23/03/2015

Alguma outra coisa

Ok, então, vou começar isso com uma daquelas coisas que os escritores fazem – quando eles te dizem que o que estão escrevendo é puramente verdade – mas realmente não importa se você vai acreditar ou não. Ninguém acredita.

Eu só quero deixar escrito, caso eu consiga me convencer de que não foi real e caso haja alguém por aí que vá me levar a serio.

Eu comecei a faculdade no outono, e tive que me mudar pra outro estado, um pouco distante do dos meus pais. E tudo aconteceu normalmente, eu acho. Eu sentia falta dos meus amigos, e até dos meus pais – depois de um tempo – mas eu tentei me focar e só prestar atenção nas aulas. Eu tenho dois irmãos mais velhos – um é advogado e o outro está fazendo faculdade de direito. Os dois foram os melhores de suas respectivas turmas e começaram a ganhar dinheiro antes mesmo de sair da faculdade. Sendo a caçula e a única mulher, eu sempre tive um padrão pra alcançar, e eu ficaria insatisfeita se fosse a única entre eles que não tivesse uma carreira. Então, eu consegui um trabalho no campus e me comprometi à só tirar notas 10.

Então, como você pode imaginar, eu não dormia muito. Me acostumei a ficar acordada durante a noite terminando relatórios e atividades pelo menos uma vez na semana. Minha colega de quarto era acostumada a levantar ás 5:30 da manhã (Ela trabalhava no primeiro turno do café do campus) e me encontrar na cama, encarando o notebook e terminando alguma atividade do dia anterior.

Ficar acordada durante a noite não era um problema para minha colega de quarto, ela dormia com as luzes ligadas de qualquer jeito. Nosso dormitório era supostamente “assombrado” e as garotas ficavam realmente assustadas a noite.

Em uma das minhas primeiras semanas aqui, um cara da turma avançada me contou sobre isso numa festa.

“Ah, sim... Eu lembro de ouvir sobre isso: Alguma garota daquele dormitório se matou no chuveiro ano passado,” Ele explicou. “Tipo, tirou as lâminas do Gillette e começou a se cortar, e não só os pulsos, eu ouvi que ela se cortou toda nos braços e nas pernas. Cortes gigantescos desde a virilha até o pé e me disseram que tinha quase uma poça de sangue no lugar que ela se matou. No entanto, nunca acharam as lâminas...”

Nesse momento seu amigo (bêbado) se meteu na conversa, “É, porque o fantasma dela guardou. Então é bom você não encontrá-la no chuveiro se não ela vai cortar você também!”

Eu não dei ouvidos... Primeiro: O mais sóbrio dos dois ficou tentando colocar a mão na minha perna e pelo que eu entendi, ele parecia preocupado, e se caso eu estivesse muito assustada, poderia passar a noite no dormitório dele.

Segundo: As lâminas de uma Gillette são realmente cortantes, mas muito pequenas. Eu não achava que poderia tirar tanto sangue de alguém. E se essa parte foi invenção, não duvido que o resto também seja.

Eu sabia que o assunto principal era verdade – o suicídio, quero dizer. Vários dos nossos colegas de classe nos disseram o que aconteceu, porque eles eram do mesmo andar no ano anterior. A garota que achou o corpo largou a faculdade (provavelmente traumatizada) e os funcionários não deram nenhum outro detalhe, então, o que algum de nós poderia dizer é que: Houve um suicídio, foi no chuveiro e tinha muito sangue – no entanto, ainda duvido que tenha sido uma poça.

De qualquer forma, ninguém mais ficaria no terceiro andar – onde se passou o acontecido – depois daquele ano, então, o andar e os chuveiros de lá estavam sempre escuros e vazios. As pessoas eram frequentemente desafiadas a passar noites lá, e jogar aquela merda de Ouija, mas nenhum deles era burro o suficiente pra tentar tomar banho lá.

Exceto por mim. Mas em meu crédito, não foi por causa de um desafio idiota.

Era a semana final do meu segundo semestre e eu estava mais ocupada com os deveres do que o normal. Pra minha sorte, o dia seguinte era o último de aula e eu tinha que terminar apenas mais um relatório. Eu fiquei acordada a noite toda pra terminar e dormi durante apenas algumas horas na noite anterior, e porque o efeito da cafeína passa em algum momento, estava ficando difícil manter os olhos abertos. Mas eu precisava de uma boa nota, e outra parte de mim queria ficar acordada pra ver até quando eu poderia durar.

Peguei-me quase dormindo na minha mesa, queixo apoiado nas mãos pela qüinquagésima vez, olhei para o meu relógio e depois para o notebook, eram 05h00 da manhã – eu ainda tinha tempo até a primeira aula, e tudo que eu precisava fazer era escrever mais algumas frases e a conclusão.

Uma parada rápida não ia me atrasar tanto, e eu precisava de um banho. Então, peguei minha toalha, meu roupão e minhas coisas de banho, saindo do quarto um momento depois e fechando a porta lentamente, tentando não acordar minha colega de quarto. Ela tinha apenas mais meia hora de sono antes de levantar.

Quando cheguei aos chuveiros, não fiquei surpresa de perceber que um deles já estava ligado. Eram as últimas semanas, afinal, e eu não era a única no meu andar que tinha passado a noite acordada. Ainda esfregando meus olhos, liguei o chuveiro e um jato de água gelada me atingiu na cabeça. Eu fiquei lá por alguns minutos congelantes, tentando esperar a água ficar quente, mas não ficou.

A água quente provavelmente acabou,  pensei, por um momento realmente chocada por causa da minha colega de dormitório, que estava tomando banho na água fria. Vesti o roupão novamente e enquanto saia do chuveiro percebi que todas as cortinas estavam abertas e o último chuveiro estava derramando água no chão.

Então, sem água quente porque alguém foi burro o suficiente pra sair e deixar um dos chuveiros ligado.

Minha irritação não ofuscou a minha vontade de ficar limpa, então, eu fui até o terceiro andar, tentando não pensar no que eu realmente estava fazendo. Todos no dormitório tinham uma chave específica para o seu respectivo andar, e por um momento me perguntei se isso seria necessário, mas como eu esperava, o terceiro andar estava destrancado. Mas que bela segurança...

Eu observei o espelho enquanto entrava e havia alguns desenhos que lembravam grafites de rua, eu estava na dúvida se esse andar realmente teria água quente, ou até mesmo só ÁGUA. Liguei o chuveiro e assim que percebi a água caindo tentei me afastar, encostando-me na parede, mas isso não impediu que a água me atingisse no ombro. Estava marrom e gelada, mas eu esperei, até que a cor simplesmente desapareceu e a temperatura da água ficou aceitável – não completamente morna – mas aceitável.

Eu não vou mentir, estava assustada lá dentro. Não horrorizada – não acreditava em fantasmas desde os cinco anos de idade – mas definitivamente assustada.

Havia um estranho cheiro metálico lá... O encanamento daqui deve estar uma porcaria, só pode ser isso que está fedendo a ferrugem... Tentei me convencer, mesmo que uma voz na minha cabeça tentasse gritar “sangue

Eu decidi terminar meu banho o mais rápido possível e sair de lá assim que acabasse.

Mas quando terminei de lavar o cabelo, comecei a me sentir melhor. O tempo estava começando a esquentar e pensei em usar shorts, então, por que não passar mais alguns minutos raspando a perna? Meu trabalho estava quase pronto, eu só iria para a aula em duas horas e a única coisa que estava realmente me assustando lá, era o barulho no chuveiro – havia culpado o encanamento novamente –.

Enquanto eu passava a Gillette nas pernas, comecei a pensar nas provas finais e o quanto eu queria tirar 10, mas mesmo assim, algumas das minhas notas estavam medianas.

Acho que não me concentrar foi o que me fez esquecer a Gillette e me cortar... Foi apenas um pequeno corte, nada que eu já não estivesse acostumada, mas a dor inesperada me fez derrubar a lâmina, e enquanto eu me abaixava pra pegar, notei algo.

Havia algo no ralo, e não parecia um bolo de cabelo ou algum objeto, era alguma outra coisa. Era do tamanho de um punho pequeno, como se fosse de criança, e era branco feito neve, o que deixava ainda mais óbvio alguns pêlos que estavam por cima. Por um momento pensei em mármore, ou... Qualquer outro tipo de pedra?

Em um momento de curiosidade – ou simplesmente burrice – me ajoelhei e tentei observar mais de perto, começando a cutucar o que parecia pêlo e tentando me convencer que era algum colar que alguém havia deixado cair lá dentro.

Antes mesmo de abrir o ralo, eu podia ver a coisa se mexendo...

Joguei a telinha pro lado com uma sensação de triunfo e então a coisa começou a sair e vir na minha direção, parecia se mexer com a própria força e eu podia ver algumas marcas abaixo da superfície pálida... Pareciam ossos?

Como?

Senti o medo crescer em mim e comecei a levantar, caminhando pra trás, mas minha incapacidade de acreditar em fantasmas não me deixou correr.

Enquanto a coisa começou a sair de lá, eu percebi que ela começou a se ‘abrir’. Não sei como descrever isso de outra maneira. Quatro dedos começaram a se abrir e revelar o que pareciam ser roxas marcas de violência. Um lado estava melado, com algo que parecia pus saindo de um lugar onde supostamente deveria estar localizado um... Dedão?!

Eu arregalei os olhos assim que percebi que realmente era uma mão. A palma, não era muito maior do que a de uma criança, mas cada dedo parecia ter mais de 20 centímetros cada, com juntas machucadas e no final dos dedos, uma unha.

Na verdade, a palavra ‘garra’ pode definir melhor o que aquilo era. Algumas estavam quebradas, deixando apenas a metade, mas as que não estavam, eram imensas, fazendo os dedos da coisa parecessem ainda maiores. Elas eram grotescas e sujas, mas não deixavam de lembrar lâminas afiadas nem por um momento.

Agora, durante todo o tempo que levei pra observar isso, eu não me importava mais se eu estava acreditando em fantasmas e o quão infantil isso soaria, ou se eu estava sem roupa e minha perna ainda estava completamente coberta de creme de barbear. Eu ia sair dali.

Comecei a andar pra trás, e usei uma das minhas mãos para abrir a cortina do chuveiro, mas estava tudo muito escorregadio e não demorou muito até que eu batesse minha bunda no chão. Quando eu caí, meu tornozelo encostou-se à mão da coisa, era gelada e macia, como algo que você deixa muito tempo dentro da geladeira. Os dedos se mexeram com o contato.

Fiquei de joelhos e por um momento pensei que pudesse me arrastar para fora, mas enquanto eu tentava, eu senti os dedos se agarrarem em mim. Senti uma dor horrível e quase insuportável quando as unhas da coisa se fincaram em mim.

Eu olhei pra trás e por um momento parecia que a coisa ainda estava tentando sair, milímetro por milímetro, de dentro do ralo. Eu podia ver as marcas dos ossos abaixo da pele pálida e o começo do cotovelo, mas não parava de segurar meu tornozelo, e eu não podia evitar as gotas de sangue que começaram a cair cada vez que as unhas entravam mais em minha pele.  Tentei puxar minha perna na direção do meu corpo, mas isso fez com que a coisa segurasse minha perna com ainda mais força, senti outra unha entrando em minha perna e a dor mais insuportável de todas quando ele conseguiu alcançar meu osso. O barulho de “encanamento” estava de volta e a coisa ainda parecia tentar sair do ralo.

Foi a minha colega de quarto que me salvou – ela e o trabalho no café que ela tanto odeia. Ela disse que achou estranho acordar e não me encontrar, mas que o fato do meu notebook estar ligado a fez pensar que eu estava tomando banho. Ela percebeu também que eu havia levado as coisas de banho, mas quando foi aos chuveiros do nosso andar, não havia ninguém lá. Então, mesmo sem acreditar que eu estaria lá, ela checou o terceiro andar.

Os paramédicos disseram que eu fiquei inconsciente por pelo menos 20 minutos; e havia perdido muito sangue. Quando eles me acharam, eu estava com vários arranhões e cortes no meu quadril e nas minhas pernas. Havia alguns cortes pequenos – mas a grande maioria foi profunda e grande –.

A área pior foi no meu joelho esquerdo, os médicos passaram horas tentando ajeitar.

Eles me perguntaram se eu havia utilizado algum tipo de droga ilícita, e eu disse á eles – sinceramente – que não. Então, eles continuaram me perguntando se eu tinha certeza pelo menos umas dez vezes, e depois mandaram um psiquiatra conversar comigo.

Eu estava bastante dopada por causa dos remédios pra dor, mas ainda assim, levei alguns dias pra conseguir conversar com a minha psiquiatra normalmente. Ela me disse que nada além do normal foi encontrado nos chuveiros além de mim – nua e sangrando no chão –. Ela disse que as alucinações são sintomas normais de quem fica muito tempo sem dormir.

“Mas então, como consegui estes cortes?” Eu perguntei.

Ela não tornou as coisas mais fáceis pra mim, “Você fez isso em si mesma, querida. Você estava estressada e cansada, você não é a primeira estudante a ter um colapso durante as provas finais.”

Bom, eu estou começando a acreditar no que ela disse sobre as alucinações, mas eu sei que não foi uma alucinação que me deu esses cortes. Eu não tinha nada afiado ou grande o suficiente pra me cortar desse jeito – nem nos chuveiros, nem no meu quarto, nem em lugar nenhum. Eles acham que eu joguei minha lâmina fora, mas quando eu perguntei á minha colega de quarto, ela disse que estava lá, do meu lado, exatamente onde eu havia deixado, e sem um pingo de sangue.


E esse é o motivo pelo qual eu decidi deixar isso aqui para outras pessoas verem, eu sei que o que eu lembro não faz sentido e deveria ser impossível, mas eu não iria me sentir bem ficando em silêncio sobre isso. Eu quero que as pessoas saibam: Não acho que aquela garota tirou a própria vida no chuveiro ano passado... Acho que alguma outra coisa a matou.

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