Eu tenho pensado nele – ou nela – durante toda a semana. Não consegui dormir e muito menos comer. Larguei meu trabalho (acho que “parei de ir” ficaria mais adequado) então presumi que não esteja mais empregado lá. Meus olhos se afundam nas olheiras e eu sento em frente ao meu computador dia e noite tentando me manter entretido, e mais importante, acordado.
Se eu dormir, temo que nunca acorde. Tenho medo que ele – ou ela – vá me encontrar. Não sei o que quero dizer com “encontrar”. Não acho que esteja por aí tentando encontrar qualquer coisa ou pessoa, mas de qualquer forma, não saiu da minha mente desde aquela noite. E eu tenho medo de que não saia nunca... Medo... Não sinto medo há anos, na verdade, desde que eu era uma criança.
Café, bebidas energéticas e doces que restaram da noite de Halloween não são mais suficientes. Estou simplesmente digitando para ficar acordado agora, não sei mais o que fazer. Cada vez que eu fecho meus olhos eu vejo. Não é ameaçador, nem raivoso, mas a simples presença dele manda arrepios por toda extensão do meu corpo, tenho pensamentos correndo na minha cabeça e eu acho que o único jeito de ter algum tipo de paz é digitando eles aqui... Até porque eu não tenho nenhuma outra escolha, são quase quatro da manhã, meu apartamento está vazio, nada pode ser escutado além do ronco do motor da geladeira, e esse som é tranqüilizante.
Então, devo explicar essa experiência minha apenas para tirá-la de mim, da minha cabeça. Talvez quem estiver lendo possa entender exatamente o que aconteceu, ou apenas sentir conforto no que eu vi... Porque eu ainda não tenho certeza se o que vi foi imaginário ou real, talvez eu consiga dormir depois de contar tudo aqui.
Vivo nesse bairro desde que eu era criança e conheço tudo por aqui, depois de me formar na faculdade ano passado eu voltei para o mesmo bairro para morar com a minha mãe, ela me ofereceu um lugar para ficar até que eu conseguisse estabilizar a minha carreira ou um trabalho que pagasse um salário digno. Desde então tenho procurado por trabalho que me pagasse pelo menos um salário razoável até que eu conseguisse seguir a minha carreira, e depois de trabalhar como vendedor por algum tempo, meu carro começou a apresentar problemas devido às grandes distâncias que eu percorria, e eu percebi que precisava de um trabalho mais perto de mim, já que não poderia mais contar com o meu veículo.
Em menos de uma semana eu consegui um trabalho numa loja de departamento filiada com o Shopping local a apenas alguns minutos de distância da minha casa. Varejo nunca foi um grande interesse pra mim, porque sempre fui introvertido, mas eu precisava de algum trabalho, mesmo que ganhasse pouco, enquanto isso eu vendi meu carro e comprei uma bicicleta, guardando o resto do dinheiro para qualquer outra necessidade.
Não demorou muito para que eu começasse a odiar esse trabalho, eu não pertencia ali. Meu departamento era voltado para mulheres e as pessoas que trabalhavam comigo eram mulheres de meia idade com problemas na coluna. Ninguém falava comigo ou descobriu meu nome durante os três meses e doze dias que eu trabalhei lá. Eu estava irritado com a situação, mas tentava sempre ver o lado positivo da situação: Era o trabalho mais próximo que eu já tive, e não ter que pagar pelo seguro do carro ou gasolina me fez salvar muito dinheiro, os turnos eram curtos e as horas de trabalho, poucas.
Essa noite em particular, a noite que fica se repetindo na minha cabeça, aconteceu há mais ou menos uma semana atrás. Era Sexta-Feira, e eu estava fechando a loja naquela noite, sabendo que sairia tarde. Havia muitos clientes e por essa razão nós continuamos com as lojas abertas até as 23h00min, mesmo sabendo que o Shopping fecha as 21h00min e o nosso horário de trabalho só vai até as 22h00min.
Contei o dinheiro do meu caixa e comecei a ajudar os outros empregados a organizar e limpar os departamentos; lembro-me daquele ser um momento calmo, quando a loja é fechada, a maioria da luzes são apagadas, mas a musica continua enquanto nós limpamos e organizamos.
Nessa noite, não havia música. A loja estava escura e simplesmente calma, não necessariamente misteriosa, mas manteve o mesmo tom pelo resto da noite. Eu decidi começar pela sessão masculina, já que aquela era a única parte da loja em que eu me sentia confortável (geralmente me obrigavam a embalar calcinhas femininas, um pouco estranho) e comecei a dobrar as camisetas que estavam ali, tudo estava bagunçado, como se um tornado houvesse passado lá.
Depois de organizar todo o local dei uma olhada rápida ao meu relógio e percebi que eram quase 00h00min, geralmente nós acabamos de limpar e o gerente da loja vem nos dizer que podemos ir embora, e assim o fiz, esperando calmamente perto da sessão de utensílios até que ele veio e me liberou.
Geralmente, sete ou oito empregados fecham a loja toda noite e essa noite não foi diferente. Nós todos fomos até a sala de descanso onde nosso gerente conversou rapidamente conosco até a hora exata de sairmos dali, ele falou sobre as vendas e os lucros, mas para ser sincero, eu geralmente não presto atenção nessas coisas. Apenas observei meu celular (que já estava quase morto) e me posicionei perto da porta, para que pudesse sair dali.
Quando tudo havia sido dito, nós todos saímos juntos e caminhamos até o estacionamento... Desculpe, eu me esqueci de mencionar que esse departamento está dividido em duas partes. A maioria das pessoas estaciona no segundo andar, porque lá estão os escritórios. Eu, por outro lado, acorrento minha bicicleta no primeiro andar, então, me separei deles e tomei a minha direção de sempre. Eu não consigo me encaixar nesse trabalho, então para mim é muito adequado caminhar sozinho até minha bicicleta enquanto todos os outros vão juntos por outro caminho.
Enfim, eu continuei caminhando até alcançar o estacionamento, que estava deserto e escuro, obviamente devido ao horário. Parei lá fora por um momento e fechei o zíper do meu moletom. A noite estava calma demais – e fresca – o que é normal aqui para as noites de outono. Observei a rua e notei uma pequena loja de Halloween, um banner grande dizia “Cidade de Halloween” e as janelas estavam cheias de frases intimidadoras, pinturas e máscaras de palhaços assustadoras.
Sorri enquanto alcançava minha bicicleta, me perguntando qual fantasia usaria para o Halloween desse ano, talvez eu e minha namorada pudéssemos criar algo juntos.
Pulei na bicicleta e comecei a pedalar próximo ao passeio e não demorou muito até eu perceber que minha bicicleta estava lenta. Olhei para baixo e notei que meu pneu da frente estava murcho, olhei para trás e percebi que o outro não estava diferente. Aproximei-me dos pneus e os analisei calmamente... Será que eu havia passado por cima de algum pedaço de vidro no caminho da minha casa para o trabalho? Acho que não... Também acho que não tenho o dinheiro suficiente para comprar pneus novos para uma bicicleta que comprei há apenas alguns meses atrás.
Enquanto eu tentava achar uma solução para aquele problema, percebi que os pneus estavam sem as tampas de ar. Eu as perdi? Alguém as roubou? Quem roubaria duas tampas de ar?
Independente disso, eu não ia conseguir seguir o meu trajeto inteiro naquela bicicleta. Minha casa estava a apenas 20 minutos de distância dali, a única coisa que faria essa caminhada ser desconfortável seria o vento forte da noite. Desde o momento que eu saí da loja o vento tocou meu rosto de forma não muito amistosa, rugindo como em desprazer. Subi na bicicleta novamente numa tentativa frustrada de conseguir chegar em casa mais rápido, mas depois de algumas pedaladas percebi que não iria dar certo, saindo da bicicleta novamente e terminei de fechar o zíper – por completo – e voltei ao meu trajeto, caminhando desta vez.
Continuei caminhando em uma rua que é geralmente movimentada, mas não havia sequer um carro ali. As luzes da rua estavam diferentes e nenhuma pessoa em um carro há alguns metros de distância poderiam me ver ali. Como eu mencionei anteriormente, eu cresci nesse bairro e eu o conhecia muito bem... Já que estava tão frio, decidi caminhar por outras ruas onde o vento não me fizesse sentir tão desconfortável, sem mencionar o fato de que toda vez que eu caminho numa principal me faz sentir como se eu estivesse vulnerável.
Decidi isso em voz alta – como geralmente faço quando estou sozinho – e continuei conversando até alcançar o final do quarteirão e cortar caminho por um beco que me levou para fora da área de comércio e me colocou diretamente no meu bairro.
Dois pequenos Shoppings abandonados e um banco – também fora de uso – faziam parte do beco, na verdade, todo o caminho que tomei para sair da rua principal até o meu bairro era composto por pequenos becos, e esse particularmente poderia parecer ameaçador para algumas pessoas. O chão estava partido em algumas partes e ratoeiras descansavam por quase toda extensão do mesmo, apenas quatro ou cinco lâmpadas amarelas iluminavam o caminho, fazendo com que grande parte do beco ficasse obscuro... Um prato cheio para ladrões, mas para ser honesto, minha aparência não era a mais inocente de todas e não me sentiria intimidado com pouca coisa, talvez essa atitude tenha me levado até onde eu estou agora.
Enquanto eu caminhava e continuava a conversa comigo mesmo, alcancei a esquina do próximo beco e me virei, arrastando minha bicicleta comigo e continuei caminhando no ritmo que eu já estava. Quando olhei para frente, notei uma figura a alguns metros de distância de mim, na metade do beco, e parei automaticamente – porque eu não queria intimidar a pessoa – afinal, um cara de barba com um moletom preto e capuz na cabeça andando em um beco escuro não diz necessariamente que eu sou uma boa pessoa.
Pensei em dar a volta e caminhar na direção oposta, caminhando ao redor do quarteirão, mas ao observar melhor, percebi que a figura estava de costas para mim, caminhando na mesma direção que eu. Esperei até que caminhasse embaixo de uma lâmpada para que eu pudesse analisar perfeitamente o “tipo” de pessoa que seria. Eu posso até parecer intimidante, mas talvez ele também parecesse, e se esse fosse o caso, eu daria a volta pelo quarteirão.
Melhor prevenir do que remediar.
Percebo que está caminhando lentamente, talvez caminhando não seja a palavra adequada... Acho que “mancando” seria mais apropriado... Enfim, depois do que parecem eternos minutos, ele finalmente caminha embaixo de um poste de luz e assim que a luz o alcança, algo perturbador atinge meus olhos. Eu consigo enxergar algo parecido com um cidadão idoso caminhando sem roupa nas ruas. O corpo parece entroncado e decrépito, as costas estão arqueadas e a pele franzida e esticada... Um dos braços parece estar dobrado enquanto o outro apenas se balança conforme o corpo se movimenta, e o jeito de andar... Se é que eu posso chamar aquilo de andar, parecia mais um cambalear agora. Como se cada passo estivesse o obrigando a fazer esforço demais e isso faz com que ele se mova de forma extremamente lenta.
Por alguma razão eu deduzi que fosse uma mulher idosa e a minha mente viajou para a casa de idosos que ficava a apenas alguns metros de distância dali, talvez ela houvesse escapado no meio da noite? Talvez fosse sonâmbula, isso explica o fato de ela não estar vestindo nenhuma roupa. Tirei meu celular do bolso e tentei desbloquear a tela, mas a bateria estava morta. Isso geralmente acontece com meu celular quando eu fico mais tempo que o normal no trabalho; olhei ao redor e não vi nenhuma pessoa ou veículo ali além dessa mulher e eu, então guardei meu celular novamente e continuei caminhando no beco, minha curiosidade tomando todo o lugar que deveria ser ocupado pela razão.
Caminhei calmamente atrás dela, mas não importa o quão devagar eu fosse, parecia me aproximar cada vez mais dela mesmo tentando manter a distância. A mulher parecia realmente não ter notado que eu estava ali...
Quanto mais próximo eu chegava mais nitidamente podia enxergar o que estava a minha frente, eu me lembro dos detalhes... Os ombros esguios e ossudos, a espinha parecia quase sair da pele em sua posição torta. O pescoço estava numa posição quase horizontal e a cabeça lembrava vagamente a de um urubu procurando a próxima carcaça; o corpo no geral parecia estar sofrendo com algum tipo de atrito, foi nesse momento que percebi que já havia alcançado a metade do beco. Minha bicicleta fazia barulhos de “clicks” com cada passo que eu dava, e ainda assim eu parecia invisível para aquela mulher. Eu estava assustado, mas também intrigado, não me sentia intimidado por essa pessoa, aliás, a única coisa que eu conseguia sentir por ela era pena.
Continuei caminhando pelo beco e chegando cada vez mais perto dela, cada vez que eu a observava encontrava detalhes diferentes e absurdos; a pele estava marcada, coberta por manchas escuras, verrugas e veias que pareciam teias de aranha, descansando na pele dela como se fossem parte do corpo dela há muito tempo. Pelo braço que se balançava com o movimento do corpo, observei dedos longos e esguios e as unhas eram amareladas e gigantescas. A noite parecia ainda mais silenciosa, e quando me aproximei novamente pude ouvir suspiros abafados, era delicado, mas assustadoramente único. Lembrei instantaneamente dos tubos que eu costumava usar quando era criança, eles faziam um barulho específico, parecido com esse.
Enquanto eu continuava caminhando, analisei a cabeça. Em algumas partes parecia não ter cabelo, o que me fez pensar que era um homem... Afastei-me um pouco e tentei alcançá-lo – ou alcançá-la – pela lateral, tentando formar uma imagem de perfil específica, e por um momento eu quase queria que ela me notasse. Quando alcancei a posição que tanto queria avistei o que parecia uma longa e agressiva protuberância; eu associei a cabeça de um cachorro, as orelhas quase como de elfos, mas abaixadas, e a boca estava aberta, tentando – ou não – formar um sorriso forçado. Como se estivesse posicionado para uma foto de família durante mais tempo que o normal, os olhos eram negros e grandes, e pareciam posicionados na lateral da cabeça.
Depois de observar sua expressão facial e inspecionar seu corpo novamente, meu cérebro decidiu que isso não poderia ser um ser humano. Parece que eu levei tempo demais para perceber aquilo, e foi aí que a súbita sensação de medo correu por todo meu corpo. Eu estava no beco por pelo menos dois minutos, mas já parecia como uma eternidade; diminui a velocidade dos meus passos e me posicionei atrás da criatura novamente, notando que quase ao final do beco havia mais um poste de luz e percebi que estava tremendo e respirando rapidamente – e não era por causa do frio –. Estava a apenas alguns metros de distância quando pensei em correr para o lado oposto o mais rápido possível...
Eu estava preso em um beco escuro com uma criatura que não conseguia identificar e uma bicicleta incapaz de me ajudar a escapar mais rápido. Tentei pensar em uma forma de escapar dali, o mais metódica possível...
Quando de repente, a criatura parou.
Eu hesitei rapidamente, e lá ficou parada a coisa, embaixo da lâmpada. Sua forma animalesca e sua pele pálida totalmente visível pra mim, as pernas contorcidas e trêmulas, a cabeça encarando o chão, e a respiração fazendo um barulho muito mais alto.
Parecia que havia se passado horas, mas eu provavelmente me congelei por alguns segundos. Não pensei, mas precisava fazer alguma coisa, eu precisava sair dali.
Então respirei fundo e voltei a caminhar sem pensar no que estava parado ali, passando ao lado da criatura, deixei minha cabeça abaixada, mas quando eu estava à frente dele – daquilo – não pude evitar olhar com o canto dos olhos. Ficou parado lá em silêncio e eu encarei os pequenos dentes amarelos saindo da boca dela, daquele sorriso forçado... E então nossos olhos se encontraram, mas ela não podia me olhar nos olhos por mais de alguns segundos, parecia quase com vergonha de si mesma. Eu não posso dizer que não senti pena dessa... Criatura.
Assim que passei por ela tentei me convencer de que continuar caminhando normalmente seria a melhor opção, mas logo falhei no meu objetivo, correndo de forma quase devastadora até alcançar a próxima rua. Respirei fundo diversas vezes e olhei para o beco novamente, tendo certeza de que estava a uma distância razoável, e mesmo sabendo que eu estava tremendo de medo do que eu havia encontrado eu fiquei parado próximo dali por quase dez minutos esperando que a criatura saísse do beco em algum momento.
Olhando para trás consegui ver a imagem dela ainda lá parada, mas de uma distância maior, distinta, quase uma sombra. Aquilo era suficiente, e eu queria ir para casa, mas chegando lá não consegui dormir como queria... Ainda não consigo, também não sei se aquilo realmente aconteceu, se eu realmente encontrei aquela criatura na noite de Sexta-Feira.
Uma parte de mim quer voltar ao beco só para ver se não consigo encontrá-la mais uma vez, mas isso só traria mais vergonha para a criatura... Como se só o fato de ter sido visto fosse castigo suficiente para nós dois.
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