O silêncio não é quieto, é barulhento. É um rugido ensurdecedor.
Eu já experimentei o sossego antes; eu sempre inicio o meu
trabalho às 04h00minhrs, e eu costumava achar que o “silêncio” é o barulho que
sai dos postes de eletricidade enquanto eu caminho, alguns pássaros cantando,
cachorros – ou raposas – uivando longe dali, o vento quente e delicado e mais
um milhão de coisas que você não consegue notar. Silêncio não é nenhuma dessas
coisas, silêncio é a falta até mesmo dos barulhos mais minimizados, e o
silêncio precisa ser notado.
Eu estava indo até meu escritório quando o senti. Era uma
manhã fresca então eu decidi não usar casaco, logo pude sentir o frio envolvendo
meu tronco calmamente. Abracei meus próprios braços enquanto eu caminhava, eu
não estava atrasado ou distante demais de casa; eu poderia facilmente ter
retornado para pegar o meu casaco, ou uma jaqueta, mas eu sentia como se não
devesse. Não sabia o motivo disso, mas continuei apenas caminhando e encarando
a rua, um pé na frente do outro.
Estava escuro, mas não certo. Sem barulho vindo dos postes
de energia ou qualquer janela e carros não passavam perto de mim, nada além do
lento e assustador brilho da manhã.
Depois de quinze minutos caminhando, me encontrei no final
da rua. Eu podia ver o prédio em que eu trabalhava – meu destino naquela manhã
– mas o lobby estava vazio e escuro, pensei que talvez pudesse ter sido uma
queda de energia e voltei a caminhar na direção dele rapidamente. Enquanto eu
andava, meus passos pareciam ficar cada vez mais altos, ecoando de forma
irritante, deixando um rastro de barulho atrás de mim. Senti meu coração bater
mais forte, como se acompanhasse o som dos meus pés, o ar ficando cada vez mais
frio, e antes que eu pudesse notar, estava correndo.
Alcancei as portas de vidro, mas elas não se abriram
automaticamente, fazendo com que eu tivesse que procurar pelo meu cartão e
assim que o senti pressionado contra a minha perna, em um dos meus bolsos, o
tirei de lá. Passei o objeto pelo mecanismo, mas nada além de um simples
“click” aconteceu.
Decidi correr o cartão novamente pelo mecanismo e frustrado
pela falta resposta, acabei repetindo o movimento mais vezes do que eu poderia
contar.
Claro que não vai
funcionar... E eu não queria ficar lá parado sozinho, o horário não me era
favorável. Apoiei-me no vidro e tentei enxergar através dele, correndo meus
olhos por toda a extensão do local, mas não havia ninguém lá, nem mesmo um
zelador ou um guarda; demorei em me convencer de que o prédio estava vazio e
encarei o lobby escuro por mais alguns segundos, mas não havia nada. Nenhum som.
Sentei-me ao chão observando enquanto o sol ficava cada vez
mais forte, o dia me trouxe um alívio instantâneo; era mais quente, pelo menos,
e o fato de que eu conseguia enxergar a estrada quase toda de onde eu me
localizava fez-me sentir um pouco melhor. Mas as sombras rígidas se moviam no
chão de forma assustadora e os prédios ainda pareciam vazios demais.
O céu estava completamente azul, e durante todo o tempo que
eu fiquei sentado ali – provavelmente por uma hora – só pude ver uma única
aeronave, que de longe parecia apenas uma nuvem solitária. Não havia carros nas
ruas... Os prédios estavam vazios.
Depois de mais algum tempo me coloquei de pé e decidi voltar
para casa, exposta a luz do sol, a cidade parecia mais deserta do que antes, as
estradas pareciam se esticar infinitamente, os prédios pareciam apenas borrões
gigantes.
Eu nunca havia feito esse trajeto durante o dia... Sempre
chegando tão cedo e indo embora tão tarde.
Tudo estava estranho, tudo era cinza, eu nunca havia notado
antes, mas o mundo todo é cinza.
O silêncio sempre esteve atrás de mim.
A jornada levou mais tempo do que o normal, ou talvez o
silêncio e a calma pairando em todo o caminho fez o trajeto parecer maior;
estremeci quando alcancei meu prédio, abri a porta e caminhei preguiçosamente
pelos degraus, os mesmos degraus que eu uso todos os dias, mas até isso parecia
diferente.
O barulho das luzes quase estragadas do corredor, barulho de
TV ecoando pelas paredes, vozes abafadas de parentes discutindo em outros
apartamentos – eu sentia falta daquilo.
Alcancei minha porta e me apoiei nela, no intuito de
procurar pelas minhas chaves, mas ela se abriu rapidamente e eu senti meu
coração parar.
Entrei no apartamento devagar e lá dentro eu parecia sentir
mais frio do que fora; olhei para todos os lados, mas nada estava fora do lugar,
então eu caminhei até alcançar a sala. Minha TV, meu PS3 e meu notebook ainda estavam
ali e eu respirei aliviado, dando a volta e indo até o meu quarto.
A porta estava quase fechada, mas assim que eu a empurrei, a
luz do dia invadiu o cômodo e a coisa que lá estava, se moveu. Magro e com os olhos brancos, se virou para onde a luz entrava.
Parecia assustado por um momento e eu decidi correr em
direção dele, medo sendo subitamente substituído por raiva, mas por mais rápido
que eu tenha tentado alcançá-lo, a única coisa que pude ver foi um vulto
vermelho passando pela minha janela.
Aproximei-me da janela e encarei a rua, conseguindo ver o
que parecia um homem nu e sujo entrando em um dos becos próximos dali. Pisquei,
tentando focar no meu próprio quarto, novamente, nada ali parecia fora do lugar
e por até mesmo uma fração de segundo eu tentei me convencer de que não
precisava me preocupar.
Foi aí que eu vi as pegadas.
Sangue, desde a janela e no chão do quarto até a janela
novamente. Pegadas grosseiras, vermelhas e feias pairavam ali; meu estômago
embrulhou de vez e a única coisa que eu pude fazer naquele momento foi sair de
lá.
Voltei para a sala fechando todas as portas atrás de mim e
não retornei para o meu quarto. Entrei no meu closet, peguei um taco de
baseball que eu não usava desde os doze anos de idade e sentei-me em uma
cadeira.
Eu podia sentir o suor escorrendo pela minha testa, e minha
cabeça coçava de forma irritante; cada vez que eu coçava, ficava pior, mas
minha respiração e meu batimento cardíaco pelo menos haviam voltado ao normal
enquanto eu caminhava pela casa.
Senti fome, mas como sempre minha cozinha estava vazia, eu sempre faço minhas refeições
no trabalho ou no restaurante mais próximo, mas naquele dia isso estaria fora
de cogitação, e a fome ainda prevalecia, então, eu decidi sair.
A escadaria estava vazia,
mas o clima parecia pior e mais frio. Eu andava como se estivesse me escondendo
de alguém e não podia evitar o impulso de procurar por pessoas a cada degrau
que eu descia.
Quando finalmente alcancei a rua, senti meus braços coçando
novamente, mas ignorei aquilo e fui em direção ao mercado mais próximo dali,
até alcançar o beco que o invasor havia usado para fugir... Havia algumas
pegadas ali, mas nada comparado com as que repousavam no meu quarto.
Continuei caminhando e observando o chão, mas assim que
tirei meus olhos do asfalto, eu o vi; ele estava parado na estrada ao final do
beco, a apenas alguns metros de distância de mim, meus dedos se fecharam
fortemente ao redor do bastão.
Pensei ter visto algo no canto dos olhos, atrás de mim dessa
vez. Havia mais de um ali, o que me fez desistir de persegui-lo. Eles não
viriam atrás de mim.
Corri até parar em frente ao mercado, estava fechado, claro,
mas eu bati o bastão contra o vidro da porta sem pensar duas vezes e entrei
ali, indo em direção a comida. Eu sentia tanta fome que não podia esperar mais,
abri um saco de Doritos e dentro dele se localizava uma poeira branca e fina.
Joguei o saco fora e abri outro, a mesma coisa estava dentro. Fui em direção a
chocolates, bolos e biscoitos, mas todos estavam iguais. Nada além de poeira.
Meu estômago parecia ter vida própria de tanta fome e eu deitei
no chão, rolando de um lado para o outro enquanto uma tosse doentia tomava
conta dos meus pulmões.
Tudo parecia girar. Que
merda estava acontecendo? Onde estava todo mundo?
Tossi e tossi até sentir o gosto de sangue na minha boca,
minha pele coçava freneticamente e nem se eu tentasse ignorar aquilo
adiantaria; tentei me controlar, sentando-me no chão e encarando o nada
enquanto minha respiração se normalizava mais uma vez, até eu ouvir nada além
do silêncio.
O silêncio, e então, um arranhão.
Eu parei incrédulo, aquele era o primeiro som que eu escutava
no dia – quero dizer, que não havia sido feito por mim –. Arrastei-me até o
barulho, estava vindo do outro lado da loja, mas eu tentei ser o mais
silencioso possível.
Aproximando-me de uma das prateleiras tentei ver quem – ou o
que – estava ali, e pegadas vermelhas ocuparam a minha visão.
De repente o barulho parou e eu olhei para cima,
acompanhando o som de respiração que pairava ali, levantando-me rapidamente e
apontando meu bastão para qualquer direção.
Um deles correu pela porta e eu corri atrás dele, consegui
vê-lo quase que perfeitamente enquanto ele caminhava até o outro lado da rua.
Eles não eram humanos... O corpo era o mesmo, mas não havia
pele. Apenas músculo e sangue, sangue em todo lugar; escorrendo pelos dedos,
melando o chão. A figura havia parado ali, do outro lado e continuava a me
encarar. Eu podia ver os olhos, redondos demais devido a falta de pele, não
havia cílios, ou pálpebras... Dei um passo à frente e a coisa deu um passo para
trás, balançando sua cabeça.
Dei outro passo e a coisa virou e saiu correndo rapidamente,
corri até onde o havia visto, mas ele não estava mais ali.
Eu sentei no chão.
O Sol estava bem acima de mim.
Não sei por quanto tempo sentei ali, mas nada se moveu. O
sol continuava vivido no céu e as sombras corriam harmoniosamente no asfalto.
Continuei coçando meus braços, nem pude notar quando eles
começaram a sangrar. Enquanto isso o dia passava e o clima só piorava, mas eu
não queria me mover. Estremeci por causa do frio e encarei a rua ao meu lado...
Lá, as figuras estavam paradas e pareciam me encarar por muito tempo.
Meu coração se desgovernou novamente e eu tentei me sentar
de forma mais ameaçadora, ainda me coçando – meu pulso dessa vez – eles não se
moviam, nada se movia, estava frio, mas eu suava muito, meu corpo inteiro
coçava, e partes das minhas roupas estavam vermelhas por causa do sangue.
Quando eu olhei para o lado novamente, percebi que apesar de
todos estarem ali, apenas um deles caminhavam até minha direção. Enquanto ele
se aproximava, eu podia vê-lo melhor, era idêntico ao outro, apenas músculo e
sangue, como se fosse uma ilustração tirada de um livro de Biologia.
Parou bruscamente e me encarou, assim como o outro havia me
encarado anteriormente.
Eu estava assustado demais para me mover, eu estava com frio e me coçando mais do que
nunca. Eu nem notei que já estava quase que completamente nu, apenas
continuei me coçando.
Quando a coceira parasse...
Talvez eu pudesse me mover novamente. Talvez eles me deixassem em paz.
Eu praticamente arrancava pedaços de mim mesmo naquele
momento, mas a dor era boa.
Fez com que eu me sentisse livre.
Caramba...Muito boa creepy.
ResponderExcluir...ai criatura fala: bem vindo ao bando...
Nuss, só músculos e osso.
ResponderExcluirMds ...
ResponderExcluirMuito boa essa creepy, parabéns Hel C!!!
ResponderExcluirO final poderia ser melhor, porém, todo o decorrer da história e todo o contexto, está muito bom!
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