede de concreto, e no chão, jazia o porco mutilado e regurgitado. Entre os restos mortais do suíno brutalmente moído, estava a outra metade do meu dedo anelar, um pouco mastigado.
Eu segui uma trilha do que parecia ser vômito até que a mesma terminasse no meu quarto, especificamente debaixo da cama. Agachei-me e me deparei com a visão dela deitada sob o móvel como um cão.
E debaixo da cama, ela gargalhava como uma hiena rouca, mas não me ofereceu perigo. Prometi mantê-la lá mesmo, aonde provavelmente ela sentia-se mais confortável e segura sem aquelas correntes. Nas noites seguintes, continuei a lhe trazer cães, mas ela os rejeitava, além de rejeitar tudo mais que eu lhe oferecia.
Em certa noite, acordei por causa de uma dor ardente na mesma mão que havia sido mutilada pelos dentes animalescos dela. Quando liguei a luz do abajur e verifiquei, um calafrio percorreu todo meu corpo.
Meu dedo médio e indicador haviam sido completamente arrancados da minha mão. Em uma sincronia horrenda, ela vomitou os dois dedos para fora da parte de baixo da cama no mesmo momento em que eu gritei de dor e espanto. Foi naquela noite que percebi que, mesmo sem a intenção de fazê-lo, eu havia criado um monstro e possivelmente, um perigo para a vizinhança.
Por fim, é por estes acontecimentos que eu tenho escrito estas notas. Por não saber quanto tempo de vida ainda tenho e por não conseguir imaginar o que ela faria se eu a abandonasse. Espero que, se algo de ruim me acontecer, alguém encontre estas anotações que deixarei sobre a cama e alerte a vizinhança o mais rápido possível.
Vou me trancar no banheiro e tentar dormir lá mesmo, caso eu não esteja vivo pela manhã, provavelmente encontrarão o que sobrou de mim em algum lugar da casa, mas o que realmente importa agora é que conheçam o real perigo que habita debaixo da minha cama e o sentimento de culpa que tenho por ter deixado esta coisa crescer, por eu não ter tido coragem de meter uma bala de espingarda em sua cabeça.
Espero que saibam da existência desta coisa que dá risadas indescritíveis todas as noites e devora outras coisas vivas e as vomita por puro prazer. Ela já se alimentou de pequenos ratos, cães, porcos e gatos. O que mais me preocupa agora e o que mais me faz temer pela minha vida e a dos outros, é que ela está começando a gostar de pessoas.
Autor: Jean Marcus
Revisão: Gabriela Prado