Eu era o filho mais velho de um senhor feudal muito repudiado pelos servos, e acredito que esse asco seja de minha pessoa também, e de toda minha família. Eu era um jovem muito inconseqüente, não tinha comprometimento com minhas responsabilidades e deveres. Eu e meus irmãos freqüentemente íamos a bordeis e nos deleitávamos dos serviços das mais finas cortesãs do reino, e esse habito perdurou mesmo depois de que foi me dado a mão de minha prima em casamento. Apesar de todas as terras serem minhas por direito, eu tinha muito afeto por meus irmãos e éramos bastante ligados, a ponto de que eu concordei em ceder parte das terras a todos quando o estúpido de nosso pai morresse.
E foi em uma dessas noites de luxuria que tudo começou.
Eu já estava casado e minha esposa estava esperando um filho meu. O fato é que eu não tinha nenhum apresso pela minha cônjuge, embora a mesma me amasse com fervor. Meu filho estava para nascer na próxima lua cheia, e seguindo minha natureza inconseqüente a risca, eu estava em um bordel com três prostitutas. No êxtase da orgia, um de meus irmãos adentrou o quarto que eu estava sendo atendido. Ele me informou que minha esposa havia entrado em trabalho de parto.
Me vesti apressadamente e deixei algum dinheiro sobre a cama, depois parti. O problema é que o bordel ficava longe da mansão de minha família, e se meu irmão saiu de lá no momento em que minha esposa entrou em trabalho de parto, a essa altura ela já deveria ter dado a luz. Praguejei comigo mesmo, mas não por perder o nascimento de meu primeiro filho, e sim, que eu não sabia como iria explicar a minha ausência.
Acreditava eu estar bêbado quando olhei para o céu daquela noite, mas estava seguro de que não. Eu e meu irmão cavalgávamos as pressas, iluminado pelas estrelas e pela... Lua.
Mas a lua estava diferente. Um calafrio percorreu minha espinha quando me dei conta que a lua estava vermelha alaranjada. Como se não bastasse eu não saber como explicar onde estava, meu filho iria nascer sob uma lua vermelha. Deus do céu, isso só poderia ser um mal pressagio, um castigo do todo poderoso sobre meu ser. Um nó se formava em minha garganta, juntamente com o remorso em meu coração.
E durante esse pesar, algo de estranho aconteceu.
A estrada estava bastante escura, e eu ouvi meu irmão gritar. Meu cavalo deu uma guinada furiosa e eu fui arremessado para frente. Depois disso, meu mundo ficou escuro e confuso. Eu tenho algumas vagas lembranças que eu me acordava por alguns segundo, sentindo uma terrível náusea, mas logo depois voltava a adormecer. Sabe lá Deus quanto tempo eu fiquei nesse devaneio, mas o que aconteceu depois me fez ter dores de cabeça por meses.
Me acordei em alguma coisa bastante confortável. Era melhor que minha cama, mesmo que ela fosse uma das melhores do feudo, esse lugar conseguia ser muito mais confortável. O lugar que eu estava me deixou tonto. Era uma sala pequena, de tamanho retangular e de paredes, teto e chão de cor cinza claro. A principio eu pensei estar em uma caverna, mas daí me dei conta que o lugar não tinha portas ou janela.
Meu desespero começou ai. Eu comecei a bater nas paredes, gritando para me tirarem dali, mas era inútil. Estava preso em algum lugar, completamente sem saída. Comecei a suar frio e a me desesperar. Perdi a conta de quantas vezes fiz o sinal da cruz e rezei naquele primeiro dia. A cor daquelas paredes me dava vertigem, e pelo fato de ser tudo tão uniforme, parecia que eu estava perdido em uma imensidão de cinza.
Sem contar naquela pequena cama e naquilo.
Havia uma coisa estranha sobre uma espécie de estante. Eu nunca havia visto nada igual antes, parecia ser até mesmo algo sobrenatural. Havia uma placa estreita com uma espécie de vidro ou algo assim. Também havia outras duas caixas logo abaixo, uma grande e a outra pequena. E perto daquela placa ou caixa, havia outras duas coisas intrigantes. Uma delas era outra placa, mas essa havia o alfabeto, números e outros comandos que eu desconhecia. E a outra coisa era um tipo de bola, ou algo assim, que era dividida no meio a partir da metade.
Aquilo parecia ser alguma coisa de sonho. Não podia ser real. Comecei a rir da fertilidade que minha mente possuía. Decidi me deitar e, assim que acordasse, eu estaria em minha mansão, com minha esposa ao lado e com meus irmãos.
Mas isso não aconteceu. Quando acordei, ainda estava naquele lugar dos infernos. Minha primeira reação ao me dar conta daquilo foi gritar. Antes eu estava com medo, agora eu estava desesperado. O que diabos estava acontecendo? Tinha objetos ali que eu nunca havia visto na vida, e por que eu fui parar naquele lugar? E como, em nome de Deus, eu fui parar ali?
Eu notei que sobre aquela estante havia algo novo: um livro. Era de tamanho médio, e razoavelmente volumoso. Nessas horas que eu agradeço por ter nascido com condições de ter o mínimo de educação para saber ler. Talvez ali tivesse escrito o que estava acontecendo comigo.
Havia algo peculiar com aquele livro. Apenas as duas primeiras paginas estavam escritas, o resto eram apenas paginas em branco, com exceção da numeração, que ia de um à setecentos e trinta.
Na primeira pagina havia uma gravura extremamente realista e perfeita daquele aparato que estava sobre aquela estante. O pintor que havia feito aquilo devia ter um talento quase que sobrenatural. Logo abaixo da gravura, havia um nome: “Computador”. Então o nome daquela coisa era computador? Ainda assim não tinha a mínima noção de como se utilizava aquilo, e muito menos para que fim servia.
Tinha ali breve instruções de como acionar aquela coisa, e eu o fiz por puro instinto. Aquele painel emitiu uma luz que quase cegou meus olhos. Eu não estava acreditando que aquela coisa estava emitindo luz, como se fosse fogo ou o próprio sol. Era assustador demais para mim. O que diabos era aquilo?
Aquele livro estranho informou que eu poderia controlar uma pequena seta com aquela bola, que se chamava “mouse”. Levei minha mão, um pouco hesitante à aquela coisa, e a movi. Eu não notei nada que eu havia movido. Depois de alguns segundos, eu entendi e me apavorei. Aquela pequena seta branca dentro daquele painel, que se chamava “monitor”, estava se mexendo a medida que eu movia o mouse.
Aquela coisa estava me dando dor de cabeça. Por mais que eu fosse um homem inconseqüente e fanfarrão, eu era inteligente e tinha curiosidade pelas coisas, e sempre tentava achar lógica para tudo. Mas aquilo tudo não havia lógica. Como que uma coisa daquelas iria emitir luz sem fogo ou sem nada assim? E como que eu conseguia controlar aquela pequena seta, sendo que não havia nada ligado à aquele mouse?
Me deitei aquela cama e tentei dormir mais um pouco. Por mais que tudo isso que eu fiz parecesse ser coisa de instantes, eu levei quase duas horas tentando iniciar aquele computador e as coisas que ele me revelou me deixaram com dor de cabeça. Alem, é claro, de estar mais apavorado ainda. Como se não bastasse estar preso em um lugar sem nenhuma saída, e com aquela coisa estranha, eu estava com muita fome. Era tamanha, que achei que poderia desmaiar a qualquer momento. Então resolvi dormir, para talvez conseguir esquecer a fome.
Então eu acordei e me surpreendi com uma coisa que vi. Havia um prato com uma espécie de sanduíche redondo, com carne e queijo, e uma bebida escura em um copo de vidro. A primeira mordida naquela coisa me deixou em êxtase. Era muito gostoso, e parecia que meus sentidos estavam sendo explodidos.Talvez fosse por que eu estava com muita fome, mas aquela refeição me deu um vigor muito grande. O problema é que era demasiado pequeno, e acabou rapidamente.
Aquela bebida escura também era como um presente de Deus. Ela era cítrica, como cerveja, mas era ao mesmo tempo, doce e gelada. Valha-me o divino, como era bom aquela mistura de acidez com o gelo.
Deixei-me cair na cama e comecei a rir comigo mesmo. Por mais que eu comesse muito bem, eu nunca havia feito uma refeição tão deliciosa. Mas era assustador, porque eu estava em um lugar que eu desconhecia.
Veio-me uma coisa a mente. Se apareceu comida ali, alguém estava me vigiando, e sabia que eu estava ali. E esse alguém entrou de alguma forma, mas como? Estou começando a ficar mais furioso do que amedrontado, mas daí então eu olhei para aquela coisa. “Computador...” Aquilo tirou a fúria de minha alma e me trouxe de volta ao medo.
Algo me repudiava daquele objeto, mas eu sentia que precisava utilizá-lo de alguma forma. Mas eu não tinha menor idéia de como, e aquela porcaria de livro só havia duas paginas. Mas, quem sabe, eu não deixei escapar alguma pagina?
O que eu vi me deixou assustado e confuso. Alem das duas paginas que já tinha, havia outras duas paginas seguintes. Mas eu estava certo de que não havia nada naquelas folhas. Havia novas informações sobre aquela maquina, e ele me dizia sobre uma coisa chamada internet. Eu não fazia menor idéia do que era aquilo, mas segui as instruções novamente.
Demorei algum tempo para ligar aquela maquina novamente e mais ainda para me acostumar aquele mouse. Era difícil de controlar aquela seta com aquela coisa, ainda mais para alguém completamente descoordenado como eu. Eu não entendi quase nenhuma informação que me fora fornecida nas próximas paginas, mas ela me disse para olhar no canto inferior direito da tela do computador.
Havia uma serie de números e barras: 12/03/2035. Eu não entendi o que aquilo significava muito bem, mas não me deixou tranqüilo. Olhei para o monitor e tentei analisar o que eu via. No livro dizia que aquelas pequenas imagens eram “atalhos”. Havia palavras abaixo deles, mas muitos eram palavras que eu não sabia ler. “FireFox”, “Lixeira”, “Meu Computador”, dentre outros. Me perguntei como haveria uma lixeira naquela coisa, mas não pude pensar muito pois estava ficando com dor de cabeça.
Deus do céu, o que estava acontecendo? Será que era o castigo do todo poderoso por meus pecados? Parte de mim sabia que eu estava bastante lúcido, mas aquelas coisas eram demais para a minha cabeça. Ela doía tanto que eu acabei caindo desmaiado na cama. Os meus sonhos foram completamente sem nexo e muito abstratos. Mas eu consegui reconhecer uma coisa: a Lua. Aquela Lua vermelha alaranjada. Talvez fosse a ultima coisa que eu havia visto antes de mergulhar naquele lugar dos infernos.
Quando despertei, senti como se minha cabeça tivesse sido expandida. A minha primeira reação foi ir a aquele computador. Eu acreditava que aquela coisa talvez pudesse me dizer para que eu estava ali e como eu poderia sair. Embora fosse uma coisa muito complexa para mim, eu estava determinado a tentar.
Dessa vez eu o liguei rapidamente e já estava me acostumando aos movimentos daquela seta que se chamava “cursor”. Outro fato que me deixou intrigado e que reforçou mais minha teoria de que alguém entrava ali era aquele livro, pois quando eu o abri, havia mais duas paginas com mais informações.
Experimentei clicar naquela coisa chamada “FireFox” e a imagem da tela mudou. Eu me assustava pela maneira que aquela tela emitia luz e pior, trocava de cor e imagem quase que instantaneamente. Por Deus, aquela coisa parecia ter saído dos infernos.
“Google”, escrita em letras coloridas com um campo abaixo. No livro dizia que aquela coisa servia para fazer pesquisa e buscar informações. Escrevi então “Onde eu estou?”, e a imagem mudou novamente. Ousei clicar em alguns resultados e a imagem na tela mudou novamente. Aos poucos eu ia me acostumando com aquilo, mas ainda assim eu estava com medo. Nenhum lugar dizia onde eu estava e praguejei comigo mesmo. Considerei que talvez aquele tal de “Google” não dava respostas tão diretas e pessoais assim e seria inútil escrever qualquer coisa do gênero.
Pesquisei então sobre “computadores” e “internet” para talvez entender melhor o que eram aquelas coisas. Os primeiros resultados me mostraram conceitos como ser uma maquina com capacidade de tratamento de variados tipos de informações e que “internet” era como se fosse vários computadores ligados uns aos outros, saiba lá Deus como isso seja possível, servindo como uma “uma grande rede de compartilhamento de informações”. A analogia que eu fiz em minha mente para conseguir entender melhor foi que computadores seriam como as prateleiras, corredores e salas de uma grande biblioteca e que os livros seriam a internet.
A próxima informação a respeito de computadores me fez desmaiar.
Aquela coisa estava me dizendo que computadores surgiram em meados dos anos 1930, mas eu estava muito ciente de que estava no ano de 1345! Deus do céu, o que estava acontecendo? Olhei novamente para o canto inferior direito da tela e fiquei com medo daquela mesma serie de números e barras: 12/03/2035. Me dei conta que aquele “2035” era o ano que aquela maquina estava datando.
Me ergui da cadeira e comecei a andar de um lado para o outro. Meu Deus do céu, eu comecei a entrar em pânico. Bati em todas as paredes a socos e pontapés. Eu gritei e implorava para acordar, ou para morrer. Como diabos eu estava em 2035? Isso não podia ser verdade, era apenas alguma brincadeira de mau gosto que alguém estava fazendo comigo. Não podia ser outra coisa senão isso.
Em uma atitude desesperada, arregacei as mangas de minha roupa e olhei para a dobra de meus braços. Com um movimento decidido e preciso, mordi com uma força proporcional a dor causada. Sangue escorria de minha boca e pingava no chão cinzento. Com outro movimento preciso, mordi novamente, mas no outro braço. Eu sentia minha cabeça latejar e o sangue se esvair aos poucos de minhas veias. Achei que assim talvez eu conseguisse morrer e acabar com esse pesadelo dos infernos que eu estava vivendo, mas a realidade veio logo depois que eu acordei.
Meus braços doíam, mas de uma forma menos intensa. As feridas foram isoladas com ataduras macias e eu me sentia um pouco mais calmo, como se tivesse tomado um chá de camomila muito mais forte e concentrado. Ainda estava apavorado, mas um pouco mais... Contido? Talvez fosse essa a palavra.
Havia outra refeição que eu comi sem muita vontade, embora fosse tão deliciosa quanto à anterior. Eu estava começando a entrar em um estado de apatia, e simplesmente não sabia o que fazer. Eu tinha medo de ligar aquele computador e receio de tentar ler aquele livro. Passei por algum tempo, que talvez fosse dias, apenas deitado naquela cama e andando de um lado para o outro. O meu tédio era grande mas eu não sabia mais o que era de mim.
Depois daquele interminável período que fiquei sem fazer absolutamente nada naquele inferno, resolvi apanhar aquele livro. Ele havia varias novas paginas com mais informações a respeito do computador. Um fato curioso é que ali dizia para me acalmar, que todas as respostas viriam no momento ideal. Praguejei e segui lendo. Ali também sugeria que eu me encorajasse a continuar explorando aquela maquina, pois por mais que ela parecesse confusa, ilógica e completamente assustadora, o computador era a ferramenta mais poderosa que a humanidade possuía.
Eu olhei para o monitor e senti vontade de virar o rosto. Depois eu encarei aquela coisa novamente. Eu sempre fugi dos meus problemas e das minhas responsabilidades, e agora... Agora eu era obrigado pela primeira vez a encarar um problema muito serio. Estava preso ao meu problema, e eu não podia fugir por mais que tentasse.
Liguei aquela maquina em segundos e comecei a explorar. Estralei os dedos e rasguei as ataduras em meus braços, dando a vista grandes cicatrizes secas. Uma estranha determinação começou a brotar no meu peito, mas ainda assim decidi ter cuidado com esse entusiasmo repentino.
Depois de alguns dias, eu comecei a entender um pouco melhor do que um computador era capaz. Ele podia editar textos e imagens antes mesmo de serem “impressas”, e outras inúmeras finalidades. Com a internet, o acesso a qualquer tipo de informação era incrivelmente pratico e instantâneo, dando uma boa parte das respostas que se tinha a suas perguntas ou duvidas. Através de algumas pesquisas, eu descobri que no atual tempo que eu me encontrava, as coisas eram incrivelmente diferentes. Construções colossais onde viviam pessoas, que se chamava de “edifícios”, lotavam grandes cidades. Outro fato que me apavorou foi o fato de existir maquinas gigantes que eram capazes de voar levando duzentas pessoas ou mais, e viajavam a uma velocidade que era quase difícil de que eu imaginasse.
Outro fato que não me assustou, mas deixou bastante curioso, foi a criação de carruagens sem a necessidade de um cavalo para se locomover, que se chamava “carros” ou “automóveis”. Eram maquinas impressionantes e muito bonitas de um modo um pouco exótico. Mas o que realmente me deixou fascinado foi saber que o mundo na verdade era redondo, que as estações do ano se devem a inclinação da Terra e não da proximidade com o sol, que o mesmo era o centro do nosso sistema planetário e não a Terra, e de que havia um continente imenso do outro lado do oceano chamado “Américas”.
De fato, computador era uma ferramenta extremamente poderosa, principalmente para compartilhar informações. Mas o que me surpreendia era como a humanidade havia evoluído de uma maneira do qual eu nunca imaginaria. Era pavoroso em alguns aspectos, mas em outros, era até mesmo emocionante de se ver.
Mas aí então vieram duas novas paginas.
Acordei certo dia e fui até o livro, que havia uma informação nova para mim, mas era bastante direta e simples: “Procure saber mais sobre as punições da Idade Média”. Dei de ombros e procurei sobre o que aquele livro estava dizendo. Idade Média era a época do qual os estudiosos chamavam o tempo em que eu, em teoria, vivia. Após alguns minutos, eu soltei um grito com o que eu havia lido.
“Berço de Judas”, “Manivela Intestinal”, “Pêra”, “Roda de Desmembramento”... Essas eram algumas das punições que eu havia descoberto que a igreja usava de maneira cruel e inconseqüente nas pessoas, alegando heresia e outras coisas até mesmo muito banais. O pânico de verdade veio ao entender como aquelas coisas funcionavam e como matavam de uma maneira lenta e dolorosa. Deus do céu, eu não conseguia acreditar. A igreja que sempre me prometeu salvação e conforto era uma assassina cruel e tão terrível quanto o demônio que caçava. Questionei até mesmo se o Deus que eu rezava era bondoso e misericordioso como eu havia acreditado até então, ou se tudo isso era obra de homens sádicos e perversos.
No dia seguinte, depois de um sono mal dormido e com pesadelos, novas paginas foram adicionadas e eu percebi que o livro se aproximava do final. Também percebi o quanto minha barba e cabelo estavam grandes, e só naquele momento eu havia me dado conta desse fato, pois estavam tocando as paginas.
Dessa vez havia novamente informações bastante diretas e objetivas: “Saiba um pouco mais sobre A Peste Negra que ocorreu”. Eu fiquei com bastante receio de ir atrás daquelas informações, pois da ultima vez que eu fui atrás dessas informações bastante simples, eu acabei por ter bastante dor de cabeça, mas eu fui mesmo assim. O próprio nome daquilo soava muito sombrio, e eu estava com um mau pressentimento sobre. Quando terminei de ler, eu desliguei o computador e segui para a cama, completamente em choque.
Eu havia notado nos últimos dias antes de vir parar nesse lugar que um rato preto havia cruzado o meu caminho na estrada. Na hora eu não me importei, mas agora o que havia em meu âmago era desespero. Eu não conseguia imaginar setenta e cinco milhões de pessoas, ainda mais esse mesmo numero de mortos. Era a quantidade de pessoas que iriam morrer na Europa, todas com pústulas horrendas e agonizando até a morte os levar. O feudo era um lugar fétido por natureza, e depois de um tempo você se acostuma, mas imaginar o natural fedor da ausência de higiene com o odor de putrefação de pessoas vivas... Deus do céu, isso era horrível demais! Será que era um castigo do Todo Poderoso por usarem seu nome para fazer maldade?
A ânsia de vomito veio ao meu encontro, mas eu não consegui expelir nada. As minhas noites seguintes foram com pesadelos de imagens horrendas e de pessoas agonizando aos poucos antes de morrer. Eu estava naquele lugar fazia sabe lá Deus quanto tempo, pois eu já havia perdido essa noção. Havia visto as coisas boas e ruins que o futuro nos reserva, havia aprendido a usar a ferramenta mais poderosa que a humanidade criou e também degustei as comidas mais deliciosas que eu já havia comido. Mas após tudo isso, porque eu estava naquele lugar? E porque a mim? E qual a circunstancia de me revelar as coisas mais horrendas que a minha época passou, ou passará, já não sei mais dizer em que tempo estou e porque estou aqui. Eu só quero sair ou morrer, pois por mais que fosse excitante, era assustador e cansativo.
Certo dia, eu notei que faltava apenas quatro paginas para o livro se concluir, e me indagava o que ocorreria quando isso acontecesse. Nas duas penúltimas paginas estava escrito que as minhas respostas estavam próximas, e para eu ter só um pouco mais de paciência. Respirei fundo e aceitei. Se de fato faltasse pouco para eu ter alguma resposta, então eu poderia agüentar mais um pouco, afinal, eu já tinha agüentado até aqui.
Quando eu acordei na outra manhã, eu estava confuso.
Meu cabelo e minha barba estavam mais curtos, eu estava na minha antiga cama no meu quarto da mansão de minha família. Ergui as mangas e as cicatrizes da mordida que eu fiz em mim mesmo haviam sumido. Eu havia voltado? Eu acho que sim. Ri com uma intensidade louca e assustadora. Meu irmão estava do meu lado e deu um salto quando despertei.
Ele indagou se eu estava bem, e eu disse que sim, mas não sabia o que estava acontecendo. Meu irmão se silenciou por um instante. Eu comecei a questioná-lo o porquê de estar tão quieto, sendo que eu havia desaparecido por dias. Seu cenho se franziu quando argumentei isso, e logo depois veio sua negação.
Meu sangue ferveu e eu continuei dizendo que eu havia caído do cavalo na noite de Lua vermelha, quando o meu filho iria nascer. Ele negou isso novamente, e eu me levantei da cama. Comecei a vomitar tudo o que havia acontecido, falei do quarto cinzento, do livro, do computador, de tudo. Meu irmão se afastou de mim com os olhos arregalados. O padre do qual tomava conta da igreja do feudo abriu a porta de meu quarto, com uma expressão tão espantosa quanto a de meu irmão.
“Eu acho que ver o filho daquele jeito foi demais para ele...”, disse o padre com um tom de desdém na voz e meu irmão assentiu. “Sim, eu acho que meu irmão ficou louco.”
Enfureci e sai do quarto a passos pesados. Estava exclamando e exigindo para ver o meu filho no mesmo momento. Os dois homens me acompanharam pelos corredores, bastante preocupados, e isso aumentava minha raiva. Quando abri a porta do quarto que a minha esposa deu a luz, procurei pela criança. Ela repousava sob um berço de carvalho e meu irmão tentou me conter, mas o empurrei para o lado com o ombro.
Eu não estava entendendo o pequeno monstro que havia naquele berço. Uma criança tão defeituosa que eu não acreditei que fosse um ser humano, ainda mais que fosse meu filho. Eu não consigo nem por em palavras a cena horrenda que eu via naqueles lençóis brancos.
O padre veio com a mão em meu ombro. Ele argumentou que era compreensível que eu tivesse ficado louco depois de ver que o primogênito nasceu completamente “estragado”, mas que Deus sabia o que fazia. Eu ri com esse ultimo comentário, enquanto tirava a mão daquele homem de mim.
“O mesmo Deus que tortura por motivos banais é o que me deu um monstro como filho? É esse Deus miserável que sabe o que faz? Imagina se não soubesse, afinal milhares vão morrer porque ‘Ele sabe o que faz’. Eu vi o que a humanidade vai conseguir, vi como será o continente do outro lado do oceano e vi também como nós iremos evoluir. E tudo foi graças a nós, e não a um desgraçado de um Deus, pois ele quer que a gente se foda!”
Os homens ali estavam chocados. Meu irmão desabou de joelhos no chão, e o padre ficou sem fala. Meu pai adentrava o quarto quando eu terminava minha blasfêmia. Eu ri novamente de uma maneira assustadoramente satisfatória e histérica. O pobre padre começou a rezar de joelhos no chão do quarto e meu pai estava ordenando alguma coisa para os guardas da mansão.
Eu segui rindo durante todo o trajeto que haviam me arrastado, e eu nem mesmo notei para onde eu iria ser levado. Talvez para um calabouço da igreja, ou para algum lugar qualquer. Da janela de minha cela, eu podia ver dois grandes ratos pretos passando correndo. Pequenas pulgas saiam de seus movimentos, e eu sabia que a peste estava chegando. Veio varias vezes o padre pedir para eu me confessar, mas eu neguei com todas as minhas forças. Eu sabia que seria torturado em breve, e que depois disso seria queimado vivo, mas eu de certa forma não me importava.
Depois de poucos dias, notei pústulas nas mãos de meu carcereiro e soube que a peste havia começado e que muitos iriam morrer. Eu não iria viver para vê-la dizimar as pessoas, e de certa forma me sinto um pouco grato por isso. O padre veio com uma pequena chibata e me “puniu” na ultima vez que esteve aqui. Eu não irei durar muito, então deixei tudo escrito aqui o que aconteceu comigo e o que está por vir. Eu não sei, mas talvez isso seja culpa da Lua... Aquela maldita Lua Vermelha que eu avistei quando tudo começou.
Espero que essas escritas sobrevivam tempo o bastante para alguém ler e quem sabe tentar fazer alguma coisa a respeito, mas eu morrerei em breve e deixo essa historia como uma forma de deixar minha consciência mais leve antes de partir. Só tome cuidado com as feridas abertas, com os ratos pretos, com a ira de “Deus”, e principalmente, com aquela maldita Lua Vermelha.
Conto ótimo, vi lá na Oficina dos Horrores